Posts from abril, 2013

O verso perdido

 

 

rum creosotado 3

 

 

Tinha eu 6 anos de idade quando meu pai me chamou para visitá-lo em São Paulo.

Morava ele, precariamente, em uma pensão enquanto iniciava a sua carreira como Promotor Interino. 

Por isso, minha mãe, minha irmã recém-nascida e eu ficávamos em Guaxupé (sul de Minas Gerais), na casa do meu avô materno, onde tínhamos todo o conforto e amparo.

Foi uma longa e inesquecível viagem de trem, dormindo no vagão-leito e chegando a São Paulo ao amanhecer.

Nascido na capital, saíra de lá ainda bebê e creio ter sido aquele o meu reencontro com a cidade, ainda acolhedora e tranquila, muito distante da megalópole desvairada que viria a se tornar.

Meu pai me pegava pela mão e levava por vários lugares, casas de amigos e parentes, ao velho Mappin, cinemas, restaurantes, a Catedral da Sé, que ele me disse ser parecida com uma outra, na França, chamada Notre Dame, onde vivia um corcunda, e que um dia eu visitaria.

Andávamos a pé ou pegávamos um bonde, o que era uma verdadeira delícia.

Eu já lia com alguma desenvoltura e numa das nossas viagens de bonde meu pai me mostrou um reclame em versos, e me ajudou a ler. Era o famoso e histórico reclame do “Rhum Creosotado”, criados — o reclame e o remédio — pelo talentosíssimo Ernesto de Souza (1864/1928 — Rio de Janeiro — RJ), compositor, teatrólogo, farmacêutico e instrumentista, pai do músico Gastão Penalva (pseudônimo de Sebastião de Souza), e avô de Maria Lúcia Dahl.

Ernesto de Souza fez fortuna como industrial farmacêutico principalmente devido ao sucesso popular do seu “Trinoz” e do “Rhum Creosotado”. Foi grande proprietário de terras no Rio de Janeiro estendendo-se suas propriedades desde a Rua Uruguai na Tijuca até o trecho que se tornou depois o bairro do Grajaú (Fonte: Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira).

Jamais me esqueci dos versos do reclame do “Rhum Creosotado” lidos no bonde.

Pesquisando, apenas para confirmá-los, na máquina do tempo da internet, em todos as páginas consultadas encontrei desse modo:

 

                                               “Veja ilustre passageiro

                                               O belo tipo faceiro

                                                Que o senhor tem a seu lado

                                               E, no entanto, acredite,

                                               Quase morreu de bronquite,

                                               Salvou-o o Rhum Creosotado”

 

Pois na minha memória há mais um verso, que se ajusta perfeitamente, até na métrica e nas rimas, com as redondilhas de Ernesto de Souza. A versão que guardo em mim é assim:

 

                                               “Veja ilustre passageiro

                                               O belo tipo faceiro

                                                Que o senhor tem a seu lado

                                               E, no entanto, acredite,

                                               Ainda o ano passado

                                               Quase morreu de bronquite,

                                               Salvou-o o Rhum Creosotado”

 

Onde terá ficado aquele verso perdido?

Existiu realmente ou se trata de uma criação da memória do menino?

Tenho eu 10 vezes mais anos de idade quando chamo agora meu pai para lhe perguntar sobre o verso perdido.

Ele acha que havia sim o verso (“e se não tinha, devia ter”, me adula), mas não tem certeza.

Jorge Luis Borges conta sobre uma tarde em que seu pai lhe disse algo muito triste sobre a memória:

 

“Pensei que podia recordar minha meninice quando pela primeira vez cheguei a Buenos Aires, mas agora sei que não posso, porque creio que se recordo algo, por exemplo, se hoje recordo algo desta manhã, obtenho uma imagem do que vi esta manhã. Porém se esta noite recordo algo desta manhã, o que então recordo não é a primeira imagem, mas a primeira imagem da memória. Assim é que, cada vez que recordo algo, não estou recordando realmente, e sim estou recordando a última vez que recordei, estou recordando uma última recordação. Assim é que na realidade não tenho em absoluto recordações nem imagens da minha meninice, da minha juventude.”

 

Não saberei, pois, se o verso perdido é uma recordação verdadeira da minha meninice ou apenas aquilo que remanesce da minha última recordação (que agora passa a ser esta).