O poeta de pedra

 

 

                        Neste ano, além dos 200 anos do nascimento de Darwin e de Poe (ambos nasceram em 1809), faz uma década que o poeta João Cabral de Melo Neto morreu, e até agora pouco se falou disso.

                        Por uma dessas traições incompreensíveis da vida (também praticada contra Jorge Luis Borges cego e Beethoven surdo), nos seus últimos anos o poeta já não conseguia ler, nem escrever, em decorrência de uma doença degenerativa da vista, e a profunda depressão que isso lhe causou sem dúvida alguma abreviou a sua existência.

                        Não farei aqui, e nem tenho competência para tanto, uma análise sobre a magnitude de sua obra poética, mas uma singela homenagem ao revelar alguns aspectos do homem que continha o artista.

                        Sob a aparente sisudez e austeridade — que também marcavam sua poesia — existia um homem afável, que adorava conversar, era louco por futebol (que chegou a jogar na juventude, tendo recebido proposta para se profissionalizar, e sobre o qual fez diversos poemas), e também um grande gozador.

                        Aliás, sendo diplomata, haveria de ter essas qualidades humanas, ainda que não mundanas.

                        Ele e Vinicius de Moraes, também diplomata, eram aparentemente o oposto um do outro. Mas o apolíneo João Cabral e o dionisíaco Vinicius se davam muito bem e se admiravam.

                        É óbvio que havia tertúlias sobre a poesia seca de Cabral e o lirismo de Vinicius, o qual (outro grande gozador) provocava o amigo dizendo que poesia tinha de ser visceral.

                        Pois um belo dia João Cabral chegou a um encontro com Vinicius trazendo um embrulho, que logo atirou à mesa e abriu, exibindo um coração de boi, um fígado e outras vísceras compradas no açougue:

                        — Toma aí Vinicius, para você fazer uma porção de poemas!

                        Durante a maior parte de sua vida, João Cabral sofreu de uma dor de cabeça constante e terrível, que o atormentava, aliviada com aspirina, para a qual, agradecido, lavrou o poema Num monumento à aspirina, cuja primeira estrofe transcrevo:

 

                               Claramente: o mais prático dos sóis,

                               o sol de um comprimido de aspirina:

                               de emprego fácil, portátil e barato,

                               compacto de sol na lápide sucinta.

                               Principalmente porque, sol artificial,

                               Que nada limita a funcionar de dia,

                               Que a noite não expulsa, cada noite,

                               Sol imune às leis de meteorologia,

                               a toda hora em que se necessita dele

                               levanta e vem (sempre num claro dia);

                               acende, para secar a aniagem da alma,

                               quará-la, em linhos de um meio-dia.

            

                        No seu último depoimento, que faz parte do documentário Recife Sevilha: João Cabral de Melo Neto, da Produtora Giros, o poeta relata que, estando certa vez num lugar de flamenco com uma bailarina sevilhana, perguntou-lhe:

                        — Te gusta este cantador?

                        E ela:

                        — No! No expone!

                        O que suscitou do poeta o seguinte comentário:

                        — Sim, o sevilhano quer sempre a coisa feita no máximo. Fazer no extremo, onde o risco começa….”

                        É sabido que as touradas exerciam em João Cabral o mesmo fascínio que o flamenco. De minha parte, não consigo gostar das touradas, em que pesem as explicações de seus entusiastas, a tradição que encerra, a simbologia da luta entre o homem e a natureza bruta.

                        No mesmo depoimento conta ele sobre a primeira corrida de touros em que foi, achando que não ia gostar “por causa desse negócio da morte”. Mas gostou, e esclarece por quê:

                        — O toureiro se expõe a tais perigos, que você acaba sentindo solidariedade. Manolete me ensinou muito em matéria de poesia, porque ele toureava de uma maneira essencial. Não dava um passo a mais. Ficava parado e o touro é que se desviava dele.

                        — O Cordobez tinha uma grande coragem, mas era muito espalhafatoso. Ele se ajoelhava na frente do touro e fazia essas coisas que entusiasmavam o povo, mas para os verdadeiros aficionados não surtia efeito. Manolete matou o touro que também o matou com uma única estocada, perfeita. Morreu porque para dar a estocada bem dada, você tem que se aproximar do touro e este o atingiu com o chifre direito, que rompeu a veia femoral. Tourear não é uma coisa para qualquer um. Tive um amigo que conheceu Manolete e lamentava por eu não ter sido apresentado a ele. Dizia que nunca tinha conhecido duas pessoas, com tanta capacidade para se tornar amigas como nós dois. E dizia que nossas personalidades eram tão parecidas que rimavam. Uma rima seca.

                        João Cabral de Melo Neto morreu, mas a fonte perene  de sua poesia jamais secará.

 João Cabral

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Um comentário

  1. Lilian
    17/05/09 at 15:58

    O apreço pelas artes (será que esta “construção” está correta??? rsrs) é uma das coisas que nos distinguem no reino animal. Gosto um tanto de Vinícius, um pouco de João Cabral e muitíssimo de Pablo Neruda!

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