Recebi nos últimos dias, via internet, de livrarias onde costumo comprar, várias ofertas do pré-lançamento do novo romance de Chico Buarque, Leite Derramado.
Por razões de marketing, quase nada se sabia sobre o tema do livro. Ontem, finalmente, a Folha de S. Paulo publicou uma extensa matéria sobre o livro (caderno Ilustrada, O bruxo do Leblon, E1), com resenhas favoráveis de Roberto Schwarz e Eduardo Gianetti (E6 e E7).
Sabe-se agora que trata da saga de uma família, que tem início na corte portuguesa, atravessa os períodos do Império e da República Velha e desemboca nos dias de hoje, narrada por meio de fragmentos da memória de um velho centenário, de origem aristocrática, que agoniza num leito de hospital. Tanto Schwarz quanto Gianetti observam que Chico evoca características da narrativa machadiana, o que para mim desperta especial interesse.
Tenho o Chico Buarque compositor no mesmo plano dos maiores vultos da MPB de todos os tempos, como Noel Rosa, Pixinguinha, Dorival Caymmi, Ary Barroso, Cartola, Nelson Cavaquinho, Adoniran Barbosa e, mais recentemente, Tom Jobim, Vinicius, Edu Lobo, Caetano Veloso, Paulinho da Viola, da maioria dos quais foi parceiro. Talvez esteja até mesmo um pouco acima de alguns desses.
As suas músicas e os seus versos, e ainda as suas intepretações, apesar de não ser um grande cantor no sentido tradicional, me arrebatam e me deixam com inveja do seu talento poético e artístico, aquele tipo de inveja amorosa a que se referiu o Guilherme no seu comentário no post Cordon bleu, blanc, rouge (J”accuse…!). Seria impossível arrolar aqui as suas composições da minha preferência, tantas (ou todas) são elas. Melhor dizer que não há nenhuma música de Chico que me desagrada, apesar de ter certa birra por Morena de Angola, que acho um tanto chata.
Gosto também muito da figura humana do Chico peladeiro, ao que parece um grande amigo, cidadão participante das questões públicas, mas sempre discreto na vida pessoal, talvez um falso tímido, conquistador de belas mulheres, em cujo universo transita com rara sensibilidade, como, aliás, é decantado.
Por tudo isso, me é doloroso dizer que considero o Chico Buarque romancista muito abaixo do compositor, e que nenhum dos seus livros até agora me agradou plenamente (diria até que todos me decepcionaram), apesar do aplauso incondicional de alguns críticos (?) e das notórias “igrejinhas”.
Não é que o Chico seja mau escritor ou que os seus romances não valham nada. Longe está de ser um Paulo Coelho da vida. A sua imaginação fértil e o seu talento em lidar com as palavras são os mesmos do grande compositor. O que sinto — e reconheço que possa ser uma idiossincrasia — é que até agora os seus romances não têm “pegada”, são frouxos em várias passagens, enfim me deixam na boca um gosto amargo de incompletude, de realização falhada.
Isso aconteceu com o primeiro deles, Estorvo, mas contemporizei por se tratar de uma obra de estréia, de experimentação de um novo jeito de se expressar. Achei o segundo, Benjamim mais fraco (assim como o filme dele extraído, que nem a presença sempre marcante do grande Paulo José e a descoberta de Cléo Pires conseguiram salvar). Budapeste já me pareceu bem melhor, mas ainda com aquele travo a que me referi acima, uma boa ideia que se perde na construção do romance, para mim mais longo do que necessário, com situações que se repetem e perdem a força.
Deixo claro que, a meu ver, o Chico faz muito bem em se dedicar àquilo que mais lhe agrada atualmente, mesmo pondo de lado a música. É sabido que ele não gosta de fazer shows e longas turnês, prefere ficar no seu canto e no seu mundo (com a idade isso se acentua, como eu próprio venho sentindo). Se recebe antecipadamente dos editores para escrever, e com isso vai levando a vida que lhe apraz, é tudo o que se pode querer (e disso tenho mais um pouco de inveja amorosa).
De todo modo, aguardo com ansiedade a leitura de Leite Derramado, fazendo votos que não azede, que possa significar mais um salto de qualidade em relação a Budapeste e finalmente se apresente o escritor à altura do compositor.
Por enquanto, o Chico Buarque compositor é o Michel Jordan das quadras de basquete. Como romancista, continua sendo um Michel Jordan, mas jogando golfe.
Não sabia que ele estava escrevendo um romance. Eu li Budapeste e Benjamin… Você sabe, sou fã do Chico… que mulher não é? Mas confesso que mesmo tendo lido, não lembro de uma linha sequer. Não tem problema, talvez esse seja o único desvio do Chico. Eu perdoo.
Bell,
Se você, tão boa leitora que é, não lembra de uma linha de Budapeste e Benjamim, mas se lembra de um monte de músicas do Chico, acho que me dá razão.
Se, com uma estória dessa (descrita no terceiro parágrafo) ele conseguir “derrapar”, vai ficar bem evidente que ele precisa treinar um pouco mais. Realmente, depois de tanta coisa boa que fez na música brasileira, merece curtir o seu próprio canto, de preferência com dinheiro chegando de várias fontes, como parece ser o seu projeto. Nada mal para um artista tão inspirado, um compositor de tamanha riqueza e singularidade.
Caso o leite derramado decepcione, recordemos uma de suas mais belas composições: (As Vitrines)
“Eu te vejo sumir por aí
Te avisei que a cidade era um vão
Dá tua mão, olha prá mim
Não faz assim, não vá lá, não
Os letreiros a te colorir
Embaraçam a minha visão
Eu te vi suspirar de aflição
E sair da sessão frouxa de rir
Já te vejo brincando gostando de ser
Tua sombra se multiplicar
Nos teus olhos também posso ver
As vitrines te vendo passar
Na galeria, cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo o salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
que entornas no chão”…
Depois disto, pode derramar quanto leite quiser… rsrs
Lilian,
Tenho um pequeno conto, a que dei o nome de “Humano Amor”, escrito há muitos anos, bem antes que fosse gravada a música “As Vitrines” (que é uma das que mais gosto do Chico). Pois bem. A música é uma trilha sonora perfeita para o conto. Minhas filhas e alguns amigos conhecem o conto a pensam o mesmo. Talvez publique esse “continho” aqui um dia desses, e você poderá tirar suas conclusões.
Tio.
Fiquei muito envaidecido ao ser citado no seu post.
Desta feita não posso deixar de enviar este comentário.
Tenho total admiração pelo compositor Chico Buarque; comungo da sua opinião quanto ao escritor, apesar de ter lido todos os seus livros e ter comprado hoje o novo romance.
Adorei a analogia do basquete e o golfe; que bom podermos ter contato com este gênio das palavras em duas circunstâncias.
quando lemos o livro temos imensas saudades da música; quando escutamos a música temos enormes saudades dos bons tempos de antigamente.
Um abraço carinhoso em todos.
Acabo de encomendar via internet o livro recente do Chico.
Confesso que não li nenhum dos anteriores, talvez por desinteresse ou até por considerar que um poeta sensível como ele, não precisa escrever romances.Os discos tenho a maioria e amo. Vou ler o livro atual até pelos comentários que li em seu texto e nos dos amigos que aqui comentam. Depois comento a respeito.
Ainda não li nenhum livro dele, mas nem pretendo ler, já que ele mesmo afirmou que escreveu o primeiro em dez meses, e, sem retoques. Ora, um bom romance demora uns três anos pra ser escrito e reescrito várias vezes.