Posts from março, 2010

Madeira de lei

 

 

 

                        Já me disseram que este blog está se tornando um obituário, tanto que escrevo de pessoas que se foram.

                        Mas que culpa posso ter se este ano de 2010 tem sido especialmente cruel, com mortes sucessivas de figuras especialíssimas para mim? Como Cazuza, sinto-me  a perder os meus heróis de overdose de viver, que é mais inebriante e fatal das drogas.

                        Cheguei a me conter e deixei de registrar as mortes do grande sambista Walter Alfaiate e do maravilhoso Johnny Alf (no que fui injusto).

                        Mas ontem foi a vez de Armando Nogueira, e não posso manter o silêncio obsequioso.

                        Lá se vai um dos últimos representantes de uma geração de jornalistas extraordinários, cultos e cultores do texto, com uma visão romântica e épica do esporte, especialmente do futebol.

                        A alguns a idade faz amargos, ranzinzas, intolerantes, professorais. A outros, adoça, torna bem-humorados, compreensivos e incansáveis aprendizes.

                        A Armando o envelhecer só fez bem, aprimorando e lapidando seus talentos e suas qualidades pessoais.

                        Que delícia ler o que escrevia, ouvir seus comentários e suas histórias.

                        Contava, por exemplo, que costuma assistir aos jogos no Maracanã ao lado de Nelson Rodrigues, que enxergava mal e tinha dificuldade de ver o que se passava no distante gramado, daí lhe indagar a todo instante:

                        — Armando, o que nós estamos achando do jogo?

                        E depois, na famosa mesa-redonda de que participavam, Nelson pontificava acima de todos, comentando a seu modo o desenrolar da partida, os lances polêmicos, a ponto de cunhar a famosa frase, quando confrontado com o videoteipe:

                        — O videoteipe é burro!

                        Já com certa idade Armando quis aprender a jogar tênis e se tornou (segundo dizem) um ótimo tenista. Aos sessenta, resolveu tocar gaita e (isso eu vi) também conseguiu se transformar num grande gaitista, tocando com muita bossa e suingue, com uma levada jazzística.

                        Foi o criador e diretor do Jornal Nacional, que estreou em plena Ditadura Militar, e na afoiteza da minha juventude cheguei a antipatizar com ele na época, responsabilizando-o pelo alinhamento do jornal e da Globo com os milicos. Quanta tolice minha! O que poderia ele fazer diante da censura e do autoritarismo de então, e da sempre dócil e interesseira subserviência de Roberto Marinho?

                        Muito pior está agora o Jornal Nacional, em tempos de plena liberdade e democracia, tendo como editor o sonso, bajulador e despreparado Willian Bonner.

                        “Armando”, segundo ensina o Houaiss, é um alimento em forma de mingau que se destina a dar apetite e força aos cavalos debilitados. “Nogueira”, todos sabemos, é uma árvore com madeira de ótima qualidade, cujas folhas contêm um óleo aromático, e as sementes são comestíveis.

                        Numa época de tantos descerebrados sob as luzes da ribalta, é uma pena e amarga ironia que um homem como Armando Nogueira morra vitimado por um câncer no seu cérebro privilegiado, que tanto nos iluminou com frases lapidares como estas:

 

“Pelé é tão perfeito que se não tivesse nascido gente, teria nascido bola.”

“Para Mané Garrincha, o espaço de um pequeno guardanapo era um enorme latifúndio.”

“A tabelinha de Pelé e Tostão confirma a existência de Deus.”

“No futebol, matar a bola é um ato de amor. Se a bola não quica, mau-caráter indica.”

“Anúncio: troco dois pés em bom estado de conservação por um par de asas bem voadas.”

“Heróis são reféns da glória. Vivem sufocados pela tirania da alta performance.”

“Gol de letra é injúria; gol contra é incesto; gol de bico é estupro.”

“Tu, em campo, parecias tantos, e no entanto, que encanto! Eras um só, Nílton Santos.”  (esta, com a licença do Rockmann, que já a havia citado no seu blog).

 

 

 

 

 

Coração de pedra

 

 

 

 

                        Menino, era uma doce criança.

                        Todos na família não se cansavam de lhe exaltar a tranqulidade, obediência, o amor pelos irmãos, o respeito aos mais velhos, a solicitude em fazer o que lhe pediam.

