Posts from dezembro, 2009

 

                        Nas Pílulas: Seus Saraivas (você também não será um?)

A paisagem roubada

 

 

  

                      Sempre que estou no Rio de Janeiro não resisto a  rever o  banco, à altura do Posto 6 em Copacabana, onde se instalou desde 2001 a estátua de Drummond, sentado de costas para o mar. Na base do banco acha-se gravado o verso: No mar estava escrita uma cidade.

                        A estátua de bronze, confeccionada pelo também mineiro Leo Santana, retrata com impressionante semelhança a figura do poeta, nas suas feições,  na sua postura retraída e meditativa, no seu olhar melancólico:

 

                                   O homem atrás do bigode

                                   é sério, simples e forte.

                                   Quase não conversa.

                                   Tem poucos, raros amigos

                                   o homem atrás dos óculos e do bigode.

 

                        Todavia, ao contrário do que supunha, o poeta deixou muitos e muitos amigos. O local vive cheio de gente, pessoas que se sentam perto dele, sussurram-lhe ao ouvido, acariciam-no, oferecem-lhe flores, tiram fotografias ao seu lado (como eu mesmo fiz). Uma das cenas mais comoventes a que assisti foi a de um mendigo que permaneceu largo tempo sentado próximo de Drummond, a lhe dizer coisas que somente os dois podiam entender (creio que ninguém ousou se aproximar e atrapalhá-los, como costuma acontecer). Finalmente, o mendigo se levantou, beijou a cabeça do poeta e se foi com seu sorriso banguela, por certo feliz com o que dissera e ouvira.

                        Já sem o bigode da mocidade, alguns imbecis insistem em também tirar do poeta os óculos, o que tornou a acontecer agora, pela oitava vez!

                        A bem de ver nenhum poeta precisa de óculos, já que os poetas veem com os olhos de dentro e não com os de fora. 

                        Mas o que farão os larápios com os óculos arrancados do poeta? Não acredito que guardem de recordação ou como um troféu, o que de modo algum justificaria o ato de vandalismo, mas pelo menos lhe emprestaria algum significado. É quase certo que vendam para ser derretidos e com o dinheiro possam se derreter nas pedras de crack.

 

                        Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram,

                        mas a areia é quente, e há um óleo suave

                        que eles passam nas costas, e esquecem.

 

 

 

 

Assim é, se lhe parece

 

 

 

“Podia me dizer, por favor, qual é o caminho para sair daqui?”

“Isso depende muito do lugar para onde você quer ir”, disse o Gato.

(Lewis Carrol, Alice no País das Maravilhas, capitulo VI)

 

 

                        Na histeria coletiva do politicamente correto, em que beijar uma filha pequena, se isso parecer inconveniente aos circunstantes, pode levar à prisão, Lewis Carrol estaria condenado inapelavelmente como pedófilo. Aliás, há muitos idiotas da objetividade, como diria Nelson Rodrigues, que pensam que de fato ele o fosse.  

            Nesta época de presentes, a maioria inútil ou decepcionante para quem recebe, já que poucos têm o dom de saber o desejo do outro, antes mesmo que este o sabia, como anotou com extraordinária agudeza Contardo Calligaris num artigo recente, a editora Cosac Naify nos oferece uma primorosa edição de  Alice no País das Maravilhas, com excelente tradução de Nicolau Sevcenko e ilustrações de Luiz Zerbini, em que o formato das páginas imita cartas de baralho e o próprio livro vem dentro de uma caixa que simula a embalagem do baralho. 

 

 

                        Para os que tem olhos de ver, ou ler, os dois clássicos de Carrol sobre as aventuras da menina (Alice no País das Maravilhas e Através do Espelho) vão muito além de simples contos de fadas, ainda que possam ser lidos como tais, sem problema algum. Aliás, nenhum conto de fada é apenas o que parece.

