Antes só do que mal acompanhado, nas Pílulas.
Antes só do que mal acompanhado, nas Pílulas.
HS, grande amigo de meu pai, é uma figura ímpar, de rara inteligência, fino senso de humor e com uma percepção da vida que poucos têm.
Mesmo assim, ou por isso mesmo, diz ele já ter pronto o seu epitáfio, que esperamos demorar muitos e muitos anos para que venha a ser inscrito: “Não entendi nada”.
Se ele, do alto de sua sabedoria e vivência, já aos 80 anos, sente-se perplexo, o que posso dizer eu?
Se fosse arrolar aqui tudo o que não entendo, ocuparia todo o cyber espaço, que dizem ser infinito, como minha ignorância.
Só como exemplos, alguns acontecimentos desse último fim de semana, infelizmente corriqueiros, que me deixaram pasmado, a confirmar que devo ser mesmo um grande idiota.
UM
A Praça Roosevelt em São Paulo até há alguns anos tornava-se um deserto de cimento a partir do anoitecer. Quase ninguém se atrevia a transitar por ela, tomada por vadios, drogados, assaltantes e outros tipos assustadores.
Foi então que um grupo de malucos (sim, todo artista é um tanto maluco, e os de teatro um pouco mais), sob a liderança do dramaturgo Mário Bortolotto, criou um movimento teatral e de revitalização da região, mantendo peças em cartaz nas diversas salas das cercanias e transfigurando o ambiente com a efervescência dos botecos, cadeiras na calçada, música, altos papos.
O local antes tenebroso ganhou vida e alegria, chegando a lembrar o bairro de Montmartre, em Paris.
Mas logo as otoridades de plantão entenderam que a tal anarquia não poderia ser tolerada e que as mesas nas calçadas prejudicavam o livre trânsito dos pedestres (mas que pedestres?), obrigando os frequentadores a se confinarem no interior exíguo dos bares.
Durante a madrugada de sábado passado, no Espaço Parlapatões, um dos principais símbolos da praça e do movimento artístico, Bortolotto estava reunido com amigos no interior do bar do teatro, após a apresentação da peça Brutal, de sua autoria. Quando a porta foi aberta para permitir a entrada de uma atriz, três assaltantes armados invadiram o local e diante da reação intempestiva de Bortolotto (sim, devemos tratar com toda a deferência os assaltantes, que afinal só estão fazendo seu trabalho, e agradecê-los por nos pouparem a vida), o alvejaram com três tiros, no tórax, na barriga e no pescoço, um dos quais chegou a atingir o coração. O músico e ilustrador Carlos Carcarah tentou conter Bortolotto e também foi ferido na perna.
Bortolotto acha-se em estado gravíssimo, tendo passado por três cirurgias, mas há grande esperança de que sobreviva (tomara!). Carcarah, felizmente está fora de perigo.
Além do título emblemático da sua peça em cartaz, e de uma outra anterior, Nossa Vida Não Vale Um Chevrolet (os ladrões, porém, fugiram numa Parati), Bortolotto mantém um blog de nome não menos antevidente: Atire no Dramaturgo.
DOIS
Outra coisa que não entendo é menos trágica, mas nem por isso despida de significado da sociedade que estamos construindo (ou desconstruindo).
Sempre que há provas de vestibulares, Enade, Enem e outras do tipo (e também nas eleições) repetem-se as cenas grotescas daqueles que chegam correndo no último momento. Alguns conseguem entrar com os portões já fechando, e outros ficam de fora, lamentando e sendo entrevistados pela mídia presente.
Afora alguns casos certamente justificáveis, mas que serão excepcionais, esse tipo de conduta é revelador da irresponsabilidade e do grau de descompromisso com que encaramos nossas obrigações e deveres, muito mais preocupante ainda quando se trata de jovens a que serão confiados os destinos do país. Como é que alguém que passa o ano ou o semestre supostamente estudando e se prepararando para um exame pode chegar atrasado para prestá-lo, quando dia e horário são designados com grande antecedência e amplamente divulgados?
