Na madrugada de 9 de julho de 1980, na casa onde morava na Gávea, depois de passar a noite com Toquinho fazendo os últimos acertos das canções do volume 2 de “Arca de Noé” (que acabaria sendo lançado em 1981), Vinicius foi para a banheira, onde adorava passar longo tempo, muitas vezes atravessando uma tábua de lado a lado à guisa de mesa para acomodar seu copo, a garrafa de bebida e até mesmo a máquina de escrever portátil. Já não podia beber, proibido pelos médicos.
Por volta das sete horas da manhã, a empregada D. Rosinha o encontra desfalecido na banheira, o corpo frio e a respiração acelerada. Corre até o quarto em que Toquinho dormia para avisá-lo, mas já não havia o que fazer e pouco depois, apesar dos esforços de Toquinho que chegou a aplicar vários tapas no rosto de Vinicius na tentativa de reanimá-lo, o poetinha se ia de seus tantos amores.
A Hora Íntima
Quem pagará o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?
Quem, dentre amigos, tão amigo
Para estar no caixão comigo?
Quem, em meio ao funeral
Dirá de mim: — Nunca fez mal…
Quem, bêbado, chorará em voz alta
De não me ter trazido nada?
Quem virá despetalar pétalas
No meu túmulo de poeta?
Quem jogará timidamente
Na terra um grão de semente?
Quem elevará o olhar covarde
Até a estrela da tarde?
Quem me dirá palavras mágicas
Capazes de empalidecer o mármore?
Quem, oculta em véus escuros
Quem, macerada de desgosto
Sorrirá: — Rei morto, rei posto…
Quantas, debruçadas sobre o báratro
Sentirão as dores do parto?
Qual a que, branca de receio
Tocará o botão do seio?
Quem, louca, se jogará de bruços
A soluçar tantos soluços
Que há de despertar receios?
Quantos, os maxilares contraídos
O sangue a pulsar nas cicatrizes
Dirão: — Foi um doido amigo…
Quem, criança, olhando a terra
Ao ver movimentar-se um verme
Observará um ar de critério?
Quem, em circunstância oficial
Há de propor meu pedestal?
Quais os que, vindos da montanha
Terão circunspecção tamanha
Que eu hei de rir branco de cal?
Qual a que, o rosto sulcado de vento
Lançara um punhado de sal
Na minha cova de cimento?
Quem cantará canções de amigo
No dia do meu funeral?
Qual a que não estará presente
Por motivo circunstancial?
Quem cravará no seio duro
Uma lâmina enferrujada?
Quem, em seu verbo inconsútil
Há de orar: — Deus o tenha em sua guarda.
Qual o amigo que a sós consigo
Pensará: — Não há de ser nada…
Quem será a estranha figura
A um tronco de árvore encostada
Com um olhar frio e um ar de dúvida?
Quem se abraçará comigo
Que terá de ser arrancada?
Quem vai pagar o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?
Rio, 1950
Texto extraído do livro “Vinicius de Moraes – Poesia Completa e Prosa”, Editora Nova Aguilar – Rio, 1998, pág. 455
[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=_mEmrSCz6_Y]
Vinicius é de ler, reler, sentir, rir e chorar.
Este poema v. escolheu a dedo e, entre tantos, é de uma emoção que não dá nem pra comentar. Acho que reli umas 4 vezes. Lindíssimo. Aquelas coisas que a gente pensa e sente e nem sabe colocar no papel e ele conseguiu registrar com maestria.
Adorei!
Vininha não morreu, não…
Aqui a prova:
“…Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
– Meu tempo é quando.”
O tempo dele é sempre!
Beijocas, Antonio, e um belo domingo de azul lavado (como cá).
Juntos agora, como por amor…
Está aí um fato que talvez conforte:
não foi a morte que o levou,
foi ele, sim, que seduziu a morte.
(Tinha reservado esse “epitáfio” para meu uso pessoal, mas dedicando-o ao Vinícius, como faço agora, estará em melhores mãos. Para mim, talvez, depois
faça outro… ou alguém faça por mim.)
Brenno “Manga”, “você é um milongueiro”!
Sedutor até da morte. Sorte dela, e do Vinicius que ganhou o mais perfeito dos epitáfios.
Quanto amor, hem?
Será que é dele ou de alguém por ele?
O poetinha fala de amor como se (o amor) fosse uma jabuticabeira carregada de frutos madurinhos, docinhos…
Mas, falando em epitáfio, este é sensacional!
http://www.youtube.com/watch?v=8acyF6qS9aU
Só alguém com a sensibilidade do Gama pra escolher esse poema, hoje. Só alguém com a sensibilidade do Brenno para o lindo epitáfio. Parabéns aos dois. Faço aqui uma confissão; na madrugada da morte do Vinicius, ouvi no rádio, quando rádio ainda prestava, o soneto da felicidade, depois da música ” eu sei que vou te amar”. Acho que é essa. E, falei o soneto junto com o rádio para a minha parceira. Digo então, que eu fui um dos últimos a falar aquele poema enquanto o poeta ainda vivia. Podem até me chamar de velho, mas que foi eu foi. rsrsr. Abcs
Linda e significativa lembrança, Nilton!
Na noite em que Millôr Fernandes morria, sem saber do que acontecia, passei horas navegando no site dele, lendo e relendo seus poemas e textos geniais. Na manhã seguinte, o café amargou quando soube que ele se fora.
Abraços.
Muito oportuna a re-edição dessa postagem aqui no Estrela.
E, falando nisso, “por oportuno”…
Estivestes comigo em todos os inícios
mas me abandonastes nos finais.
Repartistes comigo todos os vícios
mas me deixastes sozinho
nas ressacas dos meus carnavais.
Por que demorastes tanto, ó Poeta?
Por que ainda demorais
pra me ensinar vosso canto,
elegias, desencantos,
poesias, acalantos
e o tanto que sois capaz?
Chegastes tarde, ó Poeta!
agora é tarde demais:
não tenho mais bala na agulha…
Por que me influenciais?
estando sempre presente
na retina dos meus eyes…
na rotina dos meus ais.
“Por oportuno”, essa maravilha de poema é de ser publicado com destaque no Estrela, e não ficar escondido num comentário.
Tenho a impressão de que já publiquei outrora, vou verificar.
Se não, fa-lo-ei agora…
“Por oportuno”, como eu pensava, o seu belíssimo poema está sim publicado no Estrela:
http://estrelabinaria.com/2012/10/20/nascimento-do-poeta/
Gama, vou aproveitar o ensejo para fazer minha homenagem ao Poetinha: vou postar a sua obra-prima Poética I:
De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.
A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.
Outros que contem
Passo por passo
Eu morro ontem
Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
Meu tempo é quando.
Esse poema é lindo demais. E vale a pena a publicação do poema do Brenno (outrora, que palavra linda essa…)
Abraçaço.