                        Além do lançamento da Cosac Naify, os estúdios Disney divulgaram o segundo trailer de Alice no País das Maravilhas, dirigido por Tim Burton, que deve chegar aos cinemas brasileiros em abril de 2010 (haverá também uma versão em 3D, que vai se tornando moda, embora alguns espectadores possam sentir vertigens e náuseas).

                        Para mim, Burton afigura-se o diretor ideal para recriar o mundo lúdico e imprevisível imaginado por Carrol, e o casting promete, com Johnny Depp no papel do Chapeleiro Maluco, Helena Bonham Carter, como a Rainha Vermelha e Anne Hathaway como a Rainha Branca.

                        O trailer parece confirmar as qualidades do filme. Confira aqui. 

 

 

Lewis Carrol

 

 

 

 

 

                        Bons tempos os do Presidente Bossa Nova, nas Pílulas.

O homem que consertava máquinas de escrever

 

 

 

                        Os amigos adoravam provocá-lo. Ele, que não tinha nada de bobo, bem sabia disso, mas não fugia do confronto e até sentia prazer no enfrentamento.

                        Nas ocasiões em que a conversa arrefecia, porque já tinham falado de quase tudo, política, mulheres, futebol, velhas histórias sempre repetidas, mas nunca iguais, e até das últimas fofocas, alguém lançava o desafio:

                        ― Qual foi o maior invento de todos os tempos?

                        E cada um por vez ia dando sua opinião, que variava ao sabor da imaginação do momento.

                        ― O balão, que levou ao avião!

                        ― A eletricidade!

                        ― Fico entre a roda e a alavanca, sem as quais ainda estaríamos vivendo nas cavernas.

                        ― A televisão!

                        ― A fotografia!

                        ― A mulher!

                        Deixavam ele sempre por último, porque já sabiam o que diria:

                        — O maior invento de todos os tempos foi a prensa de imprimir de Gutenberg, no século XV, que revolucionou o mundo e universalizou o conhecimento, com impressão em escala de livros e jornais, antes restrita à produção dos monges copistas e só acessível por alguns poucos padres e fidalgos. Embora o primeiro livro imprimido por Gutenberg tenha sido a Bíblia, a nova arte provocou temores de toda ordem, pois, para muitos, o livro saído de um prelo, e não da tinta de um monge escriba, iria se tornar uma força subversiva, capaz de abalar a fé e de reduzir a autoridade da Igreja.

                        E acrescentava:

                        ― Mas depois da prensa, a maior invenção, sem dúvida, foi a máquina de escrever, que por sua vez democratizou o tipógrafo de Gutenberg, permitindo que empresas e indivíduos imprimissem seus escritos diretamente e a baixo custo. Além disso, contribuiu para a emancipação feminina, proporcionando às mulheres um mercado de trabalho que não tinham antes, ao demonstrarem que, para elas, datilografar era tão fácil quanto costurar. E o que dizer da relação entre os escritores e suas máquinas, que se tornaram companheiros e cúmplices?

                        E daí não parava mais de discorrer sobre as maravilhas das máquinas de escrever, de que era profundo conhecedor e verdadeiro mestre em conservá-las e consertá-las.

                        Embora seja difícil precisar quando a máquina de escrever teria sido inventada e começou a ser fabricada, sabia grandes histórias a respeito. Duas delas o fascinavam especialmente, e não se cansava de contá-las. A do nobre italiano Pellegrino Turri, que por volta de 1808 fabricou um artefato para que uma amiga, cega, pudesse se corresponder com ele. A máquina já não existe, mas algumas das cartas, sim. E a máquina brasileira inventada pelo padre Francisco Azevedo, apresentada na feira Internacional de Recife em 1861, gerando grande interesse, mas que nunca chegou a ser fabricada em série e cujo protótipo foi destruído.

                        ― Aliás ― dizia ele ― é muito estranho que os americanos tenham abandonado de uma hora para outra os modelos em que vinham trabalhando há tanto tempo, justamente na época em que retornavam à América os emigrados de Recife. E as novas máquinas que passaram a desenvolver tinham grande semelhança com o projeto do padre Azevedo, até mesmo nos seus defeitos.