Nem me venham com a velha desculpa de que as vítimas disso seriam os mais pobres, que enfrentam dificuldade de locomoção. É fácil observar que a grande maioria dos atrasadinhos chega de automóvel, na companhia dos papais e das mamães (não menos irresponsáveis), ou com namorados a tiracolo, a demonstrar que não tem esse tipo de preocupação ou problema. O problema parece-me bem outro: a incapacidade de enfrentar os desafios e as responsabilidades da vida (os psicanalistas e psicólogos talvez possam explicar os mecanismos, provavelmente até inconscientes, dessa autossabotagem).
TRÊS
Futebol é mesmo paixão, uma válvula de escape das pressões cotidianas, das frustrações pessoais, e também uma representação das vitórias e derrotas que a vida nos reserva: aquelas, segundo supomos, sempre meritórias; estas, como nos iludimos, sempre injustas.
Pensava nisso no decorrer da empolgante rodada final do Brasileirão, em que o paraíso e o inferno, a glória e o desterro se alternavam a cada instante para as torcidas dos times que disputavam o título de campeão, a classificação para a Taça Libertadores da América e o rebaixamento para a 2ª divisão.
Nos minutos derradeiros do último jogo a se encerrar, Coritiba X Fluminense, embora a extraordinária recuperação do time carioca me levasse a torcer para que não caísse, condoíam-me as lágrimas dos torcedores paranaenses, entre os quais muitas mulheres (e as lágrimas delas são ainda mais irresistíveis), as feições de desespero e aflição.
Findo o jogo, porém, a selvageria que se seguiu, provocada por parte da torcida coxa branca, depredando o próprio estádio, agredindo o árbitro e os auxiliares (que tiveram uma atuação correta e sem maiores controvérsias), investindo e acuando os poucos policiais que se achavam no gramado, me deixou estarrecido.
Curitiba é considerada uma das cidades de mais alto nível de vida e de cultura do país. Se isso acontece por lá, o que se há de esperar dos outros centros e locais distantes do território nacional? Estaremos em condições de sediar uma Copa do Mundo e uma Olimpíada?
Não menos atônito fiquei ao ver imagens em que os torcedores do Coritiba brigavam entre si, assim como os torcedores do Flamengo se digladiaram pelas ruas do Rio durante as comemorações do título conquistado!
Para aonde vamos nós?
Chamava-se Alberto.
O nome lhe fora dado pelo pai em homenagem a Alberto Santos Dumont, por ele considerado o maior brasileiro de todos os tempos, desde que em 1901 contornara a Torre Eiffel com o Dirigível nº 6, vencendo o prêmio Deutsch, no valor de 100.000 francos.
Além disso, havia nascido em outubro de 1929, exatamente no mês e ano em que um dos Zeppelins dera a volta ao mundo. A explosão do Hindenburg, em 1937, quando ele tinha apenas oito anos, foi tratada em sua casa como uma tragédia familiar ou nacional, deixando o pai acabrunhado por muito tempo.
Sob a influência paterna, à medida que crescia, crescia também sua paixão por balões e dirigíveis.
Com os livros herdados do pai e alguns outros que comprou em sebos nas raras viagens à capital, sabia quase tudo a respeito, desde a descoberta dos balões a ar quente dos irmãos Montgolfier, seguida do balão a gás de Jacques Charles, no ano de 1872.
Outro brasileiro, o deputado Augusto Severo de Albuquerque Maranhão, projetou em 1902 o balão dirigível Pax, que representava uma nova concepção, em que a barca e o invólucro constituíam um mesmo corpo. Dessa maneira, a oscilação era reduzida, diminuindo as perdas de velocidade e melhorando a capacidade de manobra, de modo a superar uma das causas de frequentes acidentes. Contudo, o grande inventor faleceu quando o balão explodiu numa demonstração, em Paris
Muito antes disso, porém, em agosto de 1709, o padre Bartolomeu de Gusmão, nascido em Santos, fizera voar um pequeno balão de ar quente, pela primeira vez no mundo, na Sala das Embaixadas da Corte de Lisboa, perante a família real, diversos nobres e vários embaixadores estrangeiros. Após três tentativas o balão teria conseguido subir quatro metros, quando foi destruído por dois guardas, receosos de que o Padre Voador provocasse outro incêndio no Palácio, como das outras vezes. Tachado de feiticeiro, de ter um pacto com o diabo e com inimigos poderosos, o pobre sacerdote foi perseguido e sua experiência ignorada, apesar de o monarca ter assinado uma petição de privilégio pela descoberta de “um instrumento para andar pelo ar da mesma sorte que pela Terra e pelo Mar, com muito mais brevidade”. Depois de perder o apoio de D. João V, abandonado e esquecido, Bartolomeu de Gusmão viveu os seus últimos anos de vida com um irmão, na Espanha, onde morreu na mais absoluta miséria.
