Posts from agosto, 2014

A vida imita a arte

 

         Annibal Augusto Gama

Annibal fumando

 

 

 

 

 

 

Não sei se os leitores já viram o filme “O homem do terno branco”, com Alec Guiness. É a estória de um cientista maluco que trabalha anônimo no canto de um grande laboratório, sem que ninguém saiba. E descobre e fabrica um tecido que não suja. Jogue-se nele uma lata de piche ou de graxa, e o piche e a graxa escorrem, permanecendo imaculado o tecido. Com tal tecido, o cientista manda fazer um terno branco, impecável, que nunca amassa nem suja. A princípio, os donos das indústrias de tecidos ficam entusiasmados. Até que são alertados pelo mais velho deles: aquela descoberta será a falência de todos. Daí, o inventor passa a ser perseguido  dia e noite, para lhe destruírem o terno branco e a sua fórmula de fabricar o tecido com que foi feito.

Pois li dia desses sobre a invenção, nos EUA, de um tecido, ou “superfície omnifóbica”, feito de material que resiste não apenas à água, e não é manchado por óleo ou gasolina. Tudo escorre sobre tal tecido ou superfície, sem deixar mancha ou sujeira nenhuma. 

É a ciência imitando a arte. Acho que se pode inventar tudo, até as coisas mais mirabolantes. Talvez já se tenha inventado demais, nossa existência está cheia de bugigangas espantosas. Olhem ao redor e verão. Um novo produto destrói o outro que o antecedeu. É a riqueza de uns e a desgraça de outros. Nem por isso a vida e o mundo melhoraram.

O que não se inventa, e andam cada vez mais escassos, é a bondade, o amor, o desprendimento e a paz. 

Seu Amadeu diz a Dinorá:

─ Estou cogitando em inventar uma nova forma de fazer amor.

E ela lhe responde:

─ Não, bem, não invente não.  A que temos é ainda a melhor. E sempre será.

 

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“É, meu amigo, só resta uma certeza,
é preciso acabar com essa tristeza
É preciso inventar de novo o amor” 

 

 

 

O visitante

 

 

 

 

Ele bateu à porta na véspera do dia dos pais.

Passava da meia-noite, e a inesperada presença o incomodou.

Depois de tanto tempo, por que foi aparecer logo agora?

Lembrava-se de que ele desprezava essas datas comemorativas, forjadas por interesses comerciais. Acabou por ter a mesma conduta, sempre repetindo à família que não queria festejos, nem presentes.

Sabia, porém, que era inútil. Amanhã a casa seria tomada pela turba ruidosa de filhos, genros, noras e netos. No fundo, isso não o desagradava, apenas não via sentido em ser homenageado pela simples condição de pai.

Mantiveram uma relação tempestuosa durante toda a vida, com inúmeros conflitos e poucos pontos de convergência, o que talvez explicasse o distanciamento gradual, que um dia se tornou definitivo.

Fitando-se de perto, verificou que, passados os anos, ele parecia o mesmo do retrato no canto da parede. A mesma fronte alta, com cabelos ralos e embranquecidos, mas volumosos e encaracolados nas laterais e na nuca. O mesmo olhar ressabiado, o mesmo esboço de sorriso, com algo de sarcástico. As mesmas mãos de palmas largas e dedos curtos, “mãos de semeador”, costumava ele dizer. Apresentava ainda a mesma inquietude, o mesmo andar apressado, o mesmo jeito de sentar e balançar as pernas.

A voz também era quase a mesma, mas não era preciso falar. Ele sempre apreciara o silêncio da noite.

De vez em quando ele se levantava, ia até ao banheiro, ou à cozinha tomar água e café. De volta à sala, remexia nos livros da estante, folheava, lia algumas páginas, antes de recolocar na prateleira.

Acabou por adormecer na poltrona, com um livro entreaberto nas mãos.

Amanhecia quando finalmente resolveu se deitar.

Ao entrar no quarto e acender a luz, o espelho do armário trocou com ele o mesmo olhar do retrato no canto da parede da sala.

 

 

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Quiçá

 

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                                                   QUIÇÁ

 

                                   Para explicá-la

                                   seria preciso desenhar nuvens

                                   que nunca são as mesmas

                                   e se tornam outras

                                   adiante do traçado.

 

                                   Para concebê-la

                                   seria preciso compreender o acaso,

                                   intangível como todos os ocasos.

 

                                   Resta segui-la

                                   no seu rastro pela estrada

                                   estrela, grão de areia, poeira, nada.

 

 

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