Posts from abril, 2013

Dr. Vanzolini e Mr. Paulo

 

 

“O Paulo é erudito e eu sou pitoresco: o samba iguala tudo.” (Adoniran Barbosa)

 

“Todo mundo, em ‘Volta por cima’ presta atenção em ‘volta por cima’, mas tem uma outra coisa que pra mim é muito mais importante, é ‘reconhece a queda’.” (Paulo Vanzolini)

 

 

O Dr. Vanzolini era um cientista e pesquisador emérito. Doutor em zoologia pela famosa Universidade de Havard, tem pesquisas e trabalhos reconhecidos e divulgados no mundo todo.

Foi diretor do Museu de Zoologia da USP de 1962 a 1993, e passou a maior parte da vida em laboratórios, viagens de trabalho e estudo (foi numa dessas viagens que ele e Antônio Xandó recolheram do folclore a maravilha de “Cuitelinho”).

Todavia, o Dr. Vanzolini, homem da ciência, reverenciado pelo seu saber, acima de qualquer suspeita, tinha uma face notívaga, que de vez em quando o assaltava e o levava a rondar a cidade, misturando-se com boêmios, sambistas e capoeiras 

O Mr. Paulo do Dr.Vanzolini começou a se manifestar por volta dos 18 anos, quando estudava Medicina no Rio de Janeiro.

Se a produção científica do Dr. Vanzolini é vasta e merecedora de grande apreço, o cancioneiro de Mr. Paulo, menos profuso, não fica atrás em qualidade e importância.

Certa vez, em 1963, o Dr. Vanzolini passou uma temporada enfurnado na Amazônia, pesquisando seus bichinhos, e quando retornou a São Paulo, espantou-se. Um samba de Mr. Paulo, “Volta por cima” — que a sua amiga de velha data, Inezita Barroso, não quis gravar — estava em primeiro lugar nas paradas de sucesso, na voz do grande cantor Noite Ilustrada, que o lançou pela antiga Philips.

Antes disso, Mr. Paulo já se tornara conhecido por uma outra canção, “Ronda”, gravada inicialmente pela mesma Inezita Barroso, depois por Márcia (numa interpretação maravilhosa que já se tornou clássica), Maria Bethânia, e até mesmo por João Gilberto.

As atividades intensas do Dr. Vanzolini não permitiram que o boêmio quase abstêmio (segurava na bebida por causa do trabalho), Mr. Paulo, se manifestasse com a frequência que gostaríamos. Mr. Paulo gravou apenas dois LPs: “Onze Sambas e Uma Capoeira”, em 1967, com vários intérpretes (entre os quais Chico Buarque cantando “Praça Clóvis” e “Samba Erudito”) e, em 1981, “Paulo Vanzolini por Ele Mesmo”.

Mas isso não impediu que Mr. Paulo seja um dos principais representantes do samba paulista, a desmentir a frase infeliz, ou apenas gozadora, do querido Vinicius de Moraes de que São Paulo era o túmulo do samba. As canções de Mr. Paulo retratam os mesmos tipos suburbanos e marginais do não menos extraordinário Adoniran Barbosa, palmilham a mesma geografia da nossa Paulicéia cada vez mais desvairada.

A excelente “Biscoito Fino” lançou uma antologia denominada “Acerto de Contas” (infelizmente esgotada), numa caixa com 4 CDs e 52 faixas, abrangendo quase a totalidade das canções de Mr. Paulo, interpretadas por diversos cantores.

Ao completarem 85 anos de idade no ano de 2009, Dr. Vanzolini e Mr. Paulo receberam várias homenagens em São Paulo, entre as quais shows e apresentações ao vivo, em que o acanhado e modesto Dr. Vanzolini, sentado a uma mesa no canto do palco, se transfigurava por breves instantes em Mr. Paulo, enquanto suas canções eram interpretadas, e narrava deliciosas histórias da sua vida boêmia e de compositor 

Na mesma época foi lançado também o documentário “Um Homem de Moral”, produzido pelo biólogo e cineasta Ricardo Dias, amigo do Dr. Vanzolini, que em boa hora resolveu registrar em película as andanças musicais de Mr. Paulo.

