Ah, esses portugueses!

 

 

                        Conta-se, não sei se é vero, que o grande Luciano Pavarotti tinha uma profunda e sincera admiração pelos seus dois não menos admiráveis companheiros, José Carreras e Plácido Domingo, a qual expressava de maneira singela, quase num suspiro:

                        — Ah, esses espanhóis!

                        A propósito, não concordo com as críticas feitas às apresentações conjunta promovidas pelos três, tachadas por alguns de apelativas, marqueteiras e mercantilistas, com a mistura do bel canto com canções populares.

                        Não vejo mal algum nisso, muito pelo contrário. Proporcionar ao público menos afeito à ópera e à música clássica assistir e ouvir a tão excepcionais tenores é uma forma inteligente de educar os ouvidos moucos, entorpecidos pela praga do bate-estacas e, no nosso caso, ainda dos falsos sertanejos e pagodeiros, dos trovejantes trios elétricos da axé music.

                        O timbre aveludado de Pavarotti e suas interpretações carregadas de emoção me agradam mais, embora os experts digam que Carreras e Domingo teriam técnica mais apurada.

                        Quando me deparo com alguns escritores portugueses, em especial aqueles que ainda não conhecia e passam a me encantar, não resisto a parafrasear Pavarotti:

                        — Ah, esses portugueses!

                        Foi o que me disse e aos meus botões enquanto lia as mais de seiscentas páginas do primoroso romance de Miguel Sousa Tavares, Rio das Flores.

                        O livro narra a saga da família alentejana e aristocrática dos Ribera Flores, a partir de 1915, quando o patriarca Manuel Custódio, latifundiário e monarquista, leva o filho mais velho, Diogo, a ver uma tourada em Sevilha e a ter sua primeira e sempre aflitiva experiência sexual, dizendo secamente, após lhe indagar a idade (quinze anos):

                        — Hum,  já tens idade para te fazeres homem. Vens connosco também.

                        Não estranhem o “connosco”, pois que o livro mantém a ortografia de Portugal e o modo de falar da época, sem maiores dificuldades para que entendamos. Antes nos saboreamos com as expressões deliciosas e o vigor do português lusitano.

                        Permeando a narrativa, em que se confrontam dois irmãos de temperamentos díspares — Diogo, o mais velho, sensível, reflexivo, libertário, com ânsia pelo novo, e Pedro, o caçula, saído ao pai, telúrico, conservador, impetuoso e destemido —, mas que se amam e respeitam, o romance transcorre entre a  primeira República portuguesa e a Segunda Guerra Mundial, e transpõe as fronteiras de Portugal e da própria Europa, chegando até o Brasil, para onde Diogo vem (na primeira vez, num voo transatlântico a bordo do Hindenburg ), enquanto Pedro se envolve na Guerra Civil Espanhola, lutando ao lado dos franquistas.

                        O ambiente histórico dos Estados totalitários de Salazar, Franco e Vargas (Stálin e Mussolini, de passagem) é revivido com base em rigorosa pesquisa e vasta bibliografia consultada pelo autor, que ao final anota:

 

“Este não é um livro de história mas sim um romance histórico. Nele convivem personagens reais com outros fictícios, acontecimentos reais com outros ficcionados. Todavia, o que é histórico — nomes, lugares, factos — corresponde rigorosamente ao que aconteceu e resulta da pesquisa extraída da bibliografia adiante referenciada ou feita localmente por mim. Todas as passagens escritas entre aspas são verídicas e textuais, mas certos acontecimentos reais e de importância menor ocorreram em datas não exatamente coincidentes com as que referidas ou implícitas no texto, de modo a fazê-los coincidir com a cronologia romanesca. Isso, porém, não implica nem com a sua veracidade, nem com o contexto em que sucederam.”

 

                        Há páginas simplesmente antológicas (em especial no capítulo VII), em que por intermédio de Diogo (que parece lhe fazer as vezes de alter ego, pelo menos nesse aspecto) o autor discorre sobre a ascensão de Salazar e o regime de arbítrio que  de modo paulatino e  matreiro  impôs a Portugal  — a exemplo do que ocorreu em muitos outros países naqueles tempos, incluindo o Brasil —, pelo descortino, pela agudeza do  juízo crítico e a contundência devastadora contra todos os tiranos e ditaduras, que no fundo são muito semelhantes, farinhas do mesmo saco.

                        Mas o romance não se restringe ao universo masculino, então preponderante, incursionando pelo pequeno e pedregoso planeta feminino, no qual orbitam personagens dignas de integrar qualquer panteão literário, como a matriarca Maria da Glória, recolhida na sua viuvez precoce e condenada ao estiolamento do corpo e da sexualidade:

 

“Então, era aquilo a viuvez! Fazer de conta que não estremecia, fingir que não pensava, esforçar-se por sentir apenas, nas noites de Inverno, o frio que dividia consigo a cama e não a ausência do homem que outrora a dividira, e, nas noites de Verão, convencer-se de que era só a natureza, lá fora, que acordava para a vida e não o seu corpo oficialmente adormecido para todo o sempre!”

