João Brigão (e a história de um plágio)

         

 

              

                        Nos últimos meses dormia mal, acordando de tempo em tempo.

                        Não era coisa da idade, embora já fosse um senhor da melhor idade, como deram de chamar a velhice.

                        Tudo por causa do vizinho Virgulino, com quem se meteu numa briga feia, que lhe escangalhou uma perna e o deixou manco, ou portador de deficiência, como também se diz agora.

                        Desde então, sua vingança diária era acordar antes de Virgulino para perturbá-lo e humilhá-lo.

                        Chacoalhou a cabeça para espantar o resto de sono e saiu de mansinho para o quintal, manquitolando. Olhou para o céu, de um azul profundo, ainda cheio de estrelas. Mas sua experiência lhe dizia que lá adiante, onde a vista não alcança, o amanhecer se espreguiçava.

                        Acomodou-se, estufou o peito, enchendo os pulmões de ar, bateu as asas e o seu canto saiu forte e retumbante, como de um tenor, ribombando longe.

                        Alguém protestou e o xingou, porém isso não tinha a menor importância. Mais uma vez dera uma lição ao Virgulino, que só então vinha para fora, esbaforido, para esganiçar seu canto mixuruca e rouquenho.

                        Por volta do meio-dia, quando passeava orgulhoso pelo terreiro, exibindo-se para as galinhas matronas e algumas franguinhas que já estavam no ponto, foi subitamente agarrado e enfiado num saco.

                        Pensou no pior, que sua hora tinha chegado e que iria acabar numa panela, para alegria do Virgulino.

                        Felizmente não era nada disso.

                        Apenas foi levado para um sítio distante, parecido com o lugar onde tinha nascido e passado a juventude.

                        Veio a saber depois que  foi mandado para  lá  por reclamações da vizinhança, que não suportava mais o seu canto potente e madrugador.

                        Mas não se queixa da nova vida. Não tem mais o Virgulino por perto, e o terreiro é enorme, com muitas galinhas e franguinhas viçosas. Há uns garnisés borra-botas que, mesmo estando ele manco, o respeitam e não se atrevem a enfrentá-lo.

                        Em vez de comer apenas ração, pode agora ciscar à vontade e se fartar com as guloseimas de que mais gosta. Dizem que a vida na natureza, comendo produtos orgânicos, é muito mais saudável e prolonga a existência.

                        Espera viver muitos anos mais, como o dono do terreiro.

 

 

A história do plágio:     Ao ler o jornal pela manhã, deparei com uma ótima matéria, da jornalista Laura Capriglione e da repórter-fotográfica Marlene Bergamo, em que também colaboraram Iuri de Castro Torres e Jean-Philip Struck (Folha de S. Paulo, 6/11/2009, Briga do galo, Especial C5), que relata a desventura do galo João, que vivia na companhia do galo Virgulino, na escola Érico de Abreu Sodré, no bairro da Saúde, zona sul de São Paulo, a qual criou uma horta e um galinheiro para que os alunos aprendam e convivam com os canteiros e os galináceos. A escola, que conta com 380 alunos, dos quais 28 são especiais, com dificuldades de aprendizado e síndromes diversas, tem superado as metas de desempenho fixadas pela Secretaria do Estado. Mas diante de insistentes reclamações de alguns vizinhos, incomodados com a cantoria do galo João, ele foi provisoriamente exilado em um sítio no interior. Agora os vizinhos impertinentes passaram a reclamar também do galo Virgulino que, segundo dizem, sem a concorrência do galo João, passou a cantar mais forte do que nunca. Em contrapartida, outros moradores menos ranzinzas e os alunos fazem campanha pela volta do galo João. Depois de ler a reportagem, não resisti e corri a escrevinhar as linhas acima para o blog. Ao terminar o texto fiquei com a forte impressão de que havia plagiado alguém, de que já havia lido algo semelhante em algum lugar. Pensei inicialmente nos escritos do meu pai, que produz num ritmo quase frenético e me concede o privilégio de ler a maior parte em primeira mão. Mas depois de algum tempo saltou-me à lembrança o grande Mário Palmério (que anda completamente esquecido) e o seu delicioso romance Vila dos Confins, que se passa durante a campanha de uma eleição num pequeno lugarejo nos confins de Minas Gerais. Fui ao livro e lá estava: na abertura do capítulo 8 os dissabores do galo João Fanhoso, já velho e meio caduco, que comete o fiasco de cantar antes da hora. Ao reler o trecho, constatei que fizera um pastiche do mestre. Mesmo assim resolvi, com esta ressalva e mea-culpa, publicar o post, que pelo menos servirá para aguçar a curiosidade dos que me leem e lhes valer de recomendação da matéria jornalística e do romance, ambos excelentes.

 

 

Um comentário

  1. Lilian
    06/11/09 at 22:47

    Dizem que tudo já foi inventado, escrito, dito ou, pelo menos, pensado. Então, o que podemos mudar, são as maneiras de expressar o que pretendemos, porque vezes sem conta nos deparamos com algo já visto, não se sabendo onde ou quando.
    Já percebi isto até num grande escritor brasileiro, mestre e grande vendedor de inúmeros livros de auto-ajuda da atualidade. No início foi um “choque”, porque eu o imaginava um gênio, o que ele realmente deve ser, na arte de criar livros, palestras e coisas do gênero, que tanto público tem atraído.
    O fato é que ele bebeu de outras fontes. E, por acaso, descobri, uma dessas fontes. Entretanto, a “fonte”, que seria a originária, descreve em um de seus livros (mega best seller internacional) como a idéia surgiu (de outras pessoas). Ou seja, parece que todos se banham nas águas do conhecimento. E ele vem de longe, rolando pelas “areias do tempo” (expressão cunhada por Sidney Sheldon ou seus tradutores) . A sabedoria fica sendo, então, dar um “novo” enfoque (compilando dados, por exemplo, o que deve ser meio trabalhoso) ao que outros já disseram anteriormente. Mas deve valer a pena (e render muiiiiiito dinheiro…)

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