Havia um bom tempo que Mr. Paulo não compunha. Segundo ele próprio, a sua última canção foi “Quando eu for, eu vou sem pena”, feita há mais de 20 anos.

Na noite do domingo que passou, Dr. Vanzolini e Mr. Paulo se foram e é uma grande pena para todos nós que ficamos um pouco mais no escuro.

 

paulo vanzolini e seus chapéus

 

Quando Eu for, Eu Vou Sem Pena

 “Quando eu for eu vou sem pena”, Chico Buarque

 

 

Ronald de Carvalho e Fernando Pessoa

 

         Adalberto de Oliveira Souza

Adalberto 2 (2)

 

 

 

 

 

 

 

RONALD DE CARVALHO  E  FERNANDO PESSOA    

 

Adalberto de Oliveira SOUZA(UEM)[1]

 

Tenho tentado recuperar a importância de Ronald de Carvalho (1898-1935) em muitos ensaios que publiquei até agora, inclusive um no número 31 da revista Latitudes de dezembro de 2007, num artigo intitulado “A presença do Brasil no modernismo português”. Acredito que é imprescindível resgatar o mérito deste escritor e poeta devido à sua dedicação à formação de leitores no Brasil. Não se pode deixar de dizer que ele foi eleito “príncipe dos prosadores brasileiros” e que essa honraria na época em que viveu tinha repercussão bem relevante. Sua Pequena história da literatura brasileira, publicada em 1919, marcou a formação de toda uma geração de críticos, inclusive a de Antônio Candido que confessa ter-se impregnado dessas páginas em sua Formação da literatura brasileira.[2] Por isso quero aqui fornecer alguns detalhes e comentários de seus contemporâneos, antes de revelar, através de uma interessante carta dos inícios de 1915 (com a qual concluo este artigo), a relação intelectual que houve entre Fernando Pessoa e ele. Não há dúvidas que um leu o outro, embora não se conhecessem pessoalmente.

Em 1913, com 20 anos de idade, Ronald vai para a Europa, onde frequenta cursos de Literatura, Sociologia e Filosofia na Sorbonne, entra em contato com escritores e poetas ligados ao Simbolismo, lê ou relê Verlaine, Rimbaud, Francis Jammes, Rodenbach, Samain, e retoma a escritura de Luz gloriosa, que será impresso em novembro nas oficinas gráficas da Casa Crès et Cie. Mas esse livro só fica conhecido no Brasil e em Portugal no ano seguinte, comentado por Alceu de Amoroso Lima, Graça Aranha e Fernando Pessoa.

Povina Cavalcanti dá um depoimento sobre a gênese desse livro:

“Quando um quase menino daqui saiu, em 1913, com destino a Paris, onde o esperavam Felippe d’Oliveira, Álvaro Moreira e Rodrigo Octávio Filho – conta-nos este último – levou Ronald um livro de versos pronto para o prelo. Dias depois, num quarto de hotel, aos três poetas seus irmãos, Ronald dizia:

– Vocês se recordam de nosso último encontro aqui neste mesmo quarto, há uma semana, poucos dias após minha chegada? Trouxera eu do Rio um volume de versos, o primeiro de um tríptico projetado: Luz, Cor e Som. A opinião de Hermes Fontes sobre meu livro me estusiasmara. Julguei-o definitivo! No entanto, em uma semana tudo mudou. Desta mesa levei dois livros de Samain. Li-os de um fôlego. E na mesma emoção misturei aqueles versos com o ar que aqui se respira. Não é que eu sinto como Samain. Nem sei bem ainda o que se passou. Mas houve uma transformação! Queimei meus velhos versos no fogão do meu quarto. Viraram fumaça no céu parisiense. E aqui está o resultado, Luz Gloriosa, todo escrito nessa última semana.” ( 1957, p.28-29.)