 

                        Há ainda a figura esplendorosa da cigana Amparo, filha de um antigo rendeiro dos Ribera Flores, a qual  mercê da sua beleza, sensualidade, brejeirice e intuitiva inteligência, recebe uma aliança de ouro de lei, tendo como testemunha a melhor sociedade de Entremoz, e assim ingressa no clã para nele permanecer como se ali sempre fora o seu lugar.

                        Nem se pode esquecer da negra e brasileira Benedita, não menos capaz de mudar os rumos da própria vida e dos Ribera Flores.

                       

Miguel Sousa Tavares, nascido no Porto em 1952, formou-se em Direito, que logo trocou pelo jornalismo, e hoje é colunista do jornal Público (um dos mais progressistas e respeitados de Portugal atualmente), além de comentarista da TV1.

 

                        Talvez em decorrência da sua formação jornalística, o seu texto flui num caudal, sem os contorcionismos estilísticos de um Saramago ou Lobo Antunes, que às vezes me enfadam.

                        Por isso, mal acabei de ler Rio da Flores, corri a comprar o seu romance anterior, Equador, que o consagrou em Portugal, onde já vendeu cerca de 250 mil exemplares.

                        Equador, com mais de 500 páginas que também fluem prazerosamente, retrata a sociedade portuguesa nos estertores da Monarquia, e a sua política estúpida e retrógada nas colônias d’África, especialmente nas ilhotas de Santo Tomé e Príncipe, para onde o protagonista Luís Bernardo Valença  é mandado pelo el-rei D. Carlos, como governador numa missão patriótica de quase impossível sucesso, que é a de mudar as velhas e arraigadas práticas de cunho escravagista, que os novos tempos já não toleram, mas persistem naqueles confins sob o manto hipócrita da dissimulação.

                        Pode-se ter uma ideia do choque de Luís Bernardo, acostumado à vinda mundana e despreocupada de Lisboa (mas que pouco a pouco desenvolverá um entranhado amor pela colônia e sua pobre gente, de que se viu governador), num trecho da primeira carta que escreve ao seu grande amigo João, assim que desembarca em São Tomé:

 

“Caríssimo João,

Cheguei (hoje), pouco vi e nada venci — antes pelo contrário. Não sei se sou eu que vencerei as ilhas ou elas que me vencerão a mim. Sei que tenho esta estranha sensação de ter passado uma eternidade desde que saí de Lisboa, uma eternidade desde que hoje, de manhã, desembarquei aqui, em S. Tomé.

[…]

Mas hoje, nesta primeira noite, não te quero falar disso. Queria apenas dar-te conta da primeira impressão que sente um inocente português que sai diretamente do Chiado para uma aldeia metida dentro da selva e deixada à deriva no meio do Atlântico, à latitude do Equador: sente-se esmagado pela chuva, derretido pelo calor e pela humidade, comido vivo pelos mosquitos, espantado pelo medo. E sinto, João, uma imensa e desmedida solidão.”

  

                        Calha registrar, ainda, uma instigante curiosidade que o autor nos oferece na abertura do livro:

 

“Equador: linha que divide a Terra em hemisfério norte e sul. Linha simbólica de demarcação, de fronteira entre dois mundos. Possível contracção da expressão “é com a dor” (“é-cum-a-dor”, em português antigo)”

 

                        Tenho lido muito. Alguns bons livros, outros, nem tanto, e parte deles acabo pondo de lado. Posso dizer que  Rio das Flores e Equador foram sem dúvida dois dos melhores que li nos últimos tempos, a ponto de me sentir melancólico ao final da última pagina, como se me despedisse de um novo e querido amigo, já ansioso para reencontrá-lo o mais breve possível.

                         

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

2 comentários

  1. 08/02/10 at 8:26

    Está na minha fila esse que foi presente do senhor. “A Morte do Gourmet”, tradução ruim do título original “Uma Guloseima”, é excelente, com 120 páginas é um tratado à língua, aos sabores, texturas, com a leveza da Madeleine de Proust, cujos sete livros são tudo, menos leves e atraentes.

    • Antonio Carlos
      08/02/10 at 17:18

      Fico contente de você ter gostado de “A Morte do Gourmet” (apesar de realmente ser infeliz a “tradução” (?) ou recriação do título original).

      Quanto aos livros do Miguel Sousa Tavares reconheço que não é fácil nem atraente nestes tempos de falta de tempo começar a ler um calhamaço. Mas vale a pena. Depois de algumas páginas, nos envolvemos com o ambiente do romance e não conseguimos mais parar.

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