                        Adorava todos os animais. Além do seu mais fiel amigo, o cachorro da família, que claramente o havia escolhido como dono e o acompanhava por toda parte, alimentava os gatinhos de rua, nunca deixava faltar água açucarada para os beija-flores, frequentadores assíduos do jardim da casa.

                        Certa vez encontrou caído no chão, ainda vivo, um filhote de passarinho. Subiu na árvore e procurou até encontrar o ninho e o recolocar nele. Nos dias seguintes, continuou a subir na árvore para se certificar de que o filhote continuava lá, e bem.

                        Acompanhava o pai nas pescarias, mas tinha pena dos peixes e disfarçava, fazendo outras coisas, caminhando pelo rancho, fingindo brincar, para não pescá-los.

                        Na escola, além do ótimo desempenho, era adorado pelos professores e colegas. Nunca brigou com ninguém. Ao contrário, era sempre o pacificador quando dois outros meninos se desafiavam e estavam prestes a partir para a briga.

                        Se ninguém queria ir para o gol, ele ia, apesar de ser um dos melhores na linha.

                        Quando cresceu, não se modificou. Tornou-se advogado e atendia de graça todos que não podiam pagá-lo. Sorte que o pai havia sido um comerciante próspero e constituído um sólido patrimônio, deixado aos filhos como herança.

                        Mantinha a loja de armarinhos, roupas e sapatos modestos, com que o pai havia iniciado a vida no centro antigo da cidade, por razões sentimentais, já que os rendimentos eram cada vez menores, com a concorrência dos grandes magazines, supermercados e shoppings.

                        Colaborava com todas as instituições filantrópicas da cidade, foi durante muitos anos provedor da Santa Casa, assumiu a presidência do time de futebol, que se achava em crise e ninguém queria dirigir, recuperou as finanças e o trouxe de volta para à primeira divisão, da qual tinha sido rebaixado.

                        Queriam-no prefeito, mas ele jamais aceitou se candidatar.

                        Avançado nos sessenta, começou a sentir alguns desconfortos, fraqueza, um pouco de falta de ar, e procurou o médico, seu compadre, temendo que estivesse sofrendo do coração, como o pai.

                        Passou por uma série de exames e nada de grave foi constatado. Apenas uma parasitose e anemia, que se agravaram com a vida corrida, muito trabalho e preocupação, má alimentação.

                        — E o coração Tunico?, perguntou ao médico.

                        — Você tem um coração de pedra! Não precisa se preocupar, pilheriou o amigo, que o aconselhou a diminuir as atividades e descansar mais.

                        Foi se acostumando e tomando gosto pela vida mais sossegada, permanecendo cada vez mais tempo em casa, saboreando a companhia da mulher, dos filhos e netos, lendo, ouvindo música, divertindo-se ao cuidar do jardim

                        Ninguém sabe como a boataria começou, mas foi crescendo de modo incontrolável.

                        Juravam perante a cruz que ele era um caso raríssimo, jamais visto e inexplicável para a Medicina, alguma coisa no coração.

                        — Ele tem um coração de pedra, e parece que está ficando cada vez mais duro. Podem perguntar ao doutor.

                        O compadre médico, grande gozador, confirmou o diagnóstico, e pensando que o ajudava disse para que o deixassem em paz, pois já tinha feito muito por todos e pela cidade e agora precisava descansar.

                        — Tudo mentira! Sabem aquele prêmio milionário da loteria, que ninguém sabe quem ganhou? Pois foi ele! E agora vem com essa para não ajudar os outros. O coração é de pedra sim, mas de ruindade!

                        Ele e a família passaram a ser hostilizados e malquistos. Num fim de semana, alguns moleques drogados invadiram a chácara em que a família costumava passar o fim de semana reunida, exigiram dinheiro, ameaçaram, espancaram, praticaram atrocidades e por fim queriam levar a neta mais nova, até que ele lhes pagasse o resgate exigido.

                        Isso ele não podia permitir, e depois de perceber que eram inúteis todos os apelos e promessas que fizera, investiu descontrolado contra aquele que tomara a criança nos braços para levá-la embora.

                        O tiro o acertou no peito e lhe transfixou o coração de pedra, do qual jorrou sangue abundante.

                        Poucos foram ao enterro.

                        Algum tempo depois, a família resolveu deixar a cidade e se mudou ninguém sabe para onde.

                        Dizem até hoje que na Santa Casa existe um vidro, em que se acha conservado o coração de pedra até que a ciência possa explicá-lo.