Ronald de Carvalho teve uma formação clássica e francesa e de certa forma, impregnada do parnasianismo que grassava avassaladoramente na poesia brasileira daquela época. Chegando à Europa a sua visão de mundo transformou-se ou ele colocou para fora o que guardava de visceral, e eclético; demonstrando-o várias vezes na sua trajetória literária, pois assimilou bem o espírito europeu, a poética europeia da época. Em seguida, Ronald de Carvalho participou em São Paulo da Semana de Arte Moderna de 22, manifestação cultural de caráter extremamente nacionalista e ao mesmo tempo voltada para as vanguardas europeias, duas características que ele soube unir. Manuel Bandeira dirá dele: “Linhas nítidas e tonalidades claras que dão à toda a sua obra a ordenação e o brilho de um jardim, ainda que tropical, bem civilizado”.[3] No entanto, o seu cosmopolitismo apareceu cabalmente mais tarde em Toda a América, livro publicado em 1925, no qual ele acredita ter encontrado a voz do Novo Mundo, claramente envolvido pela poética de Walt Whitman. Esse livro acabou por ser o mais importante da sua obra ao lado de seus ensaios que revelam muita cultura e erudição.

Embora Alceu de Amoroso Lima tenha considerado que “ Luz Gloriosa não passara de um pecado ardente e capitoso de sua mocidade”, esse livro provocou certa comoção no meio literário, tanto português quanto brasileiro. Foi essa possivelmente a razão pela qual Ronald de Carvalho tenha sido convidado a participar do movimento da revista Orpheu, da qual acabou por ser diretor de seu primeiro número, tendo aí poemas publicados.

Graça Aranha também fala sobre o livro: “Disso exatamente é que precisamos. Luz, calor, mocidade, exaltação, exaltação, exaltação. Quero conhecer este rapaz. Aqui temos a voz da poesia nova do Brasil.”. E ele explica as razões:

 “A poesia de Ronald de Carvalho é a da transfiguração. A sua liberdade subjetiva não se detém diante da deformação, signo da libertação imagética que dá aos objetos e aos sentimentos a inversão reveladora da essência transcendente dos seres. Nesta libertação há fatalmente uma construção, e Ronald é um dos construtores espirituais do Brasil novo. Por ele se formará uma sensibilidade diferente da que até agora animava nossa terra. Deixará o Brasil de ser o lírico da tristeza, para ser o criador da perpétua alegria” (apud LIMA: 1942)

Vejamos um excerto de Luz Gloriosa de Ronald de Carvalho:

 

E chego…e me contenho…e o meu olhar se inflama

e outra vez…outra vez…para glória da Vida,

a eterna maldição de ser gelo e ser chama…

 

E também o soneto que agradou a Fernando Pessoa:

 

…E o veleiro partiu…para os longes, no Poente,

e o cais, poeirento e bom, ficou triste e vazio…

– A Saudade da luz e a Saudade da gente,

A invernia do olhar, e os nervos sem estio –

 

E, eu me deixei ficar, contemplativamente,

olhos cheios de Sol de outro flavo e sadio…

– Na fluida limpidez da tarde transparente

Setembro havia posto um colorido frio…

 

E o veleiro partiu, de velas soltas, no alto,

para a glória do Mar, na paisagem violeta

do Outono, entre calhaus e cimos de basalto…

 

E, com ele, foi, também, panda, num desvario

de asas brancas, para o ar, uma última goleta…

…E o cais, poeirento e bom, ficou triste e vazio…

 

A opinião de Fernando Pessoa a respeito desse livro e desse poema se encontra numa carta datada de 29 de fevereiro de 1915 (sic)[4]. É uma carta longa, que merece toda nossa atenção, pois revela o interesse e respeito do vate português por Ronald. Vejamos alguns trechos:

“Não sei que lhe diga do seu livro, que seja bem um ajuste entre a minha sensibilidade e a minha inteligência. Ele é deveras a obra de um Poeta, mas não ainda de um Poeta que se encontrasse, se é que um Poeta não é, fundamentalmente, alguém que nunca se encontra. Há imperfeições e inacabamentos nos seus versos. Vêem-se ainda entre as flores as marcas das suas passadas. Não se deveriam ver. Do Poeta deve ser o ter passado sem outro vestígio que permanecerem as rosas. Para quê os ramos quebrados, ainda, e partido o caule das violetas?

Eu não lhe devia dizer isto, talvez sem prefaciar que sou o mais severo dos críticos que tem havido. Exijo a todos mais do que eles podem dar. Para que lhes havia eu de exigir o que cabe na competência das suas forças? O poeta é o que sempre excede aquilo que pode fazer.

