Annibal Augusto Gama
Além de várias acepções, entre a quais a principal será “preparar o couro de modo a torná-lo imputrescível”, o verbo curtir admite a significação popular de “gozar a vida”.
A vida é saboreável, como a comida, a bebida. Os curtidores da vida estão nas praias, nos bares, em viagens. Vestem-se sumariamente, são barulhentos, arrojam-se às cotoveladas para pegar o primeiro lugar; arredam de si qualquer espécie de preocupação, não permanecem em casa, gostam do luxo, dos carros de último modelo, potentes, de uma aparelhagem complicada, não têm escrúpulos, são ricos porque se meteram em negociatas rendosas, ou herdaram dos pais grossa fortuna. Esbanjam. Ignoram os pobres, os sofredores, repelem-nos, não crêem em Deus nem no Diabo. A vida, para eles, é aproveitar. Têm muito zelo pelo corpo, cultivam-no em ginásticas, massagens. Enfim, são os gozadores.
Em cada época, o sabor da vida foi diferente. Na belle époque, o prazer era o chique, os espetáculos públicos, as festas, os restaurantes, os balneários, a aventura amorosa. Vestia-se de redingotes, cobria-se com a cartola, usava-se a bengala. As mulheres tinham indumentárias complicadas, peles caras, muitas joias, chapéus monumentais. O curioso é que esta gente toda se vestia quase sempre de preto.
Atualmente, prefere-se o despojamento. A nudez exibe o corpo. Também o peso variou: a gordura foi substituída pela magreza, pelas mulheres anoréxicas. Em Roma, no tempo do Império, eram os banhos, os banquetes, as comilanças com os homens deitados, a conversação. Não se andava. Os ricos, os nobres, eram carregados. Barbas derramadas, o Senado, as guerras de conquista. Na Idade Média, foram o ascetismo, as catedrais góticas, o recolhimento. Temia-se pelo fim do mundo. As classes sociais eram nitidamente separadas. O campo, os vilarejos, dependiam dos castelos, que eram fortalezas.
No Brasil, apesar dos regabofes que sempre houve, vagavam pelas ruas das cidades imundas, os escravos, submetidos aos trabalhos mais penosos pelos ricaços. A mucama abanava e fazia cafuné nas amas. Também os senhores levavam-na para a cama. Mas a frugalidade era quase geral; comia-se pouco e mal. Quase tudo era importado, até os botões e os palitos Fidalgo. O mais eram a rapadura, o queijo, as carnes. Os bandeirantes, os viajantes, passavam fome. Ainda hoje, a maioria da população passa, mas é diferente.
Os homens ricos são colecionadores, e colecionam toda sorte de bugigangas. Têm adegas de vinhos preciosos.
O sabor da vida depende do tempero que se lhe dá. Daí também as conquistas marítimas dos portugueses, em busca das especiarias. Ainda hoje se fala da pimenta do reino, e do queijo do reino; do bacalhau do Porto.
Champanhe e caviar, eis o prato predileto dos ricos. As comidas exóticas de Lucano, como a língua de rouxinóis.
Eu, por mim prefiro o frango ao molho pardo, ou de cabidela. Ou a feijoada, prato dos negros escravizados. Com uns goles de cachaça.
Gama, devemos curtir a vida o máximo possível, aproveitar todas as oportunidades que ela nos dá e viver intensamente, aproveitando e curtindo cada momento. De todos os geniais textos que seu pai escreve – e você tem para quem puxar, pois o talento é herdado dessa família maravilhosa -, este é mais um.
Abraçaço e boa semana.