 

 

 

                        A sociedade de espetáculo e o julgamento Nardoni, nas Pílulas.

 

No mundo dos brothers e dos manos

 

 

 

Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas, no que respeita ao universo, ainda não adquiri a certeza absoluta. (Albert Einstein)

 

 

 

                        Ela se bacharelou, com louvor, numa das melhores faculdades do país. O seu trabalho de conclusão do curso provocou tanto interesse que a banca, com fartos elogios e pouquíssimos reparos, ficou a discuti-lo muito além do tempo previsto, até que um bedel interviesse dizendo que precisava apagar as luzes do auditório e fechá-lo.

                        Antes mesmo de se graduar já trabalhava como freelance de uma grande empresa, o que a levou se dedicar ao jornalismo automotivo, enfrentando e superando as barreiras e os preconceitos de um ambiente preponderantemente masculino.

                        Fez pós-graduação e continua na mesma empresa, agora como diretora de três mídias, lançou e é a editora de um jornal sobre veículos, cobriu diversos salões internacionais, testou carros cultuados, como uma Ferrari em plena pista de Maranello.

                        Depois de sofrer um assalto relâmpago e selvagem na pracinha onde costumava brincar e andar de bicicleta na infância, próxima da casa dos pais, no interior, suplantou a traumática experiência fazendo o roteiro, produzindo e  dirigindo um curta-metragem, De Assalto, que já foi selecionado para participar de festivais.

                        É contratada com frequência para escrever roteiros, elaborar projetos e dirigir filmes publicitários. No próximo dia 24 de abril, com o patrocínio do Sesc, vai estrear em São Paulo um monólogo que roteirizou, sobre os universos feminino e masculino, a partir de textos seus e de escritores consagrados, que lhe deram autorização e se entusiasmaram com o projeto, para ser interpretado por uma grande amiga e atriz.

                        Acaba de comprar o seu sonhado apartamento em Higienópolis (financiado) e está cheia de planos para reformá-lo.

                        É uma pessoa encantadora, adorada por uma multidão de amigos e por todos que com ela convivem. Incapaz de maltratar alguém, se dispõe a qualquer sacrifício para ajudar e apoiar os outros. Não sabe dizer “não” e às vezes sofre por isso, mas quase nunca deixa de manter um sorriso luminoso no rosto.

                        Essa jornalista fez uma matéria sobre um automóvel na pista de Interlagos, e o editor do UOL, que abriga o site da empresa em que ela trabalha, provavelmente porque achou interessante, colocou o vídeo em destaque.

                        Ela foi vilependiada por diversos internautas, não pela qualidade do seu trabalho, mas pela sua aparência e por ser mulher. Eis apenas uma amostra dos inúmeros “comentários” (com sua “redação” mantida).

 

                        “pelo amor de deus queimou o filme com essa gorda no volante, ate parece uma comedia. sem mais comentarios para nao estresar”.

                        “Nem vi nada nem o motor nem sistema nenhum do carro manda essa reporte vim aqui em casa que eu mostro pra ela como se pega no cambio”.

                        “Fala sério.. A reporpeta (reporter porpeta) conseguiu acabar com a emoção de acelerar um R8 !!!! Parabéns, hein!! A matéria ficaria ótima para um bólido do tipo Ford ku ou Fiat Pálido, essas porcarias que brasileiro adora e pode comprar a prazo”.

                        “O carro é Ótimo uma belo esportivo de 700 mil reais, o mais interessante foi como vcs colocarão uma Baleia para dirigir esse audi R8 é adestrada essa Baleia?”

                        “essa gorda deve ter feito uma coisa muito feia para estar ai”.

 

                        O nível de quem escreveu(?) se evidencia tanto pelo conteúdo(?), quanto pelo domínio(?) da língua portuguesa.

                        São analfabetos funcionais, com cérebros atrofiados, sociopatas, e nem mereceriam ser considerados, se não representassem o nosso atual estágio civilizatório, fielmente retratado na internet, que ao contrário do que se pensa e diz não é um mundo virtual ou de avatares, mas real, com 95% de estupidez e 5% (se tanto) de vida inteligente.

                        É fácil deduzir o que aconteceu: o primeiro imbecil, metido a engraçadinho, postou seu comentário insultuoso e a matilha foi atrás, cada qual se esmerando na boçalidade. E o pior de tudo é que não houve uma única voz que reprovasse as ofensas gratuitas.