                        Cinco séculos depois do invento da prensa por Gutenberg, Marshall McLuhan, tido com o arauto dos novos tempos, decretou o fim do que denominou de Galáxia de Gutemberg, sustentando que o Cosmo da Impressão teria pouquíssima chance de sobreviver numa aldeia global que então se constituía, movida toda ela pela força das imagens. Uma nova galáxia, a audiovisual, então em fase de assombrosa expansão, em breve iria superá-la. Com o advento da internet e dos e-books novas previsões pululam a cada minuto acerca do fim do livro impresso, mas ele tem resistido bravamente.

                        Seu interesse e conhecimento remontavam à meninice, desde o seu primeiro emprego como ajudante de tipógrafo, quando se apaixonara irremediavelmente pela arte da impressão, os modelos e detalhes dos caracteres, a composição, o acabamento.

                        Já adulto, resolveu se estabelecer por conta própria, e à falta de capital para uma tipografia, montou uma modesta loja para vender máquinas de escrever e consertá-las. A sua expertise e dedicação levaram-no a progredir junto com a cidade e chegou a enricar, tornando-se proprietário da maior casa comercial do ramo na região.

                        Após o surgimento das máquinas elétricas ainda prosseguiu firme no negócio, embora contrariado, pois se matinha fiel os velhos modelos mecânicos, para cuja utilização bastava uma superfície plana, sem tomada por perto, nem risco de interrupção pela queda da energia elétrica. Além disso, com um pouco de manutenção, limpeza e lubrificação, duravam a vida toda.

                        Mas com a era da informática e dos microcomputadores deflagrada nos anos 1980, foi perdendo espaço até que decidiu fechar a loja. Os filhos e amigos insistiram com ele para se adaptar ao mercado, passar a vender computadores e a parafernália que os acompanha, mas ele se recusou terminantemente.

                        Levou consigo para casa diversas máquinas de escrever que colecionava e tinha na conta de verdadeiros ícones, construiu um barracão no amplo quintal para acomodá-las e lhe servir como oficina e lazer. Muito raramente era chamado, e acorria com grande deleite, a consertar ou fazer a manutenção de algumas máquinas de escrever que sobreviviam nas mãos de outros poucos apaixonados como ele.

                        A exemplo das ruas da Recife antiga do menino Bandeira, como eram lindos os nomes das velhas máquinas de escrever: Remington, Underwood, Olivetti, Facit, Olympia, Royal, Everest, Alpina, Erika! Os microcomputadores de hoje nem nome têm, mas siglas: IBM, HP, Mac, Dell…

                        Secretamente, alimentava grandes esperanças no anunciado bug do milênio, na transição de 1999 para 2000, o que haveria de confirmar a vantagem das velhas máquinas de escrever.

                        Mas o tal bug foi como a passagem do Cometa Halley em 1986, que ele também esperou com grande ansiedade: ninguém sabe, ninguém viu.

                        Mesmo assim, a vida lhe reservava um momento de glória inexcedível.

                        Já em pleno século XXI, as diabruras climáticas, fruto das ações diabólicas do homem contra a natureza, provocaram trombas-d’água com vendavais devastadores durante uma semana sem parar, que deixaram a cidade, situada num vale ao sopé de uma cadeia de morros, totalmente ilhada e sem energia elétrica, em decorrência da queda de linhas de transmissão. A periferia e a zona rural foram as mais afetadas pela enchente, que levou de roldão as pontes dos ribeirões do Taboão e do Piripau, que davam acesso ao município pelos dois lados principais, dificultando enormemente os reparos para restabelecimento da energia.

                        Durante o dia, apesar da falta de eletricidade e da chuva fina que persistia, o cotidiano ainda se mantinha razoavelmente, mas à noite os lampiões a gás, velas e lanternas voltaram a reinar. E ele gostava disso, lembrando-se da cidade penumbrosa da sua infância.

