Annibal Augusto Gama
Você suporta o próximo e ainda tem de suportar o longínquo, porque de vez em quando vem a notícia nos jornais, ou na televisão, de que na Índia, ou na África, estão morrendo de fome milhares de crianças. O distante não é difícil de suportar, ainda que você tenha pena dele e remorso. O duro mesmo é suportar o próximo. Daí a arte de suportar o próximo, que lhe vou ensinar.
O próximo mais próximo está dentro da sua casa, se é que você tem casa. Se você mora debaixo de um viaduto ou dentro de um tonel, há sempre um próximo no mesmo viaduto ou dentro de outro tonel. Mas vocês então são mendigos, e o jeito é ir levando, já que não levam nada, mas catam nas latas de lixo.
O próximo mais próximo de você é sua mulher, que até dorme na sua cama. Ou não dorme e exige de você o que você não tem vontade, porque trabalhou o dia inteiro e está cansado. De qualquer maneira, é preciso satisfazê-la, para depois você conseguir dormir. Satisfaça-a.
Mas você também terá na sua casa os filhos e as filhas. Eles e elas estão sempre exigindo. E você tem de arcar com as despesas deles, com o colégio, com o carro que eles esbarrondam a cada ano, com o dentista, com o médico, com a roupa, com a alimentação sobre a mesa, com o televisor ligado alto, com o estrondo do som em seus quartos, com as suas brigas e palavrões. E vem também a sua sogra, e você terá de a cumprimentar, dizendo-lhe: “Como está, Dona Emerenciana?” E ela lhe faz cara de raiva, indo ainda dizer à sua mulher: “O seu marido é um traste, não sei como você foi casar com ele”. O seu sogro é que é tolerável, embora lhe dê algumas facadas de vez em quando.
Se você é velho, terá os netos e os bisnetos, e é a mesma coisa. Vá aguentando, e servindo-os. A sua vingança é que, mais tarde, eles terão também os seus próximos.
O mais próximo de você mesmo, agarrado em você mesmo noite e dia, é você mesmo, e você tem de se suportar, o que não é nada fácil. Há até dias em que você terá vontade de se enforcar.
Há ainda os cachorros, o papagaio, os bichos domésticos que você suporta.
Suporta ainda o chefe da sua repartição, que lhe passa descomposturas, suporta o Delegado de Polícia, o Juiz de Direito, e o duro, duro mesmo de suportar é o Luiz Inácio, o Sarney e outros como eles.
Também há que suportar as filas nos Bancos, as filas de ônibus, a espera nos aeroportos, as buzinadas dos carros nas ruas, o vizinho que bate prego na parede às duas horas da madrugada.
Com o tempo, você aprende a suportar os desaforos, as doenças e a canalhice geral. Suportará o Brasil, os Estados Unidos da América do Norte, a China e o Afeganistão, e até o tango argentino.
Ame o próximo, ainda que ele feda.
Suporte a coceira, o calo que dói, as caspas, o dente que dói (se é que você ainda tem dentes)
Suporte, suporte, porque a vida é suportar. E ainda por cima, você vai para o inferno e tem de suportar o Diabo que o carregue.
“Conversa de Botequim” (Noel Rosa / Vadico), com Ivan Lins
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