                        Não é muito diferente do que se vê nos programas denominados de reality show, dos quais o campeão de audiência Big Brother, já na sua décima edição, é o exemplo maior. Alguns idiotas gananciosos e exibicionistas passam meses confinados, sem fazer nada de útil — enchendo a cara, esfregando-se, dançando, tramando golpes uns contra os outros e se submetendo a “provas” que ferem a dignidade humana — enquanto são acompanhados ao vivo pelo restante da choldra (que faria tudo para estar no lugar deles).

                        Costumam permanecer até o final da competição  — “eleitos” pelo público —  os que demonstram mais esperteza e menos caráter (se é possível uma graduação), as gostosonas e os gostosões, os extravagantes, os que “aprontam” mais, pois que a “galera” gosta mesmo é de ver o circo pegar fogo. É esse tipo de gente que o apresentador Pedro Bial — que em passado remoto parecia provido de alguma inteligência — tem o desplante de chamar de “nossos heróis” (“nossos” quem, cara pálida?).

                        A jornalista Carolina Nogueira, que mora há dois anos em Paris, de onde mantém o blog Le Croissant, relatou dias atrás no Blog do Noblat que a France 2 levou ao ar um documentário chocante sobre um falso jogo de TV produzido com o objetivo de desmascarar esse tipo de programa.

                        Foram selecionados 80 participantes reais, que se imaginavam em um programa de auditório e, para ganhar o prêmio final, teriam de aplicar choques elétricos em outro participante, que se tratava de um ator (sem que os demais soubessem disso), instruído a gritar e a pedir para deixar o jogo, simulando dor e sofrimento com os supostos choques.

                        Nada menos do que 81% dos participantes aplicaram a voltagem máxima de 460 volts proposta pelo jogo, mais do que o dobro da potência da descarga elétrica de uma tomada doméstica e com grande probabilidade de causar a morte.

                        Os depoimentos colhidos posteriormente dos participantes são impressionantes: “Apliquei o procedimento”; “Simplesmente obedeci”; “Ele podia gritar, não estou nem aí: vim aqui para ganhar”; “Tem a pressão do público, das câmeras, da apresentadora, é difícil dizer não”.

                        Conclui Carolina Nogueira:

                        “Sociólogos veem na experiência um efeito do que Le Bon apontou como o comportamento de massa — aquela velha história de fazermos em grupo o que não faríamos sozinhos. A ideia é que, na televisão, ainda que o indivíduo esteja sozinho na cabine de jogo, tem-se a impressão de estar “acompanhado” por todos os telespectadores.”

                        “Para os críticos radicais da televisão (como já contei aqui antes, isso é o que não falta na França), a lógica também contamina o telespectador comum, que “aceita” comportamentos amorais recebidos pela telinha graças à sensação de cumplicidade de se saber parte de um enorme grupo.”

                        Tais massas informes e despersonalizadas, sem mínimo senso crítico e moral, facilmente manipuláveis, foram caudatárias das grandes tragédias da humanidade, como o nazismo, o holocausto e diversos outros genocídios e massacres que continuam acontecendo.

                        Se essa é a nova sociedade que estamos a construir, o nosso admirável mundo mundo, parem o mundo que eu quero descer!

 

 

P.S.                 A jornalista atacada pelos “comentaristas” do UOL é minha filha, mas isso é de menor importância. Ela já não precisa de mim para defendê-la, e não é o que pretendo fazer aqui, mas sim propor uma reflexão sobre os caminhos que estamos trilhando. Ela própria se encarregou de manifestar sua indignação  no seu blog, Projeto Grifos, e ao editor do UOL.  Ela é da área e do seu tempo, e acha que é comum e aceitável que, para garantir a liberdade de expressão dos internautas, os sites não exerçam a moderação ou filtragem nos comentários postados. Crê que é suficiente assegurar, a quem se sentir ofendido, o direito de se manifestar, o que lhe foi concedido pelo UOL. Nisso não concordo com ela. Mas não sou da área e venho de outros tempos, e talvez este já não seja mesmo o meu tempo, e esteja na hora de sair da área.

 

 

 

Os politicamente chatos ou chatamente corretos

 

 

 

                        A palavra “chato”, no sentido aqui tomado, é politicamente incorreta ou pejorativa, porquanto remonta ao inseto anopluro (Phthirus pubis) que geralmente infesta a região pubiana do homem (no significado de  ser humano, o que também é incorreto), produzindo prurido e grande desconforto.