                        Depois de uma semana às escuras, e sem perspectiva de quando os problemas seriam sanados, foi chamado para uma reunião no fórum, com o juiz de direito, a promotora de justiça, o prefeito, o delegado, o tenente que comandava o destacamento da Polícia Militar, o padre, o provedor da Santa Casa e outras pessoas gradas da comunidade.

                        Estranhou haver sido convocado. Mas logo foi posto a par e se encheu de orgulho e satisfação: pediram-lhe que cedesse as suas velhas máquinas de escrever, conservadas impecáveis, para que fossem utilizadas pelas repartições públicas para manutenção dos serviços básicos e de urgência.

                        Claro que concordou, e já na manhã seguinte distribuiu as máquinas, instruiu como utilizá-las e passou a percorrer diariamente os locais para verificar se tudo estava em ordem. Como lhe soavam bem os estalidos dos teclados e a sineta que assinalava o final do curso do carro, e ao mesmo tempo se divertia com as agruras dos atuais digitadores para se transmudarem em verdadeiros datilógrafos, valendo-se da força necessária para premer as teclas!

                        Transcorreu mais de um mês até que tudo se normalizasse. Pouco depois ele foi homenageado pelo prefeito e pela Câmara de vereadores, que lhe outorgou o título de cidadão emérito. O juiz fez questão de fazer uso da palavra para também agradecê-lo e cumprimentá-lo em nome dos comarcãos e do Poder Judiciário. O prefeito, no seu discurso, prometeu que encaminharia um projeto à Câmara para criar na cidade um museu das suas máquinas de escrever, do qual ele seria o responsável (o que acabou não fazendo).

                        Durante a cerimônia, sua família e seus amigos diletos assentaram-se na primeira fila e o aplaudiram entusiasticamente.

                        Mas o melhor de tudo veio depois, quando retomaram as conversas desocupadas na barbearia. Foi ele então quem provocou a questão recorrente:

                        ― Qual foi o maior invento de todos os tempos?

                        — A prensa de Gutenberg, responderam-lhe os outros, quase em uníssono.

 

 

 

 

 

 

 

Tigre em banco de areia

 

 

 

 

                        Embora sempre tenha gostado muito de todos os esportes, comecei a me interessar pelo golfe já na idade madura, mais precisamente quando surgia o fenômeno Tiger Woods. Passei a acompanhar algumas transmissões da ESPN dos torneios mais importantes de que Tiger participava e aos poucos apreendi as regras básicas, o suficiente para me permitir saber o que estava acontecendo durante os jogos.

                        A Carol me gozava em razão disso, dizendo que passar a gostar de golfe, dispor-me a assisti-lo pela televisão e ainda achar que se tratava de esporte era um dos meus primeiros sinais de velhice.

                        Dizem que o golfe é um esporte elitista e chato. Não é verdade. Ou melhor, pode ser elitista no Brasil, onde não existem campos públicos em que todos possam praticar e ter aulas. Um conjunto básico de tacos para iniciante (que não precisa ser novo) ainda é caro para a realidade brasileira, mas não custa muito mais do que uma boa raquete de tênis.

                        Quanto à suposta chatice, dizem os que o jogam que as grandes dificuldades técnicas dos diversos golpes, a necessidade de praticar sempre para superar a si mesmo, a possibilidade de um jogador medíocre enfrentar um bem melhor em condições de relativa igualdade, graças ao sistema de handicap, tornam as partidas divertidíssimas, sem falar das maravilhas dos campos, da paisagem, das longas caminhadas que propiciam (e os mais idosos podem se locomover com os carrinhos elétricos).

                        Embora tenha pensado nisso várias vezes, ainda não me iniciei no aprendizado do golfe, e talvez jamais o faça, mas acompanhar um torneio em que os grandes nomes estão presentes, em especial o Tiger Woods, continua a me agradar muito. Ele tem uma técnica refinadíssima, joga com grande elegância, é capaz de tacadas inacreditáveis, de sair de grandes dificuldades e se recuperar de uma má jogada ou de um mau dia, de manter a frieza e o controle até o final do match, enfim tem todas as virtudes de um grande campeão. Bateu inúmeros recordes de um esporte obcecado pelas estatísticas.

