Réquiem

 

 

 

                        De repente, ao meio-dia de um domingo escaldante de julho, Eu se vê em pleno Cais de Alcântara, numa Lisboa deserta, à espera do seu Convidado.

                        Não sabe sequer como foi parar ali, pois que pouco antes estava de férias, numa Quinta do Azeitão pertencente a amigos, lendo O livro do desassossego à sombra de uma frondosa amoreira.

                        Como seu Convidado tarda, lembra-se então que tendo ele marcado às doze horas, bem poderia ser doze da noite, já que os fantasmas costumam aparecer à meia-noite.

                        Só lhe resta, então, enquanto aguarda, perambular por Lisboa, encontrando-se com vivos, mortos e outros fantasmas de suas lembranças.

                         Eu não sou eu, é claro (embora muitos dos lugares percorridos e visitados por Eu também o tenham sido por mim), mas o personagem e narrador de Antonio Tabucchi, no seu livro Requiem (assim mesmo, sem acento, em latim). O seu Convidado “[…] é um grande poeta, talvez o maior poeta do século vinte, morreu há muitos anos, tenho de o tratar com respeito, ou melhor, com respeitinho”, conforme ele diz para si mesmo, arrependido de tê-lo chamado de “gajo”, logo no início. Fácil identificar a pessoa do poeta, de quem Tabucchi é grande admirador (assim como do nosso Carlos Drummond de Andrade) e considerado um dos maiores especialistas da atualidade.

                        Italiano nascido em Pisa e professor de literatura portuguesa na Universidade de Siena, Tabucchi já escreveu diversos livros em português, língua que ama e domina com extraordinário talento. Um desses livros, Os três últimos dias de Fernando Pessoa, perpetuou-lhe a antipatia da parte de José Saramago, que o acusa de lhe ter subtraído a ideia do livro O ano da morte de Ricardo Reis.

                        Esse tipo de coincidência temática, propositada ou casual, é muito comum na Literatura e nas Artes em geral. O livro de Saramago (um dos melhores que escreveu) me parece superior — e muito diferente —  ao de Tabucchi (que se não me engano foi lançado antes), donde não ver razão alguma para o ressentimento do português, que especialmente depois de haver recebido o Nobel de Literatura tem se mostrado cada vez mais intolerante e ranzinza, sem dizer que a qualidade de sua obra vem decaindo de modo vertiginoso, o que entretanto não invalida a sua importância como grande autor e estilista.

                        A impressão que me fica é de que Saramago, apesar de se fazer de modesto e acolhedor, tem um ego enorme, inflado pela premiação, e passou a agir como se fosse o chefe ou o dono da literatura portuguesa, afagando os que lhe são servis ou bajuladores e atacando os que lhe fazem críticas, pensam diferente ou simplesmente obtêm sucesso, pondo em risco a sua posição de primazia ou prima-dona.

                        Além da notória disputa com António Lobo Antunes — cujos livros, pelos menos nos últimos tempos, estão muito acima das recentes parábolas anódinas de Saramago —, já trocou farpas com diversos outros escritores, entre os quais Miguel Sousa Tavares, que retrucou à altura as declarações de Saramago de que ele não faria a menor falta caso viesse morar no Rio de Janeiro, como havia cogitado: “Saramago já disse que, por ele, tanto faz que eu vá para o Brasil ou para Marte. E eu respondi: tanto faz ao estado português para onde ele vá, pois ele não paga imposto. Tem a Fundação José Saramago, que é isenta e ainda ocupa um prédio histórico cedido pelo estado. Admiro a escrita de Saramago. Mas, como caráter, não o respeito. Estou cansado daquele papel que ele faz de consciência da humanidade, sempre com os ombros curvados.”

                        Aliás, há muitos anos Saramago vive em Lanzarote, nas Ilhas Canárias, Espanha, para onde se transferiu em protesto ao injustificável veto pelo governo de Portugal ao seu livro “O Evangelho segundo Jesus Cristo” (para mim a última grande obra que escreveu), excluindo-o de uma lista de romances portugueses candidatos a um prêmio literário europeu.

                        Como se vê, não é sem razão que se diz não haver nada pior do que ciúme entre homens e intelectuais…

                       

 

Ainda sobre o Requiem de Tabucchi, o livrinho, de pouco mais de 100 páginas, é delicioso e envolvente, traçando uma jornada onírica e sentimental por Lisboa, numa mistura engenhosa de realidade e alucinação.

 

 

 

                        Deixo com o próprio Tabucchi as palavras finais, tiradas do seu prefácio:

                        “Se alguém observar que este Requiem não foi executado com a solenidade que convém a um Requiem, não posso deixar de concordar. Mas a verdade é que preferi tocar a minha música não num órgão, que é um instrumento próprio das catedrais, mas numa gaita de beiços, que se pode levar no bolso, ou num realejo, que se pode levar pelas ruas. Como Drummond de Andrade, sempre gostei de música barata, e como ele dizia, não quero Haendel para meu amigo, nem ouço a matinada dos arcanjos. Basta-me o que veio da rua, sem mensagem, e, como nos perdemos, se perdeu.”

 

  

 Antonio Tabucchi

 

 

 

2 comentários

  1. Lilian
    17/06/10 at 21:20

    Eu até entendo quando encontro alguém ranzinza, talvez porque seja um pouco também. Creio que devemos fazer com os ranzinzas o mesmo que se pode fazer com os gatos: deixá-los em paz, curtindo a própria grandeza, vivendo no seu pequeno mundo auto-centrado.
    Ainda mais José Saramago; alguém que escreveu algo como “O Evangelho segundo Jesus Cristo” pode muito, tudo talvez.

  2. Lilian
    18/06/10 at 14:34

    Réquiem mesmo. Lá se foi o homem… Que esteja em paz, na graça de Deus.

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