                        Já manifestei neste blog inúmeras vezes a minha quase obsessão pelas palavras, pela força e o poder que encerram, dando sentido ao que somos e ao mundo em que vivemos, sendo capazes até mesmo de criar ou alterar realidades.

                        Como bem anota Jorge Larrosa Bondía, colocando nos seus devidos termos a velha, repetida, porém mal compreendida definição de Aristóteles, “O homem é um vivente com palavra. E isto não significa que o homem tenha a palavra ou a linguagem como uma coisa, ou uma faculdade, ou uma ferramenta, mas que o homem é palavra, que o homem é enquanto palavra, que todo humano tem a ver com a palavra, se dá em palavra, está tecido de palavras, que o modo de viver próprio desse vivente, que é o homem, se dá na palavra e como palavra.”

                        Tenho, pois, sobradas razões  para reconhecer a importância de nomear pessoas e coisas de modo a não as qualificar ou desqualificá-las pela origem, pelo que têm ou carecem, sobrepondo essa condição acessória ao que lhes é essencial.

                        Mas tudo o que é levado ao extremo, à radicalização, ao paroxismo torna-se uma afecção em vez de solução.

                        É nesse estágio em que estamos, quando se modifica a letra da cantiga infantil “Atirei o pau no gato” porque é politicamente incorreto maltratar os animais, quando não se admite anedotas tidas como discriminatórias (não existe humor que seja politicamente correto, e é na sua incorreção que critica e educa), quando é terminantemente proibido o uso de expressões populares consagradas, por ferirem suscetibilidades exacerbadas, quando se cunham eufemismos tolos e ridículos como “melhor idade” para se referir aos velhos (oops… idosos), ou “afrodescendentes” para designar os negros (aliás, somos todos afrodescendentes já que se acha demonstrado que os primeiros homens, digo, seres humanos, ou talvez terráqueos, surgiram no continente africano).

                        Tenho grande dificuldade em conviver com um casal de conhecidos dada a absoluta intolerância da mulher — ou parceira, ou companheira ou representante do sexo feminino — com alguns dos meus chistes (propositais) ou até mesmo descuidos vocabulares durante nossas conversas. Quando estamos reunidos na companhia de outros mais, sinto-me pisando em ovos (será que posso dizer isso ou se trata de crueldade com os pintainhos?)

                        Tal maldição (quem sabe devesse dizer desdita ou infortúnio) prospera também de modo alarmante no futebol, retirando-lhe a natural espontaneidade, o caráter lúdico e travesso que é toda a sua graça. Tornou-se politicamente incorreto gozar o adversário, aplicar dribles “humilhantes”, pedalar, festejar gols, dar “paradinha” ao bater pênalti!

                        Isso apenas beneficia os brucutus e cabeças de bagre, que agora se empenham numa cruzada contra as diabruras e molecagens dos “meninos da Vila”, que vieram tirar o nosso futebol do marasmo, da mesmice e da falta de talento em que vivíamos.

                        É lamentável saber que jogadores e dirigentes do Palmeiras e do Corinthians, pondo de lado sua  proverbial rivalidade, uniram-se nessa santa e purificadora inquisição. Declarações recentes do  trôpego presidente corintiano, do técnico Mano Menezes (que pensava fosse um sujeito ponderado, mas que a bem de ver sempre foi adepto do futebol força, gauchesco), do botinudo Chicão e do amarelento e  choramingueiro  Diego Souza são características daqueles que  se locupletam do esporte bretão, mas odeiam o futebol-arte, talvez pela incapacidade de praticá-lo.

                        Domingo passado, o meu querido Santos perdeu em plena Vila Belmiro para o Palmeiras, cujos jogadores festejaram os gols rebolando e gozando os santistas. Como apreciador do futebol (e não um torcedor estupidificado), não me senti nem um pouco ofendido. Muito pelo contrário, achei tudo muito divertido, e nem me doeu a derrota, numa grande partida, com jogadas sensacionais, viradas e um placar final de 4 a 3, como nos velhos tempos!

                        No meio da semana, os 10 a zero aplicados pelos “meninos da Vila” no jogo da Copa do Brasil foram um verdadeiro deleite para quem ama verdadeiramente o futebol.