O seu Livro é dos mais belos que recentemente tenho lido. Digo-lhe isto para que, não me conhecendo, me não julgue posto a severidade sem atenção às belezas do seu Livro. Há em si o com que os grandes poetas se fazem. De vez em quando a mão do escultor faz falar as curvas irreais da sua Matéria. E então é o seu poema sobre o Cais e a sua impressão do Outono, e este e aquele verso, caído dos deuses como o que é azul no céu nos intervalos da tormenta. Exija de si o que sabe que não poderá fazer. Não é outro o caminho da Beleza.” ( apud SILVA: 1999, p.152.)

Mais adiante:

“Escrevo e paro…Pergunto a mim próprio se poderá julgar tudo isto, porque não é transbordante de elogios, uma crítica adversa. Não o conheço e não sei. Mas repare que só a quem muito aprecio eu escrevo destas coisas. Decerto me faça justiça de crer que a quem não tem nenhum valor eu digo imediatamente que tem muito. Só vale a pena notar os erros dos que são na verdade Poetas, daquele em quem os erros são erros. Para quê notar os erros daqueles que não têm em si senão o jeito de errar?” (apud SILVA: 1999,  p.153)

É reveladora essa carta de Fernando Pessoa. Mesmo não havendo nela um deslumbramento pela obra do ainda bem jovem poeta, há o reconhecer de suas qualidades, de seu valor estético. Isso não deixa de contribuir para a preservação da memória de Ronald de Carvalho, ele que foi relativamente importante para Portugal e de particular relevância para a história cultural brasileira. É de se crer que vale a pena ir adiante nessa pesquisa.

 

Ronald-de-Carvalho (1)

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

CAVALCANTI, Povina. Viagem ao mundo da poesia. Encontro com Tasso da Silveira, Murilo Araújo e Ronald de Carvalho. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1957.

LIMA, Alceu de Amoroso. “Evocação de Ronald de Carvalho. Autores e livros” A Manhã, Rio de Janeiro, 7/6/1942.

SARAIVA, Antônio José. Iniciação à literatura portuguesa. São Paulo: Cia das Letras, 1999.

SILVA, Manuela Parreira. Correspondência (1905-1922). São Paulo: Cia das Letras, 1999.

CARVALHO, Ronald de. O espelho de Ariel e poemas escolhidos. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1976.

 



[1] Professor associado de Literatura Comparada na Universidade Estadual de Maringá (Brasil).

[2] 5a. Ed., Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/ Edusp, 1975.

[3] Grifo nosso.

[4] É interessante notar que 1915 não foi um ano bissexto.

 

 

 

O verso perdido

 

 

rum creosotado 3

 

 

Tinha eu 6 anos de idade quando meu pai me chamou para visitá-lo em São Paulo.

Morava ele, precariamente, em uma pensão enquanto iniciava a sua carreira como Promotor Interino. 

Por isso, minha mãe, minha irmã recém-nascida e eu ficávamos em Guaxupé (sul de Minas Gerais), na casa do meu avô materno, onde tínhamos todo o conforto e amparo.

Foi uma longa e inesquecível viagem de trem, dormindo no vagão-leito e chegando a São Paulo ao amanhecer.

Nascido na capital, saíra de lá ainda bebê e creio ter sido aquele o meu reencontro com a cidade, ainda acolhedora e tranquila, muito distante da megalópole desvairada que viria a se tornar.

Meu pai me pegava pela mão e levava por vários lugares, casas de amigos e parentes, ao velho Mappin, cinemas, restaurantes, a Catedral da Sé, que ele me disse ser parecida com uma outra, na França, chamada Notre Dame, onde vivia um corcunda, e que um dia eu visitaria.

Andávamos a pé ou pegávamos um bonde, o que era uma verdadeira delícia.

Eu já lia com alguma desenvoltura e numa das nossas viagens de bonde meu pai me mostrou um reclame em versos, e me ajudou a ler. Era o famoso e histórico reclame do “Rhum Creosotado”, criados — o reclame e o remédio — pelo talentosíssimo Ernesto de Souza (1864/1928 — Rio de Janeiro — RJ), compositor, teatrólogo, farmacêutico e instrumentista, pai do músico Gastão Penalva (pseudônimo de Sebastião de Souza), e avô de Maria Lúcia Dahl.

