“Mas o piedoso Enéias estendia a sua direita desarmada, e com a sua cabeça descoberta chamava os seus em altos gritos: Para onde nos precipitais, ou que repentina discórdia é esta que se levanta? Oh! reprimi os vossos ódios! já está concluído o tratado e todas as condições reguladas: só eu tenho o direito de lutar!” (Virgílio, Eneida, Livro XII, vs. 311-31)
Alguns anos depois, ele ganhara peso. Em compensação perdera cabelo.
Parado em frente do velho prédio, cujo frontispício ainda trazia insculpida a inscrição “GYMNASIO DO ESTADO”, o homem que ensinava latim sentia uma vaga nostalgia daquilo que ele e as coisas que o cercavam haviam sido.
O edifício conservava a dignidade das construções do passado, mas a passagem dos anos e as exigências da vida contemporânea impuseram suas marcas ao casarão, que parecia agora uma respeitável senhora que abusou da cirurgia plástica e da maquiagem.
Lembrou-lhe o que dissera Machado de Assis a alguém que, contemplando as casas da Corte Imperial, comentava que eram muito feias: “mas são velhas”, redarguiu o escritor.
A imponente entrada principal, com suas escadarias, apesar da resistência heróica de duas altivas palmeiras imperiais, havia sido descaracterizada para ceder espaço a um improvisado estacionamento de automóveis, esses trambolhos que são o maior exemplo do individualismo e da prepotência que caracterizam a sociedade atual.
Morava a poucos quarteirões e costumava caminhar até a escola na época em que lecionava. Muitos professores faziam o mesmo, outros se utilizavam dos ônibus. Alguns poucos tinham automóvel, davam carona para os colegas e estacionavam nas ruas próximas, ou então eram deixados no local pelos cônjuges ou filhos, que iam embora com o veículo e voltavam ao término das aulas para apanhá-los.
Certo dia percebeu que as férias de fim de ano já estavam quase acabando e estranhou não ter recebido até então o horário das suas aulas, com era costume.
Atribuiu o fato a algum atraso do correio ou na elaboração do horário pela direção da escola, de que ele era então o professor mais antigo, concursado e titular da disciplina de Latim.
Já poderia ter se aposentado, mas preferiu continuar até que completasse 70 anos e o afastamento se tornasse compulsório. O diretor o havia estimulado a permanecer na ativa, elogiando-lhe a notória capacidade e invocando a dificuldade que teria em substituí-lo.
O Latim e as suas aulas eram a sua vida, e não sabia bem o que faria depois. Apaixonara-se pela língua logo de cara, quando começou a aprender seus rudimentos com o velho padre italiano no colégio marista em que havia estudado.
Fora o primeiro colocado no concurso de ingresso no magistério e até mesmo tinha escrito dois livros didáticos de algum sucesso, um compêndio intitulado Noções Fundamentais da Língua Latina e uma gramática mais aprofundada, em que procurara aparar as asperezas com o uso de textos, analisados e comentados.
Nos últimos anos suas classes estavam reduzidas, pois a disciplina de Latim somente se mantinha nas três séries do curso Clássico ou de Humanidades. Completava a carga horária lecionando Filosofia, para a qual também tinha habilitação, e auxiliando em algumas tarefas administrativas.
Para reforçar o orçamento, ministrava aulas particulares, tendo organizado um curso básico de um ano para interessados, jovens ou adultos, adaptando uma edícula da sua casa como sala de aula, com carteiras, quadro-negro e tudo o mais.
No dia marcado para o início do ano letivo foi para colégio logo pela manhã, no primeiro horário das aulas. Estava na sala dos professores conversando com alguns colegas e vestindo o jaleco, quando foi chamado ao gabinete do diretor.
Depois dos cumprimentos de praxe, o diretor bem mais moço do que ele lhe disse:
— Professor Enéias, lamento informar que o Latim foi excluído da nossa grade já a partir deste ano, de acordo com a reforma pedagógica promovida pela Secretaria de Educação. Assim, o senhor ficou sem suas aulas.
Com o coração aos pulos, a boca seca, esforçando-se para manter a dignidade ultrajada, respondeu com a voz mais firme que conseguiu:
— Mas como isso é possível? O Latim é a língua materna da nossa civilização ocidental e não se presta apenas para o domínio do Português e de outras línguas, mas acima de tudo para aguçar o intelecto dos jovens, tornando-os mais observadores e lhes desenvolvendo o poder de concentração e o espírito de análise, qualidades imprescindíveis ao homem de ciência.
— Pois é professor. Mas os tempos são outros. O que predomina agora é o Inglês. Espanhol e Francês também vão sair da grade e se manterão apenas como disciplinas facultativas. Mas o Latim está definitivamente abolido do currículo, assim como a Filosofia. Como lhe disse, sinto muito.
— Mas o que farei então? Sou professor efetivo, titular da disciplina por concurso público…
— O senhor tem duas opções: lecionar uma disciplina afim, como o Português, ou ser aproveitado em atividades extracurriculares e administrativas. Como o senhor já completou o tempo de serviço necessário, também pode decidir pela aposentadoria imediata. É o que eu faria se fosse o senhor, se me permite a opinião.