                        Os valores estratosféricos dos prêmios e patrocínios que abiscoitou durante a carreira, a sua própria figura, misto de negro e asiático, guindaram-no à condição de grande atração e do esportista que mais faturou nos últimos anos.

                        Eis que o grande campeão, que se casou com uma sueca belíssima e com ela teve dois filhos, passando a imagem pública também de um chefe de família exemplar, numa tacada infeliz manda a sua bola para o banco de areia, e nele fica entalado.

                        A bem dizer, teriam sido várias tacadas, em que o golfista não se contentando com o hole in one de casa, foi embocar (ou putiar, como se diz no golfe) em outros.

                        A velha hipocrisia anglo-saxônica logo se manifestou e o transformou de herói em vilão. Perdeu patrocinadores e se viu obrigado a se afastar temporariamente do esporte, para se penitenciar dos seus erros e tentar salvar o casamento. Aliás, a loura sueca, que lhe enfiou um taco na testa, ganhará milhões e milhões de dólares quando mais permaneça casada com ele, segundo o acordo pré-nupcial.

                        O que sempre me incomoda em tais episódios é saber o que possa interessar a intimidade do grande campeão, e o que isso o desmereça como um dos maiores, se não o maior, jogador de todos os tempos. Essa curiosidade mórbida, a exploração pelos tablóides, pelas revistas de fofocas e até por outros veículos da mídia que se pretendem sérios é o que há de pior e de mais repugnante na nossa sociedade de massa.

                        Não me meto na vida de casal algum, nem nas aventuras extraconjugais de quem quer que seja. A mim me interessa a obra do escritor, do pintor, do compositor ou do esportista. Os incidentes e percalços da sua vida podem mais tarde servir para interpretar e compreender a sua obra, mas não para a julgar.

                        Sem pretender justificar a conduta de Tiger Woods ou de qualquer outro homem infiel — e assumindo o risco de ser incompreendido pelas feministas — constato apenas que nessas coisas os homens são mais irracionais do que as mulheres, e que são capazes de grandes estupidezas quando lhes abrasa o desejo entre as pernas. E nem sempre, como Ulisses e sua tripulação, conseguem tapar os ouvidos com cera e se amarrar ao mastro do navio, para não se entregarem ao canto das sereias.

                        Nas mulheres o desejo é mais refinado, mais inteligente, nasce da cabeça para baixo, — e não no sentido inverso, como aos homens — o que as fazem quase sempre capazes de medir as consequências e de não se esquecer do dia seguinte.

                        Espero apenas que Tiger Woods possa sair logo do banco de areia em que se meteu.

 

 

 

 

                        Nas Pílulas: Do vestido curto à borracha no lombo.

O homem que tinha sido caixeiro-viajante

 

 

                        Certa manhã, depois de uma noite mal dormida por culpa de sonhos inquietantes, acordou na sua cama de casal e percebeu que estava em casa e não num quarto do Hotel dos Viajantes.

                        Deu-se conta então que se achava metamorfoseado em homem comum, desde que se aposentara do seu ofício de caixeiro-viajante.

                        Enquanto lavava o rosto e escovava os dentes, viu-se no espelho do banheiro: um homem envelhecido, de cabelos ralos e embranquecidos, a barba por fazer, o olhar baço. Sentia-se um inseto monstruoso, tão diferente daquele moço de cabeleira negra, cuidadosamente acamada com brilhantina, o bigode fino e aparado, a pele lisa e perfumada pela água de colônia após a barba, os olhos brilhantes e inquietos, pronto para sair e fazer a praça.

                        Foi até a cozinha, onde a mulher dava ordens à empregada, tomou sem gosto o café da garrafa térmica.