Alberto se identificava com Bartolomeu de Gusmão, pois nunca tivera apoio nem reconhecimento na pequena cidade em que nascera e vivia, ganhando a vida como barbeiro. Ao contrário, desde menino era alvo de chacotas e de piadas. Por isso, e pela falta de pecúnia, jamais conseguira construir o grande balão que havia projetado.
Na velhice, seus únicos e fiéis amigos, e também fregueses, eram o homem que tinha sido caixeiro-viajante (e não mais viajava), o homem que consertava máquinas de escrever (substituídas pelos computadores), o homem que ensinava latim (língua dada como morta), o homem que tirava fotografias com a máquina lambe-lambe (que já não funcionava), o homem que fora motorneiro em São Paulo (quando bondes havia em São Paulo), o homem que tocava tuba na banda (que fora extinta), o homem que andava de pernas de pau (que estavam quebradas e abandonadas num canto), o homem do realejo (cujo periquito morrera), o homem que badalava os sinos da igreja (que o novo padre substituíra por uma gravação) e o homem que fazia sonetos parnasianos (sempre em busca de um fecho de ouro).
Passavam várias horas conversando sobre suas especialidades e lembranças na barbearia ou, nos momentos de folga, num banco da praça, defronte da fonte luminosa, que há muito estava seca e não funcionava.
Um dia, no final de julho, souberam que no próximo mês de agosto a pequena cidade, conhecida por ventar muito, seria sede de uma das etapas do campeonato nacional de balonismo.
Alberto ficou em polvorosa, e o seu entusiasmo contagiou os amigos. Será que ele conseguiria finalmente dirigir um balão? Algum dos competidores lhe permitiria realizar esse sonho?
Agosto, mês do desgosto.
Durante vários dias o céu da pacata cidade se multicoloriu com os balões, mas o máximo que Alberto logrou foi a promessa de que, no último dia do evento, um domingo, em que não haveria competição, mas apenas uma exibição para o público, um dos balonistas o levaria a voar com ele. Mas isso não lhe interessava. Queria ele próprio dirigir o balão e demonstrar sua maestria e todo o seu conhecimento.
Na madrugada de sábado para domingo, sorrateiramente, os velhos amigos penetraram no aeroclube local, onde os balões estavam armazenados, escolheram o maior deles (que não era usado na competição, mas sim para publicidade e levar os árbitros), e sob o comando firme de Alberto alçaram voo.
Quando o vigia se deu conta, já estavam a uns vinte metros de altura.
O alarme foi dado e logo a cidade toda acorreu ao local.
O dia amanhecia e os primeiros raios de sol cintilavam no balão colorido, que subia, subia, subia, até desaparecer do alcance da vista, levando o homem que o dirigia, o homem que tinha sido caixeiro-viajante, o homem que consertava máquinas de escrever, o homem que ensinava latim, o homem que tirava fotografias com a máquina lambe-lambe, o homem que fora motorneiro, o homem que tocava tuba na banda, o homem que andava de pernas de pau, o homem do realejo, o homem que badalava os sinos da igreja e o homem que fazia sonetos parnasianos (que finalmente encontrou o fecho de ouro para o seu último poema).
Li por aí que twitter foi considerada a palavra do ano, a mais falada, escrita e procurada.
Creio que o vocábulo ainda não se acha dicionarizado no Brasil, mas pelo que sei na língua inglesa deriva ou se trata de um verbo com significado aproximado de falar rapidamente, com nervosa agitação e excitamento.
Reflete, pois, com precisão não apenas a rede de microblogs que se tornou uma febre mundial, mas o próprio modo de nos relacionarmos nestes tempos de aflitiva urgência, em que todos querem estar em permanente vigília, vigiando e seguindo todos, sendo vigiado e seguido por todos.
