Leite Envasilhado

 

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                        Um livro, enquanto não lido, é como uma garrafa de bebida fechada. Para sabê-los é preciso abri-los e prová-los, e só então sentiremos o seu gosto e se este nos apraz ou não.

                        Um livro e uma bebida sem sabor ou cujo sabor nos desgosta devem ser postos de lado na estante ou na prateleira. Mais tarde, podemos tentar tragá-los novamente e acontecer que, com o passar do tempo, o seu gosto (ou o nosso) haja se apurado, e os sorvemos até o fim com inesperado prazer, ou então apenas confirmamos que de fato não nos apetecem e os pomos de lado outra vez.

                        Um livro e uma bebida que muito nos agradem deixam-nos a lembrança indelével do seu gosto, que nos leva a reler o livro ou ir em busca de outra garrafa da mesma bebida. Mas a nova leitura e a outra garrafa terão seu próprio sabor, pior ou melhor, mas com certeza diferente da primeira. Se possível fosse, buscaríamos apagar completamente o livro da memória ou envasilhar de volta a bebida entornada para repetir a experiência única da primeira degustação que tanto nos deliciou.

                        O título do novo romance de Chico Buarque, Leite Derramado, tem a sua própria explicação nos acontecimentos narrados (e não vou tirar do possível leitor o prazer de decifrá-lo), mas me despertou essas considerações ao me sentar agora para comentar o que achei dele, depois de finalmente o haver lido neste fim de semana. Tardei a fazê-lo porque fui posto como último da fila pelo contingente feminino familiar, com exceção da Bell que comprou seu próprio exemplar. Como sempre tenho vários livros a ler, não me incomodei em esperar e ceder a vez, cavalheirescamente, às mulheres da casa e da minha vida, pois que afinal são elas que mandam em mim, e no mundo.

                        Falar sobre o livro do Chico, como simples leitor que sou, é mais ou menos como tentar colocar de volta na garrafa, ou no abominável saquinho plástico, o leite derramado pelo autor para oferecê-lo aos que acompanham este blog.

                        Melhor será que cada qual tome o leite a seu modo, puro, com açúcar, com café ou chocolate, frio ou quente.

                        Da minha parte, embora não goste muito de leite (dos seus derivados, sim, como manteiga e queijos), o livro me agradou, bem mais dos que os anteriores, mas continuo a pensar que o Chico compositor esteja muitos tons acima do romancista.

                        O enredo já é amplamente conhecido: a saga de uma família aristocrática decadente, narrada por um velho centenário, que agoniza e delira em um hospital no Rio de Janeiro.

                        Na contracapa do livro, há um comentário muito favorável e elogioso de Leyla Perrone-Moysés, professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, a quem considero uma de nossas melhores críticas literárias e excepcional ensaísta (ganhadora do Prêmio Jabuti de 1993, com o livro de ensaios Vinte luas).

                        Não se pode negar que Chico Buarque escreve muito bem, com grande domínio não apenas da língua como da narrativa, especialmente neste livro, que prende e intriga o leitor, levando-o a devorá-lo gostosamente até o último parágrafo.

                        Quando do lançamento do romance, muitos que o haviam lido de antemão, como Roberto Schwarz e Eduardo Chiannetti, ressaltaram ecos da narrativa machadiana, que de fato existem, nas reminiscências do Rio antigo, na ironia do protagonista, na sua crua franqueza.

                        Mas o traço machadiano mais marcante é a obsessão do velho Eulálio D’Assumpção pelo enigma da sua mulher Matilde, pela suposta traição desta, quase a repetir as cismas de um Bentinho já caduco, que tivesse atravessado o século e, às portas da morte, continuasse a se atormentar com as lembranças de uma Capitu mulata (ou apenas morena?).

                        Como o texto é construído no plano delirante do personagem moribundo, não posso deixar de sugerir e recomendar que, até mesmo para uma comparação entre um e outro, quem ainda não leu, leia, e quem já leu releia o capítulo O Delírio, de Memórias Póstumas de Brás Cubas, que, segundo consta, o grande Eça de Queiroz sabia de cor e frequentemente reproduzia de viva voz.

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4 comentários

  1. GUILHERME GARCIA
    05/05/09 at 7:36

    Tio.
    Esperava ansiosamente este post.
    Ao nos encontrarmos naquele domingo você disse que escreveria sobre o livro.
    Como mero leitor fiquei muito feliz, pois é de longe o melhor livro do Chico.
    Devorei, derramei todo o leite sobre mim.
    Que bom que sua análise “profissional” corrobora com a minha de leitor amador.
    Um abraço em todos.

    Guilherme Garcia

  2. Sonia Kahawach
    05/05/09 at 11:00

    Comprei o livro tem uma semana e ainda não li. Como v. diz quando a gente tem diversos pra ler, acaba tendo de optar, até mesmo quando não se tem de ceder a vez. Devo começar a ler nesta semana e depois darei minha modesta opinião ao “profissional” como bem o diz o Guilherme acima. Nunca li nenhum do Chico e acabo ficando sempre com as músicas que são adoráveis. Vamos ver o que encontrarei.

  3. Lilian
    05/05/09 at 13:42

    Ao ver o título, se bem conheço o meu Professor, achei que ele não gostou muito. Mas, contrariando a expectativa do título deste post, ao se debruçar com tanto carinho, tecendo tantos comentários a respeito de uma obra, acho que ele gostou, sim… Ainda mais se lhe foi possível uma conexão com Machado de Assis. E o simples fato do autor (Chico Buarque) ter submetido a obra à apreciação de uma das maiores críticas literárias do país mostra que ele sabia o que estava fazendo. Ou seja, o próprio escritor gostou de sua obra! Considero isto o mais importante em qualquer tipo de produção, especialmente literária: ninguém melhor que o próprio autor para saber se “ficou bom”. E pela coragem, pelo jeito, ele deve ter achado que sim! Mas, realmente, lembrando de suas músicas, que podem nos conduzir a estados mágicos da alma… qualquer coisa que ele escreva, qualquer leite que derrame ou envasilhe estará sujeito a ficar aquém dos maravilhosos momentos que ele já proporcionou à música brasileira, pois a comparação será sempre inevitável, por se tratar do mesmo gênio.

  4. bellgama
    07/05/09 at 11:24

    Papilly, parece que esse post realmente era muito esperado. Eu também, após ter lido o livro, queria trocar as impressões com alguém. Melhor ainda se esse alguém é você. Achei tua opinião ótima e certeira. Achei a mesma coisa do livro. O engraçado é que depois de ler “Leite Derramado” eu peguei o “Memórias Póstumas” sem fazer essa ligação direta. Continue indicando livros para a gente ler, sinto uma super falta disso! beijos

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