                        Em seguida, no pequeno escritório, sentou-se à velha escrivaninha em que costumava conferir os pedidos, preparar os relatórios e escrever cartas e memorandos após o retorno de cada viagem de negócios.

                        Tentou se entreter com o jornal, mas logo se desinteressou das notícias de sempre.

                        Gostava de ler e tinha duas estantes de livros. Levantou-se e remexeu numa delas até apanhar A Morte do Caixeiro Viajante, de Arthur Miller, que havia comprado há muitos anos logo depois de assistir à peça encenada por Jaime Costa, que tanto o impressionara.

                        Encontrou entre as páginas do livro o programa da peça. Leu alguns trechos, mas não conseguiu seguir adiante, tomado pela nostalgia e pelas lembranças. Repôs o livro na estante e pegou O Inspetor Geral, de Gógol, de que também gostava muito, mas apenas alisou a capa, folheou-o e o devolveu à prateleira.

                        Filho de libaneses, o primeiro varão depois de três meninas, seguindo-se a ele mais uma irmã e o irmão caçula, tornou-se o arrimo da família aos doze anos de idade, quando o pai subitamente faleceu.

                        Deixou a escola para trabalhar, fez biscates e trabalhou como engraxate, até que, por indicação do padrinho médico, foi contratado pela maior loja da cidade, que vendia de tecidos e armarinhos, a mobília e outros utensílios domésticos, como rádios, panelas, talheres, louças e cristais. Começou como ajudante do depósito, das entregas, e de tudo o mais que se fizesse necessário, mas logo a sua vivacidade e o seu empenho foram reconhecidos pelo dono, que aos quinze anos o pôs no balcão.

                        Quando chegou aos dezoito, e já era de longe o melhor vendedor da casa, os novos sócios, que se juntaram ao antigo dono para ampliar os negócios, lhe propuseram que se tornasse o representante comercial da firma, que também passava a explorar o atacado.

                        Foi caixeiro-viajante por mais de quarenta anos, viajando a princípio de trem, jardineira e até em lombo de burro, debaixo de sol e de chuva, envergando o guarda pó ou a capa de gabardine e carregando seus pesados mostruários. Em geral aportava numa cidade maior e a dela fazia o pião para os lugarejos próximos, até mesmo na zona rural, retornando no final do dia.

                        O que os seminários, treinamentos e workshops de hoje em dia professoram, ele e os colegas já praticavam com intuitiva vocação: sabiam os nomes de cada cliente, com os quais mantinham uma relação pessoal, conhecendo-lhes os gostos, os hábitos e as necessidades. Iam até eles oferecer as mercadorias e apresentar as novidades, em vez de esperar que os clientes tomassem a iniciativa, e ainda prestavam assistência e orientação pós-venda, resolvendo eventuais problemas e dificuldades.

                        Certa ocasião, ao se dirigir a um distrito retirado para visitar um bom e fiel cliente, passou por uma choupana abandonada, em que antes costumava ver umas moçoilas bonitas à porta, o que o fazia apear, pedir água e cortejá-las. O seu acompanhante local esclareceu que a família havia abandonado a morada, expulsa por espíritos malsãos, que tanto atormentaram até que fossem embora.

                        Na volta, ao anoitecer, enchendo-se de valentia parou no local e disse que iria verificar se era verdade o que se contava. Aproximou-se e quando ia entrar no casebre começou a ouvir vozes insultuosas e ameaçadoras — filho da puta, corno, veado, sai daqui — seguidas de chispas e pedradas que sibilavam rentes à sua cabeça. Arrepiou carreira e com uma agilidade que desconhecia saltou na cela e picou a mula, seguido pelas gargalhadas do amigo que prudentemente o esperara montado.

                        Tornou-se uma figura famosa nas praças que percorria, não apenas pela sua eficiência de vendedor, mas principalmente pela simpatia, facilidade em fazer amigos e pelo sabor da sua conversa, das anedotas e dos causos que desfiava um após outro, tanto para os fregueses, quanto para os colegas, reunidos nos bancos e nas cadeiras na calçada defronte dos hotéis.