Apesar do tom aparentemente afável, sentia que no fundo o diretor o considerava um resto do passado, que quanto antes fosse removido, melhor.
Mesmo assim, pego de surpresa, pediu alguns dias para pensar e tomar uma decisão.
— Esta primeira semana será de reuniões pedagógicas e planejamento em razão das modificações. Em seguida virá o carnaval e as aulas só começarão de fato depois, de modo que o senhor poderá me dar uma resposta até lá, condescendeu o Diretor.
Saiu aturdido, sem coragem e ânimo de voltar para casa e contar à mulher o que acontecia. Há menos de dois meses estava na sala de aula, explicando aos alunos as declinações e os verbos latinos, sua correlação com o Português, lendo textos clássicos com eles e procurando motivá-los e situá-los no tempo e na cultura, de que todos provinham. Era comum que nas primeiras aulas os alunos se mostrassem reticentes ou desinteressados, mas no final do primeiro ano a maioria já denotava entusiasmo crescente pelo Latim, à medida que evoluíam no seu aprendizado.
Vagueou o resto da manhã pela cidade, tomou café acotovelando-se no balcão da mais tradicional e movimentada cafeteria da cidade, passou pela livraria que costumava frequentar, permaneceu algum tempo no silêncio da biblioteca pública situada próxima da livraria, remexendo nos livros, lendo alguns trechos, em busca de apaziguar o seu alvoroço interior.
Incentivado pela mulher, chegou a consultar um amigo advogado sobre a possibilidade de alguma medida judicial que o mantivesse na cátedra de que era titular concursado, mas soube que teria pouca chance de êxito. O que talvez conseguisse fosse ser posto em disponibilidade remunerada, sem obrigação de lecionar outra disciplina ou cumprir atividades diversas. Mas isso equivalia a uma aposentadoria provisória. Era preferível então se aposentar de vez, conformar-se e viver o que lhe restava.
Vivia agora recolhido e mergulhado na leitura. Além de reler os clássicos, divertia-se com livros policiais de que sempre gostara e até tinha começado a escrever um às escondidas, cujo personagem principal era inspirado no inglês capitão sir Richard Burton, figura extraordinária e aventureira, misto de soldado, cientista, explorador, escritor e agente secreto, que o fascinava desde rapazinho, talvez pelo contraste com a sua natural pacatez.
Absorto nos seus pensamentos, não se deu conta do bedel mulato e grisalho que se aproximava do portão fechado, vindo de dentro do prédio.
— Professor Enéias, mas que satisfação tornar a vê-lo! O que faz por aqui? Estamos de férias, mas se quiser abro para o senhor dar um passeio pelo estabelecimento e recordar-se dos velhos tempos.
Sentiu-se tentado a aceitar, mas logo rechaçou o ideia. Tudo aquilo se acabara e era melhor deixar em paz os fantasmas, dos quais ele próprio era um.
— Olá Alfredo, como vai você? O prazer é todo meu. Agradeço o convite, mas fica para uma outra ocasião. Já estava indo embora.
O velho Alfredo, terror dos alunos sem uniforme completo, que fumavam escondidos nos banheiros ou cabulavam aulas, fez questão de abrir o portão para lhe dar um abraço forte e afetuoso.
Despediram-se logo após e ele se foi, caminhando lentamente, ao encontro costumeiro com os amigos na barbearia.
Amanhã completaria 70 anos.
Cheguei a ter aulas de latim durante o ginasial como era chamado.
Ainda me lembro das declinações e das horas que passávamos tentando não esquecer nenhuma terminação. E ainda tinha prova escrita e oral!
O professor Tarcísio deu aulas a todas as classes da 1a. à 4a. série.
Creio que não se tinha mais muitos professores da matéria. E ele ficou marcado em minhas lembranças como um homem franzino, pálido, com uma cabeça grande coberta por cabelos castanhos muito claros, num corte e penteado meio estranho.
´Falando nisso até voltou o som de terminações: us e i i i orum…..
Doces lembranças da aurora de minha vida….
Inspirado está o autor – deve ser a proximidade da chegada de alguém muito especial. Frise-se que, estando em São Paulo daqui a duas semanas, só aceito que não repita a visita de janeiro por motivo de primeiro nome feminino.
Continuamos em sintonia… Cá estou eu a pensar no que farei para escapar desta arapuca que é o trabalho, que pode acabar se tornando a coisa principal de nossas vidas, quando não deveria ser. Lendo a estória do Prof.Enéias vi o quanto é ridículo o apego às “coisas do mundo”, ao que julgamos importante quando ninguém mais pensa assim.
Muito bonito, Papilly. Triste. Consegui imaginar o professor, cada ruga. Triste. Ti doro. beijos!
Minha querida Bell,
Parafraseando Gustave Flaubert (“Emma Bovary c’est moi”), o professor de latim sou eu, ou seremos todos, um dia.