Selma Couri Barcellos, que conheci pela internet e se tornou uma querida amiga, tem um blog maravilhoso, cujo link se encontra ao lado e merece ser visitado diariamente.
Embora sempre nos reserve surpresas deliciosas e arrebatadoras com sua extraordinária sensibilidade, seu bom humor e talento de ser, há poucos dias superou-se com a descoberta e postagem de um vídeo tão raro quanto precioso, produzido pelo Instituto Nacional do Livro em 1959, com roteiro e direção de Joaquim Pedro de Andrade, tendo nada menos do que Domingos de Oliveira como assistente.
Trata-se de um pequeno documentário primoroso em que transitamos ao lado de Manuel Bandeira, acompanhando o poeta nas prosaicas atividades do seu cotidiano de uma simplicidade franciscana, ir até à mercaria para comprar o leite em garrafa (atenção para a célebre tossinha de tísico profissional, enquanto aguarda), e depois, já em casa e vestindo o robe, esquentá-lo, torrar o pão e saboreá-los diante da janela aberta para o mundo.
Atender ao telefone, conversar com alguém (quem seria?) e abrir o largo sorriso dentuço e cativante, desvestir o pijama, calçar as meias, dar o nó na gravata e, de terno composto, sair para a rua, comprar o jornal do dia (quase que se esquece do troco), cumprimentar efusivamente um amigo com o qual cruza (quem seria?). Tudo isso com sua voz tão característica ao fundo, dizendo alguns de seus inesquecíveis poemas.
E aquele engenho de marcenaria, que se desloca e lhe permite escrever confortavelmente recostado na cama? A máquina portátil (ainda conservo uma, parecidíssima, que foi a minha primeira), as lindas estantes com seus livros e objetos de estimação, o apartamento de solteirão, com cada coisa em seu lugar.
Poderia ser aquele mesmo quarto por ele eternizado em Última Canção do Beco. Façamos de conta que sim.
Beco que cantei num dístico
Cheio de elipses mentais,
Beco das minhas tristezas,
Das minhas perplexidades
(Mas também dos meus amôres,
Dos meus beijos, dos meus sonhos)
Adeus para nunca mais!
Vão demolir esta casa.
Mas meu quarto vai ficar,
Não como forma imperfeita
Neste mundo de aparências:
Vai ficar na eternindade,
Com seus livros, com seus quadros,
Intacto, suspenso no ar!
Beco das sarças de fogo,
Das paixões sem amanhãs,
Quanta luz mediterrânea
No esplendor da adolescência
Não recolheu nestas pedras
O orvalho das madrugadas,
A pureza das manhãs!
Beco das minhas tristezas
Não me envergonhei de ti!
Foste rua de mulheres?
Todas são filhas de Deus!
Dantes foram carmelitas…
E eras só de pobres quando
Pobre, vim morar aqui.
Lapa — Lapa do Destêrro —
Lapa que tanto pecais!
(Mas quando bate seis horas,
Na primeira voz dos sinos,
Como na voz que anunciava
A conceição de Maria,
Que graças angelicais!)
Nossa Senhora do Carmo,
De lá de cima do altar,
Pede esmola para os pobres,
Para mulheres tão tristes,
Para mulheres tão negras,
Que vêm nas portas do templo
De noite se agasalhar.
Beco que nasceste à sombra
De paredes conventuais,
És como a vida que é santa,
Pesar de todas as quedas.
Por isso te amei constante,
E canto para dizer-te
Adeus para nunca mais!
Consta que Manuel Bandeira gostava de ser fotografado e de posar para amigos pintores (ao lado um desenho de Portinari), daí talvez o completo à vontade em que se apresenta no filme.
Para ir direto ao post da Selma e assistir ao vídeo (imperdível, acho que já o vi umas vinte vezes), basta clicar aqui.
Uma vez, quando eu já detestava o carnaval, passei aqueles dias todos com uma coletânea muito boa de Manuel Bandeira. Foi o melhor carnaval da minha vida…
Dentro dessa riqueza toda que o poeta nos legou, tem um poema bem simples, pequenino, de que gosto muito, porque me faz relembrar meu Professor Teixeira, declamando-o, deixando muita coisa no ar, como sempre acontece com os bons escritos:
“Irene no Céu
Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.
Imagino Irene entrando no céu:
– Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
– Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.”