Ernesto de Souza fez fortuna como industrial farmacêutico principalmente devido ao sucesso popular do seu “Trinoz” e do “Rhum Creosotado”. Foi grande proprietário de terras no Rio de Janeiro estendendo-se suas propriedades desde a Rua Uruguai na Tijuca até o trecho que se tornou depois o bairro do Grajaú (Fonte: Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira).

Jamais me esqueci dos versos do reclame do “Rhum Creosotado” lidos no bonde.

Pesquisando, apenas para confirmá-los, na máquina do tempo da internet, em todos as páginas consultadas encontrei desse modo:

 

                                               “Veja ilustre passageiro

                                               O belo tipo faceiro

                                                Que o senhor tem a seu lado

                                               E, no entanto, acredite,

                                               Quase morreu de bronquite,

                                               Salvou-o o Rhum Creosotado”

 

Pois na minha memória há mais um verso, que se ajusta perfeitamente, até na métrica e nas rimas, com as redondilhas de Ernesto de Souza. A versão que guardo em mim é assim:

 

                                               “Veja ilustre passageiro

                                               O belo tipo faceiro

                                                Que o senhor tem a seu lado

                                               E, no entanto, acredite,

                                               Ainda o ano passado

                                               Quase morreu de bronquite,

                                               Salvou-o o Rhum Creosotado”

 

Onde terá ficado aquele verso perdido?

Existiu realmente ou se trata de uma criação da memória do menino?

Tenho eu 10 vezes mais anos de idade quando chamo agora meu pai para lhe perguntar sobre o verso perdido.

Ele acha que havia sim o verso (“e se não tinha, devia ter”, me adula), mas não tem certeza.

Jorge Luis Borges conta sobre uma tarde em que seu pai lhe disse algo muito triste sobre a memória:

 

“Pensei que podia recordar minha meninice quando pela primeira vez cheguei a Buenos Aires, mas agora sei que não posso, porque creio que se recordo algo, por exemplo, se hoje recordo algo desta manhã, obtenho uma imagem do que vi esta manhã. Porém se esta noite recordo algo desta manhã, o que então recordo não é a primeira imagem, mas a primeira imagem da memória. Assim é que, cada vez que recordo algo, não estou recordando realmente, e sim estou recordando a última vez que recordei, estou recordando uma última recordação. Assim é que na realidade não tenho em absoluto recordações nem imagens da minha meninice, da minha juventude.”

 

Não saberei, pois, se o verso perdido é uma recordação verdadeira da minha meninice ou apenas aquilo que remanesce da minha última recordação (que agora passa a ser esta).

 

 

A rua com seu nome

 

 

Lúcia Dibo

LÚCIA DIBO é amiga querida, daquelas bençãos que a lua cheia e a internet de vez em quando derramam sobre nós. Seus poemas refinados e sensíveis sempre me alumbram e havia muito pensava em lhe pedir permissão para publicá-los aqui. Ao ler mais este, deixei de lado o receio de incomodá-la ou constrangê-la e finalmente fiz o pedido. Eis o que me respondeu: “Gama querido, ele é todo seu! Isso me comove. Me avisaram hoje pela manhã que estão construindo uma escola que levará o nome do meu pai. Assim como a rua. Fiquei dolorida e nasceu o poema. Agora seu. Embora me pareça muita responsabilidade estar na sua escrita tão bela e de gente de peso fico feliz. Muito feliz!”. 

Felizes somos nós, do Estrela Binária, em receber tua tanta luz, Lúcia.

 

 

 

                                               A RUA COM SEU NOME

 

                                                                                                                               Lúcia Dibo

 

                                               amar a rua pequena.

 

                                               amar o silêncio da rua pequena.

 

                                               amar a extensão da vida assim

                                               calmante

                                               na geografia do seu desaparecimento.

 

                                               a curva mais bonita

                                               desenhando arcos de dor inútil.

 

                                               Amar o céu limpo

                                               sobre a rua pequena,

 

                                               mesmo não crendo

                                               em azuis alados.

