A toda vela

 

                        Naquele tempo as pessoas morriam em casa, ao lado dos familiares. E também na própria casa o corpo era velado pelos parentes e amigos até a hora do enterro.

 

                        Passava da meia noite, e no quarto da frente da antiga casa o avô agonizava, depois de dias de sofrimento, entremeando breves momentos de lucidez com longos períodos de dormência, sob efeito das drogas, respirando com a ajuda do negro balão de oxigênio.

 

                        A avó, os filhos e filhas, noras e genros, vagueavam pelos cômodos, conversando baixinho, choramingando, aguardando o desfecho inevitável.

 

                        Os netos mais novos, alvoroçados com tudo o que se passava, a presença do médico e do padre, o entra e sai de conhecidos e vizinhos, e pelo fato de não terem sido obrigados a dormir na hora de costume, foram levados para a cozinha, aos cuidados da velha empregada, que os distraía contando histórias, enquanto coava bules e mais bules de café e fritava bolinhos de chuva.

 

                        Influenciada pela ocasião, ou porque não soubesse mesmo outras, as histórias que se sucediam eram horripilantes, sobre bruxas, fantasmas, maldições e outros eventos sinistros.

 

                        A certa altura, talvez na tentativa de preparar as crianças para a morte iminente do patriarca, explicou-lhes que no céu havia um cômodo no qual era acesa uma vela para cada pessoa que nascia. Essa vela vai se derretendo pouco a pouco, até que finalmente o pavio se apaga, e com ele a vida. As velas das crianças estavam novinhas, com a chama firme e forte, enquanto a do avô já era só um toquinho, com o pavio tremulando, prestes a se extinguir.

 

                        A curiosidade do menino quis saber como é então que havia criança que morria ainda pequenina, até mesmo ao nascer.

 

                        — É porque um vento apagou a vela antes da hora, respondeu-lhe a fabuladora.

 

                        A vela do avô se apagou naquela madrugada, e o menino carregou para o resto da vida a imagem das velas ardentes perfilhadas no céu, a se consumirem. Sempre que acendia uma vela, numa igreja ou por qualquer outra razão, jamais conseguiu se afastar dela, antes de certificar que a chama se firmava e não se apagava ao imprevisto do vento.

 

                        Navegando a toda vela para a idade do avô, pensa no que ainda resta da sua vela.

 

 

4 comentários

  1. Lilian
    10/04/09 at 18:21

    Lembrei-me de que “navegar é preciso”. Para aproveitar a “vela”? Talvez.
    Sonhei com minha avó, que me remete à minha mãe, que… eu. No sonho havia uma piscina transparente, com água azul. Será que o fim é isto, água azul?
    Também vou, à toda vela, rumo ao desconhecido, com a terrível sensação de que o tempo me foi confiscado, porque não o vi passar. E não gosto de ser responsável por algo de que não participei. Prestar contas desta vela deverá despertar em mim o lado combativo, que tem sido subornado pelo tempo.
    Pior que assistir a morte dos seres queridos, é ser testemunha silenciosa de sua própria morte.
    Prezado Professor: queria lhe dizer algo animador, mas com tais reflexões… fica impossível. Mas, o calendário de festas me ajuda, permitindo-me augurar-lhe “Feliz Páscoa!”

  2. bellgama
    14/04/09 at 12:25

    Lindo, lindo, lindo! Inveja e orgulho. Ti doro!

  3. Sonia Kahawach
    14/04/09 at 15:40

    V. sabe que admiro tudo o que escreve e acompanho dia a dia seu blog.
    Concordo com a Bell: lindo, lindo, lindo!
    E mais lindo ainda o entusiasmo, o carinho, amor e admiração que sua filha sempre demonstra em cada comentário feito por ela.
    Fico encantada com as colocações que ela faz.
    Uma filha assim já é um carinho e um afago na vida.
    Parabéns aos dois. Ao pai que deve ser um paizão maravilhoso e à filha adorável.

    • 14/04/09 at 16:20

      Sonia,

      Este blog só existe por causa da Bell, que o criou, postou no início algumas poesias minhas e depois me obrigou a continuar escrevendo. Mas ela é também minha concorrente (e melhor do que eu). Vale a pena você dar uma olhadinha no blog dela, Projeto Grifos, para o qual tem um link no meu, do lado direito. É só clicar.
      Fui mesmo agraciado com as minhas três filhas. Além da Bell, a Carol e a Júlia, cada uma a seu modo, são o meu complemento, e as três a minha sobrevivência.
      Um beijão.

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