                        Pobre Garrincha,  que era de  Pau Grande,  com seu futebol chapliniano e sua fileira de  joões, se jogasse atualmente com essa mentalidade reinante.

 

 

 

                        Nas Pílulas, o que achei depois de assistir ao “O Segredo dos Seus Olhos”.

Vida em suspensão

 

 

 

 

“Tudo vai, tudo volta; eternamente gira a roda do ser.

Tudo morre, tudo refloresce, eternamente transcorre o ano do ser.

Tudo se desfaz, tudo é refeito;

eternamente fiel a si mesmo permanece o anel eternamente constrói-se a mesma casa do ser.

Tudo se separa, tudo volta a se encontrar; do ser.

Em cada instante começa o ser; em torno de todo o “aqui” rola a bola “acolá”.

O meio está em toda parte. Curvo é o caminho da eternidade.”

(Friedrich Nietzsche, Assim falou Zaratustra)

 

 

                        Não posso alegar surpresa, nem ignorância.

                        Ela se anunciava fazia tempo. Há muito tempo trazia ela comigo. Se o tempo é um continuum, com seu eterno retorno, e se passado, presente e futuro são apenas referências arbitrárias que estabelecemos para nos situarmos no mundo, ela sempre esteve e sempre estará comigo.

                        Apesar disso, e do tempo que tive de me aprontar, quando enfim ela chegou percebi que nenhum preparativo é possível, nenhuma disposição se cumpre, nenhuma experiência vale.

                        Talvez seja assim o encontro marcado com a morte, a indesejada das gentes, mesmo sendo a mais fiel companheira da gente.

                        Mas não é da morte que falo, e sim da vida, de uma explosão de vida, que, mesmo esperada e desejada, sobreveio-me num delicioso assombro, pondo-me a vida em suspensão e suspense.

                        E é tudo novo de novo. E é preciso recomeçar. E é preciso aprender tudo de novo.

                        Assim me sinto diante desses pequeninos olhos, nariz, boca, orelhas, braços e pernas, mãos e pés, contidos em menos de 3 quilos e de 50 centímetros, que súbito tenho diante de mim e tomo nos braços, nos quais quase desaparece (mas como me aquece!).

                        Converso ternamente com ela, dizendo-lhe do meu amor, das nossas travessuras e aventuras futuras. Ela fixa o olhar em mim e chega a franzir o cenho, tentando compreender minhas sandices.

                        Como tamanha pequeneza pode me preencher tanto?

                        Como tanta fragilidade pode ser tão forte e me fazer tão frágil?

                       Consta que em algumas tribos indígenas, após o parto, é o varão quem fica de resguardo.

                        Sábios índios! Como os compreendo agora, no meu resguardo de avô.

                        Recolhido nessa minha nova circunstância, cumpro maquinalmente minhas obrigações e compromissos de trabalho, sem conseguir me concentrar em nada mais que não ela. Até mesmo deste blog, que tem sido meu refrigério nos últimos tempos, uma ponte com os navegantes que aqui aportam, me fiz distante. E também das minhas estantes, cujos livros apenas remexo, para pôr de lado num instante.

                        Nada mais justo do que as licenças maternidade e paternidade, mas urge institucionalizar uma licença para os avós perplexos com seus sentimentos complexos. Aliás, se os avós são pais em dobro, sua licença deve ser dobrada.

                        Fica aqui lançada, pois, a propositura e conclamo a adesão de meus pares e ímpares para alcançarmos o quantum necessário para a apresentação de um projeto de lei de iniciativa popular para a criação da licença avoenga, de no mínimo doze meses.

                        Se os avós, como dizem, são pais com açúcar, corro então sério risco de me tornar diabético.

                        Tudo por obra e graça da doce Manuela.

                        De Nietzsche a Drummond:

 

                        “Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?

                        Teus ombros suportam o mundo

                        E ele não pesa mais que a mão de uma criança.”

 

 

 

 

Bem-vinda Manuela

 

 

                                   Nasceu ontem a Manuela,

                                   a óbvia rima é bela

                                   quisera dizer mais dela

                                   súbito me engasga a goela

                                   tanto amor que se revela

                                   neste avô que se desvela.

 

 

 

Uma vida entre livros

 

 

 

                        Nelson Rodrigues, que entre tantos talentos era um extraordinário fraseador, dizia que toda unanimidade é burra, no que estava certo.

