Passados onze anos desde a publicação no seu último livro de poesia, e no ano em que completa oitenta anos, Ferreira Gullar é que nos presenteia com Em alguma parte alguma, que tenho em mãos neste exato instante, mas venho lendo, em completo enlevo, há vários dias.
Na realidade venho relendo, porque se trata de um pequeno livro (apenas no tamanho), de pouco mais de cem páginas, em que os poemas vão da página 21 à 130, precedidos de duas visões críticas sobre Ferreira Gullar, assinadas por Alfredo Bosi e Antonio Carlos Secchin, e contendo nas páginas finais alguns dados biográficos do autor e da sua obra.
Agradam-me os livros de poesia assim, não muito extensos (salvo evidentemente as Antologias ou Obras Completas), tal como os próprios poemas de Em alguma parte alguma, enxutos, que podem ser lidos em qualquer ordem, indo e voltando, abrindo as páginas ao acaso. Parece então que são os poemas que nos buscam e não nós a eles.
Ferreira Gullar, nascido José Ribamar Ferreira, em São Luís do Maranhão, sem dúvida integra o rol dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos, já tendo sido indicado duas vezes para o Prêmio Nobel de Literatura, além das inúmeras premiações de grande importância que recebeu.
Sempre foi considerado de esquerda (chegou a ser forçado a se exilar em 1971) e de vanguarda (seja lá o que essas duas expressões tão desgastadas ainda possam significar), bem como integrado às manifestações da cultura popular. Como, apesar da idade e de consagrado, não se acomodou nem parou de pensar e continua a fazer um juízo crítico das suas experiências, ideologias e crenças passou nos últimos tempos a ser patrulhado e tachado de reacionário(?), especialmente por cometer o pecado capital, num Estado que se pretende democrático de direito, de se opor ao governo de Lula, O Impoluto.
Mas o que me interessa e de quem quero falar é do poeta, que Ferreira Gullar diz ser “às vezes”.
Muito melhor do que eu, falam por ele os seus poemas. Aquele — excepcional — que abre Em alguma parte alguma (aliás, que maravilhoso título!), denominado Fica o não dito por dito, é definido por Alfredo Bosi como “puro pensamento sobre a fundação do poema a partir e no interior da sua própria locução. A palavra existe, mas só na medida em que é dita, como um fiat que sucede o vazio, o nada, o silêncio. Ao ser dita, a poesia instaura um sentido pela própria força de seu produzir-se enquanto verbo.”
Por sua vez, Antonio Carlos Secchin assinala: “Com 61 anos de ofício, a poesia de Ferreira Gullar torna-se cada vez mais nova. Neste arrebatador Em alguma parte alguma pulsa a urgência da vida, por meio de um olhar que se lança tanto microscopicamente à textura espessa das frutas condenadas ao apodrecimento, quanto telescopicamente à solidão esquiva e silenciosa do cosmo. Se Fernando Pessoa afirmou: “O que em mim sente está pensando”, podemos dizer, quanto a Gullar, que o que nele pensa está sentindo.”
Eis o início e o fecho de Fica o não dito por dito:
o poema
antes de escrito
não é em mim
mais que um aflito
silêncio
ante a página em branco
ou melhor
um rumor
branco
ou um grito
que estanco
já que
o poeta
que grita
erra
e como se sabe
bom poeta (ou cabrito)
não berra
[…]
é que só o que não se sabe é poesia
assim
o poeta inventa
o que dizer
e que só
ao dizê-lo
vai saber
o que
precisava dizer
ou poderia
pelo que o acaso dite
e a vida
provisoriamente
permite