                        Era benquisto por todos, mas mantinha uma rivalidade cordial, nas vendas e nos galanteios, com outro caixeiro-viajante, um português do Minho, que havia emigrado ainda menino com um irmão mais velho, clandestinos num navio, fugindo da miséria e das dificuldades da Grande Guerra de 1914. O gajo era quase o seu oposto, um tipo apolíneo e reservado, sempre impecável nos seus fatos de linho 120, e a indefectível pérola na gravata, mas se respeitavam e admiravam.

                        Com muito sacrifício e uma boa dose de loucura conseguiu adquirir um automóvel novo, um Ford Mercury 1947, que foi buscar com um amigo no porto de Santos. Nenhum dos dois sabia como dirigir aquele tipo de carro. Receberam algumas instruções e praticaram um pouco no pátio do porto. Em seguida, com um papelucho colado no para-brisa indicando como trocar as marchas, subiram a serra serpenteante até São Paulo, e de lá se embrenharam pelas estradas poeirentas até o sul de Minas.

                        Quase não bebia, mas fumava muito, adorava um carteado e rabo de saia, que lhe custaram dissabores pecuniários e venéreos.

                        A única coisa capaz de alterar o seu humor e sua permanente disposição para a vida era o jogo. Não o entusiasmava a possibilidade de fazer fortuna num golpe de sorte, mas sim o ambiente, o convívio com os parceiros, o prazer do jogo em si, as artimanhas, o blefe bem aplicado.

                        Mesmo assim, ou por isso mesmo, não gostava de perder. Enquanto ganhava, era o brincalhão de sempre. Pilheriava, contava histórias saborosas, puxava uma cadeira vazia e a colocava do seu lado, convidando fantasmas de conhecidos e parentes para se sentar e jogar com ele. Mas se passava a perder seguidamente, transfigurava-se. Ficava macambúzio, trocava o baralho, reclamava das cartas e, em última — e infalível — instância, ia ao banheiro, tirava a cueca e a vestia pelo avesso. Quando recorria a esse expediente extremo, conseguia pelo menos equilibrar o jogo, mas na maioria das vezes a sorte virava e voltava a ganhar.

                        A vida penosa e descuidada lhe foi comprometendo a saúde, e uma bronquite asmática crônica se complicou e afetou seriamente os pulmões, obrigando-o a se aposentar antes do que pretendia, se bem que então os tempos já não eram os mesmos.

                        Durante breve período ainda se mantivera na ativa, tirando pedidos pelo telefone, graças à confiança e amizades granjeadas, mas isso não o satisfazia, antes aumentava sua melancolia de balão cativo.

                        Pensava nisso tudo e em muito mais que vivera, enquanto atravessava a praça em direção à barbearia onde se encontrava diariamente com os amigos, em busca do que ficara para trás, um sorriso e um sapato bem lustrado.

 

 

 

 

 

                        A merda do Lula está nas Pílulas.

Rap derrapado

 

 

 

                        Não tenho o radicalismo nem a boca maldita de José Ramos Tinhorão, e até discordo de muita coisa que ele diz e pensa, embora reconheça a seriedade do seu trabalho e sua vasta cultura musical.                       

                        Mas também estou longe do bom-mocismo de Nelsinho Motta, que gosta de tudo, acha quase todos geniais e saúda qualquer novidade como uma revelação extraordinária e promissora. Duvido que ele acredite nisso de fato, pois está muito longe de ser imbecil. Peca talvez pelo excesso de simpatia.

                        Vejamos o caso do RAP (rhythm and poetry), que surgiu na Jamaica na década de 60 e foi introduzido nos EUA pelos jovens jamaicanos que foram para Nova Iorque. Com uma batida rápida e acelerada e a letra em forma de discurso, fala das dificuldades da vida dos habitantes de bairros pobres das grandes cidades, incorporando gírias das gangues, além de danças e malabarismos corporais.