 

rua pequena

 imagem: Yongjun Qin

 

 

Amor discreto…

 

 

“Mas embora agora eu te tenha perto 
Eu acho graça do meu pensamento 
A conduzir o nosso amor discreto 
Sim, amor discreto pra uma só pessoa 
Pois nem de leve sabes que eu te quero 
E me apraz essa ilusão à toa”

 

 

“Ilusão à toa” (Johnny Alf), Elis Regina

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=MvBrXgNUvCY[/youtube]

 

 

 

A troco de nada

 

     Selma Barcellos

Selma 2 

Selma (quelle surprise!) é apaixonada por Rubem Braga.

Conhece a fundo a obra e a vida do Velho Urso, que este ano se tornou centenário.

Dos muitos textos que ela tem publicado lá no seu Bloghetto, pincei este sobre uma delicada — e discreta —  paixão.

 

 

 

 

 

(Raymond Depardon)

 

“Ele foi apaixonado por ela. Não, apaixonado não é a palavra: era um bem querer que ultrapassava qualquer necessidade de tocar seu corpo e acabar na cama. Não que isso estivesse fora de cogitação, mas não era o objetivo final. Não havia objetivo algum, a não ser olhar e ir gostando, gostando. Gostando para nada, o que se naquele tempo já era difícil de entender, imagine hoje de explicar. (…)

O tempo passou: ele teve muitos casos, ela se casou algumas vezes, mas sempre que se encontravam guardavam um silêncio respeitoso sobre seus amores passados ou presentes. Esse era um assunto rigorosamente tabu, como se tivessem tido um caso de amor intenso. Até os amigos comuns percebiam a delicadeza do tema e disso não se falava. (…)

Muito tempo se passou e um dia, numa tarde de domingo, a troco de nada, começou a pensar nele. Por que, afinal, nunca tiveram nada um com o outro? Por quê?

Ficou pensando: se divertiu muito na vida, deu muita risada, fez muita bobagem, brincou infindáveis vezes de se apaixonar, machucou muito e foi muito machucada, mas sempre levou a sério algumas regras de conduta que nem ela sabia que tinha, mas que sempre respeitou. Uma delas é que não se pode brincar com os sentimentos dos outros, não quando eles são sérios; não com os de uma pessoa como ele.

Agora, na tal tarde de domingo, fica pensando em quanto gostaria que ele soubesse disso, que soubesse porque nunca houve nada, nem um braço encostado por acaso. Não que ele houvesse algum dia tentado, mas por certo gostaria; claro que gostaria.

Mas sente que não foi preciso; ele, que era incapaz de fingir ou mentir, sempre soube que ela, à sua maneira, também não.

No fundo ela sabe, sempre soube, que eles se gostaram e de certa maneira se amaram, no que isso tem de mais sério, de mais direito.

Foi só isso, e isso é muito.”

 

Trecho de um delicado depoimento que Danuza Leão escreveria, décadas mais tarde, sem jamais citar o nome do apaixonado. Li-o, encantada, em “Rubem Braga – Um cigano fazendeiro do ar”, cuidadosa biografia do cronista, escrita por Marco Antonio de Carvalho.

Sim, era Rubem aquele homem.

 

 

O vazio invade a mancha

 

  Adalberto de Oliveira Souza

Adalberto 2 (2)

 

 

 

 

 

 

 

(o vazio invade a mancha)

 

A mancha invade o vazio,

corrobora o quadro,

corrói o ambiente

silencioso,

denso,

compacto do quarto.

– O verão corrompe a neve.

Os reflexos sombrios vão(s),

não se eternizam,

decompõem-se por um desvio.

A sordidez marásmica

do recinto se deteriora.

Os pontos externos

ressentem-se desse ponto uno

(a mancha)

que os absorve.

 

Outro enorme vazio

vale o instante.

 

 Adalberto (imagem)

 

 

                                       (le vide envahit la tache)

 

                              La tache envahit le vide,

                              corrobore le tableau,

                              corrode l’ambiance

                              silencieuse,

                              dense,

                              compacte de la chambre

                              – l’été corrompt la neige.

                              Les reflets blafards s’en vont,

                              ils ne s’éternisent pas,

                              ils se décomposent

                              par une déviation.

                              La sordicité de l’enclos,

                              tombée dans le marasme,

                              se détériore.

                              Les points externes

                              se ressentent de ce point unique

                              (la tache)

                              qui les engloutit.

 

                              Un autre vide immense

                              vaut l’instant.