Resmungões

 

resmungos-2

 

                        Ferreira Gullar, um dos nossos maiores poetas, e que além do mais é um grande tipo humano, com uma trajetória de vida exemplar pela coragem e coerência, reuniu algumas das suas crônicas publicadas na Folha de S. Paulo num lindo livro editado pela Imprensa Oficial/SP, com excelentes ilustrações de Antonio Henrique Amaral.

 

                        Deu ao volume o título de Resmungos, que é o mesmo da primeira crônica publicada no jornal, em cujo fecho assinala:

 

“Como o leitor já deve ter percebido, toda esta lengalenga é para sugerir-lhe que não espere demasiado deste cronista bissexto. Farei o possível para não ser chato nem gaiato demais. Dificilmente evitarei algumas críticas ácidas, pois muitas das coisas que leio nos jornais e vejo na televisão me deixam irritado a resmungar com meus botões. Aqui terei a oportunidade de fazê-lo em público. Por isso, em muitas ocasiões, o leitor não encontrará aqui crônicas propriamente e, sim, resmungos.”

 

                        Embora muitas léguas distante do talento e da verve de Ferreira Gullar, a ressalva acima cabe com perfeição para o que tenho publicado neste blog. Verifico e reconheço que em especial nos últimos escritos me tornei um resmungão, mas curiosamente tiveram eles grande receptividade entre os meus poucos e insistentes leitores, o que talvez signifique que muita gente ainda não perdeu a capacidade de se indignar e de pôr a boca no trombone.

 

                        No post Do cerco aos fumantes a outros cercos, arrolei ao acaso uma série de medidas que me parecem demagógicas e de condutas atrabiliárias e inconsequentes por parte do Estado, entre as quais a de se locupletar com os tributos cobrados de cigarros e bebidas, sem oferecer na rede pública condições e meios de tratamento para os viciados, fumantes, alcoólicos ou drogados, e também para os portadores de transtornos mentais.

 

                        Na sua crônica da semana passada, Ferreira Gullar criticou acerbamente a lei que instituiu a chamada reforma psiquiátrica no Brasil, determinando, entre outras coisas, que a internação dos portadores de transtornos mentais somente se faça em casos extremos e pelo período estritamente necessário. Com tais restrições, segundo ele, e à falta da prevista implantação em âmbito nacional  dos Centros de Atenção Psicossocial,  que viriam substituir os  hospitais psiquiáticos desativados, os pacientes pobres e seus familiares foram deixados ao desamparo, já que não dispõem de recursos para internação em clínicas ou hospitais particulares, e a rede pública não lhes oferece vagas suficientes, com o quê os enfermos acabam abandonados pelas ruas. Tem ele conhecimento de causa, uma vez que sofre o problema na própria carne, com dois casos em família.

 

                        A sua crítica recebeu alguns apoios e muitas respostas contrárias e iracundas, a maioria delas valendo-se do recurso rasteiro dos que não sabem manter a controvérsia no campo das ideias, preferindo desqualificar ou agredir o antagonista.

 

                        Mencionei ainda a incapacidade ou abulia do Estado no combate ao contrabando e roubo de armas, em garantir a segurança pública, bem como em recuperar a qualidade do ensino básico, cujo desmonte devemos à ditadura militar deflagrada em 1964 (que alguns têm a desfaçatez de qualificar como ditabranda), mas prossegue agora na República que se pretende nova,  pomposamente denominada  de Estado Democrático de Direito pela Constituição cidadã (?) de 1988.

 

                        Pois bem, vejamos algumas notícias colhidas na edição de hoje da mesma Folha de S. Paulo.

 

                        Buracos e más condições das estradas da zona rural de São Carlos (um dos mais prósperos municípios paulistas) obrigam estudantes a viajar até duas horas de ônibus para chegar à escola, sendo frequentes os atrasos e a perda das primeiras aulas (Caderno Ribeirão, C3).

 

                        A coordenadora pedagógica de uma escola da periferia de Franca (outra cidade tradicional do estado de São Paulo), por ser considerada exigente, foi ameaçada por três alunos — duas meninas de 12 e 13 anos, e um rapazola de 14 anos — por meio de mensagens de celular e por uma carta acompanhada de duas balas de revólver (mesmo caderno e página). O jornal reproduz ainda parte do bilhete enviado à professora, do qual, em apenas seis linhas truncadas destacam-se as seguintes grafias:

 

“Vc (acima do “c” há um acento circunflexo que até o computador se recusou a inserir) ñ é a pactona (?); “vamos ver se vc (também com acento circunflexo sobre o “c”) tem peito de asso”; “vamo ve de qual é (…)”.

 

                        Não bastasse a conduta de delinquentes, assim redigem jovens que, pela idade, deveriam estar no último ano do velho ginásio, agora ensino básico.

 

                        Em pleno dia, por volta das 16 horas, quatro alunas e uma professora do Instituto de Nutrição da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) foram assaltadas por um homem que, armado, invadiu a sala de aula, levando celulares e dinheiro (mesmo caderno, C7).

 

                        Para encerrar e não encompridar demais: a Assembleia Legislativa de São Paulo, que na semana anterior aprovou a lei duramente restritiva aos fumantes, descumpre às escâncaras duas leis já existentes e em plena vigência, que disciplinam o fumo nas repartições públicas. No próprio prédio da Assembleia  é permitido fumar  e até  há cartazes espalhados  que autorizam o fumo em locais proibidos por aquelas leis (mesmo caderno, C5).

 

                        Temos ou não motivos de sobra para resmungar (ao menos enquanto isso nos for permitido)?

 

 

 

 

Um comentário

  1. Lilian
    18/04/09 at 17:14

    Boa! Enquanto nos for permitido!
    Foi exatamente para não saber mais desse tipo de notícia que parei de ler jornal, embora gostasse muito. Parece que são notícias vindas diretamente dos últimos dias de Pompéia…
    Isto que nos acontece hoje é consequência da irresponsabilidade de pessoas que põem filhos no mundo para o Estado criar: na creche, no primário, na Febem, na cadeia e por aí vai. Essas mesmas pessoas que escolhem com tanto acerto os candidatos que nos são oferecidos nas eleições…
    Acho que os problemas do mundo atual é na questão da quantidade: é muita gente pra pouca pizza. Mas quem há de…
    Vamos resmungar! Enquanto podemos…

Deixe um comentário para Lilian

Yay! You have decided to leave a comment. That is fantastic! Please keep in mind that comments are moderated. Thanks for dropping by!