Tudo começou com o celular, que já transcendeu a si mesmo e se tornou muitas outras coisas, e a partir do qual vamos nos atochando novas e sofisticadas coleiras eletrônicas, com as quais somos encontrados a qualquer hora e em qualquer parte.
Há um generalizado temor de se ficar só ou incomunicável. “Quem não se comunica se trumbica”, já proclamava o profeta e filósofo contemporâneo Chacrinha.
Mas se todos se comunicam sem cessar, se todos falam uns com os outros o tempo todo, quem é que escuta?
Mais grave ainda. Quando é que nos ouvimos a nós mesmos?
Reivindico o direito de estar só.
Meu celular, de um modelo antigo e comum, passa a maior parte do tempo desligado, e muitos reclamam disso, como se o aparelho existisse para servir a eles e não a mim.
Não tenho twitter (não sou presunçoso para achar que alguém possa ter interesse pelo que eu esteja fazendo ou pensando a cada instante), perfil no facebook ou no orkut. Não faço parte de nenhuma comunidade, a não ser da humana, assim mesmo porque não tive outra opção.
Talvez este blog já seja uma demasia, e como bem dizia o Padre Antonio Vieira, se não basta o que seja, baste o que sobeja.
Para o Bentinho, que foi ao encontro do Cartola, Nelson Cavaquinho, Pixiguinha e outros irmãos de samba e de fé.
Os dois são negros e músicos.
Ambos viveram no Rio, na velha boemia, ou na orgia, como se dizia então.
Os dois tiveram muitas mulheres, fizeram muitos sambas, foram respeitados como bambas e, pouco a pouco, caíram no esquecimento.
Ambos passaram a lavar carro, para sobreviver.
Um deles, certo dia, foi reconhecido numa rua de Ipanema pelo saudoso Sérgio Porto, o “Stanislaw Ponte Preta”.
Recuperou-se.
Tornou-se mais famoso do que antes.
Fez muito, e merecido, sucesso.
Foi reconhecido como mestre, e morreu em plena glória.
Suas músicas sempre vão falar por ele, nem será preciso que se queixe às rosas.
O outro, menos feliz, foi descoberto por mim. Na verdade, ele é que me descobriu, num dia em que apareceu no meu escritório e me pegou a martelar o computador, ouvindo música. Tinha ido até lá para me oferecer seus serviços de exímio lavador e lustrador de carro.
Voltou outras vezes, estendeu a conversa, comentou sobre as músicas que eu ouvia, e foi se revelando (e me revelando) a mim.
Tem voltado sempre. Acha que sou do ramo: “Quem nasceu no Bexiga, conhece!”.
Quer fazer música em parceria comigo.
Quer formar um grupo musical comigo.
Quer que eu cante, com minha rouca, e pouca, voz.
Quer me presentear com um dos seus instrumentos, que quase já não pode tocar por causa do enfisema avançado.
Quer formar uma escola de samba, com a minha ajuda, no bairro distante em que mora.
Quer ir a São Paulo ou ao Rio comigo, para me levar às rodas de samba e me apresentar a seus velhos amigos.
Ele é o meu duplo.
PS Alguns já terão lido este post, publicado bem no início do blog. Resolvi tirá-lo lá de trás e trazê-lo para cá em homenagem ao Bentinho, meu duplo, que acaba de partir. Quando o escrevi, imprimi e entreguei a cópia ao Bentinho, que andava com ela no bolso, todo orgulhoso. Da última vez em que nos vimos, há cerca de um mês, ele me mostrou a folha, já amarelecida e desgastada e me pediu outra. Tinha acabado de sair do hospital, depois de uma grave crise pulmonar e cardíaca que o deixou em coma. Parecia recuperado e do mesmo jeito de sempre. Insistiu mais uma vez em me dar um violão de doze cordas que lhe pertencia, mas de novo não aceitei, dizendo-lhe que um violão como aquele é para ser apreciado e tocado por quem sabe, o que não é o meu caso. Diante da sua insistência, acabei concordando em ficar com um pandeiro, desde que ele autografasse o couro. Ele foi embora, contentíssimo, prometendo que voltaria outro dia com o pandeiro, assinado. Nunca mais o vi. Avisaram-me agora que ele morreu. Fico sem o pandeiro, mas a sua lembrança permanecerá comigo. Enquanto alguém for lembrado, vive.
Swiss made, nas Pílulas.