Para o Bentinho, que foi ao encontro do Cartola, Nelson Cavaquinho, Pixiguinha e outros irmãos de samba e de fé.
Os dois são negros e músicos.
Ambos viveram no Rio, na velha boemia, ou na orgia, como se dizia então.
Os dois tiveram muitas mulheres, fizeram muitos sambas, foram respeitados como bambas e, pouco a pouco, caíram no esquecimento.
Ambos passaram a lavar carro, para sobreviver.
Um deles, certo dia, foi reconhecido numa rua de Ipanema pelo saudoso Sérgio Porto, o “Stanislaw Ponte Preta”.
Recuperou-se.
Tornou-se mais famoso do que antes.
Fez muito, e merecido, sucesso.
Foi reconhecido como mestre, e morreu em plena glória.
Suas músicas sempre vão falar por ele, nem será preciso que se queixe às rosas.
O outro, menos feliz, foi descoberto por mim. Na verdade, ele é que me descobriu, num dia em que apareceu no meu escritório e me pegou a martelar o computador, ouvindo música. Tinha ido até lá para me oferecer seus serviços de exímio lavador e lustrador de carro.
Voltou outras vezes, estendeu a conversa, comentou sobre as músicas que eu ouvia, e foi se revelando (e me revelando) a mim.
Tem voltado sempre. Acha que sou do ramo: “Quem nasceu no Bexiga, conhece!”.
Quer fazer música em parceria comigo.
Quer formar um grupo musical comigo.
Quer que eu cante, com minha rouca, e pouca, voz.
Quer me presentear com um dos seus instrumentos, que quase já não pode tocar por causa do enfisema avançado.
Quer formar uma escola de samba, com a minha ajuda, no bairro distante em que mora.
Quer ir a São Paulo ou ao Rio comigo, para me levar às rodas de samba e me apresentar a seus velhos amigos.
Ele é o meu duplo.
PS Alguns já terão lido este post, publicado bem no início do blog. Resolvi tirá-lo lá de trás e trazê-lo para cá em homenagem ao Bentinho, meu duplo, que acaba de partir. Quando o escrevi, imprimi e entreguei a cópia ao Bentinho, que andava com ela no bolso, todo orgulhoso. Da última vez em que nos vimos, há cerca de um mês, ele me mostrou a folha, já amarelecida e desgastada e me pediu outra. Tinha acabado de sair do hospital, depois de uma grave crise pulmonar e cardíaca que o deixou em coma. Parecia recuperado e do mesmo jeito de sempre. Insistiu mais uma vez em me dar um violão de doze cordas que lhe pertencia, mas de novo não aceitei, dizendo-lhe que um violão como aquele é para ser apreciado e tocado por quem sabe, o que não é o meu caso. Diante da sua insistência, acabei concordando em ficar com um pandeiro, desde que ele autografasse o couro. Ele foi embora, contentíssimo, prometendo que voltaria outro dia com o pandeiro, assinado. Nunca mais o vi. Avisaram-me agora que ele morreu. Fico sem o pandeiro, mas a sua lembrança permanecerá comigo. Enquanto alguém for lembrado, vive.