                        O rap é cantado e tocado por uma dupla composta por um DJ, responsável pelos efeitos sonoros e mixagens, e por MCs que desfiam a  letra cantada ou discursada.

                        Logo o Brasil, apesar de nossa riqueza de ritmos e gêneros musicais, macaqueamos o rap, e inúmeros grupos embarcaram na nova onda, ganhando espaço nas rádios, TVs e nas indústrias fonográficas.

                        Nada contra. Há gosto para tudo, e para quem gosta é um prato cheio.

                        O que precisa ser dito, sem medo de nadar contra a corrente, é que o rap, em regra, apresenta uma indigência de melodia e letra que não permite ombreá-lo a produções verdadeiramente artísticas, como se tem pretendido.         

                        É claro que, mesmo não me agradando o estilo, reconheço que há exceções talentosas, mas são raras.

                        Trata-se de uma manifestação cultural? Sem dúvida!

                        Merece respeito? Lógico que sim!

                        É um meio para que o jovem pobre e marginalizado se expresse em vez de partir para ações violentas? Ótimo!

                        Mas nada disso é suficiente para qualificar todo e qualquer militante do rap como um grande e inspirado artista ou poeta.

                        Nem tudo que é fruto da cultura, ou de uma cultura, se constitui arte.

                        Os negros e pobres dos EUA também criaram formas de se expressar, como o blues, o jazz e suas vertentes, esses sim de inegável valor artístico.

                        Os negros e pobres do Brasil, do mesmo modo, criaram o samba, o chorinho e outros gêneros de extraordinária qualidade e significação. Aliás, os rappers, pelo menos os brasileiros, teriam muito a aprender com as emboladas e os repentistas nordestinos.

                        Prova disso? A composição Língua, de Caetano Veloso pode ser considerada um rap, ou pelo menos tem muitas características de um rap, a demonstrar que é possível existir vida inteligente e arte em qualquer meio (embora nem sempre haja).

 

Língua (ouça aqui)

Caetano Veloso

 

 Gosta de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões

Gosto de ser e de estar

E quero me dedicar a criar confusões de prosódia

E uma profusão de paródias

Que encurtem dores

E furtem cores como camaleões

Gosto do Pessoa na pessoa

Da rosa no Rosa

E sei que a poesia está para a prosa

Assim como o amor está para a amizade

E quem há de negar que esta lhe é superior?

E deixe os Portugais morrerem à míngua

“Minha pátria é minha língua”

Fala Mangueira! Fala!

Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó

O que quer

O que pode esta língua?

Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas

E o falso inglês relax dos surfistas

Sejamos imperialistas! Cadê? Sejamos imperialistas!

Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmem Miranda

E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate

E – xeque-mate – explique-nos Luanda

Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo

Sejamos o lobo do lobo do homem

Lobo do lobo do lobo do homem

Adoro nomes

Nomes em ã

De coisas como rã e ímã

Ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã

Nomes de nomes

Como Scarlet Moon de Chevalier, Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé

e Maria da Fé

Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó

O que quer

O que pode esta língua?

Se você tem uma idéia incrível é melhor fazer uma canção

Está provado que só é possível filosofar em alemão

Blitz quer dizer corisco

Hollywood quer dizer Azevedo

E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo meu medo

A língua é minha pátria

E eu não tenho pátria, tenho mátria

E quero frátria

Poesia concreta, prosa caótica

Ótica futura

Samba-rap, chic-left com banana

(– Será que ele está no Pão de Açúcar?

– Tá craude brô

– Você e tu

– Lhe amo

– Qué queu te faço, nego?

– Bote ligeiro!

– Ma’de brinquinho, Ricardo!? Teu tio vai ficar desesperado!

– Ó Tavinho, põe camisola pra dentro, assim mais pareces um espantalho!

– I like to spend some time in Mozambique

– Arigatô, arigatô!)

Nós canto-falamos como quem inveja negros

Que sofrem horrores no Gueto do Harlem

Livros, discos, vídeos à mancheia

E deixa que digam, que pensem, que falem.