La main de Dieu

                       

 

“Tudo o que sei sobre moral e as obrigações do homem devo ao que aprendi no Racing Universitaire de Argel” (Albert Camus)

 

                        No post anterior, referi de passagem à paixão de Camus pelo futebol. Ele foi goleiro do Racing Universitaire de Argel durante dois anos e as crônicas a época fazem referência à sua bravura e ao seu espírito de liderança em campo. Só não seguiu a carreira esportiva porque ficou tuberculoso.

                        Ocorreu-me depois o que diria Camus, com a sua generosa humanidade e senso ético apurado, sobre a conduta do jogador da seleção francesa, Thierry Henry, que no finalzinho da partida contra a Irlanda ajeitou descaradamente a bola com a mão e fez o passe para o gol salvador, que classificou Les Bleus para a Copa de 2010 (veja aqui).

                        As imagens de televisão não deixam dúvida quanto à irregularidade, admitida pelo próprio Henry. Mesmo assim a FIFA ainda não sabe o que fazer. Fala-se em anular a partida e determinar que se jogue outra, o que de todo modo favoreceria a França, que estava perdendo e no desespero já nos minutos de acréscimo dados pelo árbitro.

                        O acontecimento pode parecer prosaico para se discutir sobre certo e errado, bem e mal, livre arbítrio, o imperativo categórico de Kant, mas a filosofia não deve ser reservada ao empíreo, e sim servir ao dia a dia humano. Camus, com seu talento e sensibilidade, certamente escreveria um grande texto a partir desse fato aparentemente banal.

                        Em O mito de Sísifo, um dos seus melhores ensaios, escrito durante a Segunda Guerra Mundial, Camus trata do trágico impasse da condição humana. Segundo a lenda grega, Sísifo era um rei que havia ofendido Zeus, e como punição foi condenado a rolar uma enorme pedra até o cume de um monte íngreme. Cada vez que ele chegava ao topo, a pedra rolava morro abaixo, obrigando Sísifo a recomeçar, indefinidamente.

                        Para Camus, o homem, assim como Sísifo, se vê jogado em uma existência marcada pelo absurdo e pela fragilidade, limitada nos dois extremos pelo inútil ou pelo nada. Só lhe resta, pois, tentar viver dignamente, com lucidez e heroísmo, ainda que a vida possa ser desprovida de significado.

                        Como estou muito longe da maestria de Camus, no plano da minha mediocridade a atitude de Henry me leva a refletir mais uma vez sobre o significado épico do futebol, de que já tratei antes aqui.

                        Como na mitológica guerra de Tróia, em que os gregos só derrotaram os troianos graças ao ardil do cavalo de pau, a seleção francesa triunfou mercê da artimanha de um dos seus guerreiros.

                        Tão temperamentais quanto os deuses do Olimpo são os deuses do futebol, e nisso está toda a graça desse esporte, talvez o único em que o mais forte e o melhor nem sempre vence. As chamadas zebras acontecem com frequência, ao contrário do que ocorre no basquete, no vôlei, no tênis e em todas as outras modalidades esportivas, nas quais a vitória do mais fraco é raríssima.

                        Por isso mesmo sou radicalmente contra o uso de recursos eletrônicos no futebol, como defendem muitos, para dirimir as decisões duvidosas dos árbitros. Creio também que será um grande erro modificar a regra do impedimento ou considerar como falta o simples toque da bola na mão ou no braço, com ou sem intenção, como é costume  nas peladas, mas apenas por questão prática, à falta da figura do árbitro e para evitar que as discussões intermináveis acabem com a brincadeira.

                        Sem as controvérsias, as marcações duvidosas, até mesmo sem as vitórias e derrotas injustas que propicia, o futebol perderia o seu encanto único e se igualaria a todos os demais esportes. Diferentemente desses outros, em que as interrupções fazem parte do desenvolvimento da partida (para sacar, para trocar de lado, para combinar as jogadas e mudar o time todo, como no futebol americano, para descansar entre os assaltos, como no box ou em outras lutas), o jogo de futebol é um continuum que seria ferido de morte por paralisações constantes.

                        O que talvez seja aceitável é aumentar o número de auxiliares ou bandeirinhas, para postar mais um ou dois atrás das metas. Mesmo o tal de chip eletrônico na bola para sinalizar se ela atravessou a linha de gol não me entusiasma.

                        Até hoje se discute se a bola entrou ou não no gol marcado pela Inglaterra na final contra a Alemanha, na Copa de 1966. E sobre La mano de Dios de Maradona, na Copa de 1986, contra a mesma Inglaterra, que assim se viu punida pelos mesmos deuses do futebol vinte anos depois.

                        Temos agora La main de Dieu de Henry, que por certo também passará para a história mítica do futebol

                        Isso significa que no futebol a ética não entra em campo?

                        Não se trata disso. O sentido ético é o sentido que se dá à própria existência e ao mundo, em todos os seus aspectos.

                        Apesar disso, o futebol, como representação do humano, revela que na vida a ética nem sempre prevalece.

                        Os gregos venceram a guerra contra Tróia, Aquiles e Ulisses são tidos como heróis, e quase ninguém se lembra do ético Heitor, como poucos se lembrarão do goleiro ou dos zagueiros da Irlanda, ludibriados por Henry. Aliás, alguém se recorda o nome do goleiro da Inglaterra que disputou a bola com Maradona?

                        Assim é a vida. Essa, a lição.

                        A cada um caberá sempre a escolha.

                        Esse, o dilema.

 

 

Um comentário

  1. Lilian
    27/11/09 at 23:54

    Logo no início do filme Tróia, a mãe pergunta a Aquiles o que ele prefere: tornar-se imortal com as vitórias de um guerreiro, ou ser mais um, entre tantos, “pai de família” (não com essas palavras, claro). Ele não soube responder. Mas, assim que Ulisses (sempre ele) entrou em cena, convenceu rapidinho o homem a ir pra luta.
    Então, na verdade, Aquiles não teria feito uma escolha; ele foi mais um dos ludibriados por Ulisses… rsrs (não sei como um homem “quase vil” teve a sorte de se casar com uma mulher tão maravilhosa quanto Penélope… talvez tenham ficado juntos por terem se separado por tanto tempo… Até nas cartas do Tarot eles, Penélope e Ulisses, estão separados, ela como Rainha de Paus, ele como Rei de Espadas – isto deve significar “alguma” coisa…)
    Então, na verdade, acredito que não haja dilema algum ou qualquer escolha a ser feita depois que já estamos em campo. Tudo foi decidido bem antes, estando submerso nas profundezas do nosso inconsciente, mas brilhando, como a luz do dia, na expressão do nosso caráter.
    Maradona ou o “esquecido”? Heitor ou Ulisses? – O que importa? No palco da vida, da história, existe lugar para todos. Para os que serão lembrados e também para os que descansarão em paz. (Particularmente, acho que “descansar em paz” seja melhor, se houver esta opção.)

Deixe um comentário

Yay! You have decided to leave a comment. That is fantastic! Please keep in mind that comments are moderated. Thanks for dropping by!