Amor aos pedaços

 

 

 

 Para Regina e Calato, mestres da arte de juntar cacos e corações

 

 

 

                              Com o coração despedaçado, levou a vida inteira juntando os cacos.

                              Deixou a família, a casa, o emprego, os amigos, e se foi catando os cacos por ruas, vielas, becos, jardins, dia e noite.

                              Um caco aqui, outro acolá, ia vivendo aos cacos.

                              Pouco a pouco ficou um caco, o cabelo e a barba desgrenhados, as roupas rotas, os sapatos furados, mas ele seguiu catando os cacos.

                              Tornou-se a figura folclórica da cidade. Sabiam que era incapaz de fazer mal a alguém, mas as mães ameaçavam os filhos rebeldes:

                              — Se você não comer tudo, eu chamo o catador de cacos para te levar no saco.

                              E as crianças logo devoravam os brócolis, as vagens, os quiabos, os espinafres e os jilós.

                              Já muito velho e carcomido, com o saco cheio, um dia o coração partido espatifou de vez.

                              Até então não havia conferido os cacos catados. Acostumara-se a catá-los simplesmente.

                              De joelhos, antes de desfalecer, juntou as últimas forças e despejou o saco, mas não percebeu que de lá caíam estrelas, luares, raios de sol, entardeceres, alvoreceres, flores, borboletas e pássaros, sorrisos e olhares em meio aos cacos.

                              Com os olhos baços, só viu que à frente de si tinha um cacófato (que lhe serviu de sarcófago).

 

 

 

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=izmVLk6eh6c]

 

 

Veja no link abaixo alguns cacos dos trabalhos da Regina e do Calato

http://www.arteoficiomosaicos.com.br/

 

 

 

7 comentários

  1. Brenno
    05/09/12 at 16:54

    Era uma vez, há muito tempo, numa época como essa (era 7 de setembro), numa pequena cidade do interior, de um empoeirado armazém de sacarias… saíam estranhas criaturas empoeiradas (músicos? cantores? lutadores?) e se misturavam com os nativos que assistiam à parada militar. E também assustavam as criancinhas. Ali se iniciava sua missão: catar cacos. Passados, presentes e futuros. E continuam nessa labuta até hoje. Menos empoeirados, talvez… talvez mais apaixonados. Hoje há mais fartura. Hoje há mais ternura. Há abundância de matéria prima para a poesia… para as canções. Cacos.

  2. Brenno
    05/09/12 at 16:59

    Belíssima homenagem aos queridos Regina e Calato,
    que enobrecem a essência dos cacos
    em seu maravilhoso artefato.
    Parabéns, parceiro…
    compartlho esse ato.

  3. André
    05/09/12 at 19:13

    Concordo plenamente com o Brenno… a homenagem a Regina e Calato é muito bonita, mas o caco de um coração também pode significar um amor não correspondido, desses que penetram no âmago da alma.
    “O amor é a coisa mais triste quando se desfaz…”
    Abraços,
    André

  4. CONCORDO ANDRE…

  5. sonia kahawach
    06/09/12 at 10:08

    De uma forma ou outra, passamos a vida juntando os cacos.
    Por vezes só pra juntar, outras pra remontar e outras nem sabemos como encaixar.
    Transformar os cacos em arte é muito especial.  

  6. 06/09/12 at 10:29

    “… mas não percebeu que de lá caíam estrelas, luares, raios de sol, entardeceres, alvoreceres, flores, borboletas e pássaros, sorrisos e olhares em meio aos cacos.” Bom seria como nos filmes: que a cena rodasse ao contrário, o homem acordasse para tanto desperdício e de sua infinita tristeza acontecesse algum você…  
    Linda crônica! (comme d’habitude)
    Tom, Vina e Joãozinho… 

    Um encanto o trabalho dos artistas linkados, sobretudo o do casario (Paraty?).

    Beijocas!
     

  7. Lilian Tanajura
    07/09/12 at 0:21

    Maravilhoso participar deste blog! Além de seu autor, os comentários, um a um, vão revelando a sensibilidade dos leitores, que se manifestam lindamente, talvez enaltecidos pela fina percepção e facilidade de expressão daquele que aqui nos reúne.
    Assim que sai o post, leio. Então, fico sem saber o que dizer, tamanha é a gratificação despertada pela descoberta de mais um tesouro, desta vez simbolizado pelos inúmeros cacos que vamos juntando de tudo o que se pode quebrar ao longo desta vida.
    Daí a constatação de que, mesmo aos pedaços, somos bastante ricos neste mundo, e que… viver vale as penas!   

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