                        Toda unanimidade é burra e — ouso acrescentar — paralítica, porque induz ao imobilismo e à falta de coragem para pensar diferente, inibe o debate, a controvérsia, o confronto sempre enriquecedor e estimulante de ideias e concepções. Não é, pois, sem razão que todos os tiranos almejam ou pretendem impor a unanimidade.

                        Mas em alguns poucos casos, a unanimidade pode ser sábia e indiscutível.

                        Não há melhor exemplo disso do que o reconhecimento que se presta a José Mindlin, que nos deixou, deixando-nos os seus livros que compõem a maior biblioteca privada do Brasil, formada proficiente e pacientemente por ele ao longo de toda a vida.

                        Antes de ir, já havia doado á USP parte do seu acervo, denominada de biblioteca Brasiliana, com mais de  40 mil volumes. Mas não teve tempo de conhecer o prédio construído especialmente para abrigar sua Brasiliana, que ainda não foi inaugurado.

                        Aliás, e isso até parece brincadeira, Mindlin teve que insistir durante muitos anos até que a USP por fim aceitasse a doação!

                        Esse, porém, é apenas um dos traços do seu caráter, da sua generosidade e da conduta exemplar e ética que sempre manteve nas mais diversas áreas em que atuou. Num país tão carente de homens de tal envergadura, tornou-se um ícone a ser reverenciado e seguido por todos os brasileiros, notadamente pela nossa sórdida e tacanha elite empresarial (claro que com algumas poucas exceções, como ele próprio).

                        Não tive o prazer e a honra de conhecê-lo pessoalmente, mas tínhamos amigos comuns, os livros, sobre os quais, como grande mestre que era, ele me ensinou coisas preciosas, mesmo à distância.

                        Há anos, angustiado com o excesso de trabalho e de compromissos que não me deixavam tempo livre para ler tudo o que gostaria (problema que continuo a enfrentar), assisti a uma entrevista dele em que revelava um dos seus segredinhos: sempre levava consigo um livro que estava lendo ou lhe interessava e aproveitava todas as ocasiões, todos os pequenos e furtivos intervalos ao longo do dia para mergulhar na leitura.

                        Passei a fazer o mesmo e verifiquei que não apenas era possível adiantar a leitura, como se tratava de um ótimo jeito de vencer o tédio nas salas de espera dos consultórios (com suas revistas do século passado), nas rodoviárias, nos aeroportos, no barbeiro (hoje, vou a uma cabeleireira), até mesmo enquanto aguardava a saída de minhas filhas da escola.

                        Nem todos os livros se prestam a esse tipo de leitura, mas há muitos outros que sim. Aliás, aos poucos vamos desenvolvendo uma grande capacidade de concentração que nos permite ler até mesmo os livros mais exigentes.

                        O mundo dos livros é mesmo fascinante e traga definitivamente para suas entranhas aqueles que nele se aventuram. A leitura, que já foi chamada de vício impune, é um vírus que, uma vez inoculado, nunca mais nos deixa, como também dizia Mindlin, que contava histórias extraordinárias, dignas das de Edgar Allan Poe, a respeito de suas garimpagens, do comportamento quase humano, ou sobre-humano, dos livros, que se oferecem, negaceiam, rebelam-se, têm ciúme, fogem e retornam, vingam-se ou recompensam, são misericordiosos ou sinistros. Muitas dessas histórias estão no seu livro Uma Vida Entre Livros.

                        Uma delas refere-se àquela que ele próprio considerava sua mais árdua e demorada busca, a de um exemplar da primeira edição de O Guarani, de José de Alencar. Não conseguiu adquiri-lo quando foi posto à venda no Brasil e o livro acabou indo para o exterior. Muitos anos depois, soube que o exemplar estava novamente à venda e conseguiu finalmente comprá-lo numa viagem. Ao regressar, trouxe o livro cuidadosamente acondicionado numa pasta, que manteve no colo durante o tempo todo. Todavia, no desembarque, sem que percebesse, o livro escorregou-lhe da pasta. Quando chegou em casa disse à mulher Guita, com quem compartilhava o amor pelos livros:

                        — Sabe que livro comprei? A primeira edição de O Guarani!

                        — Mas que ótimo, respondeu ela. Há tanto tempo você procurava…

                        — Pois é, mas já perdi!

                        Alguns dias depois, porém, o livro foi recuperado, voltou para os seus braços e passou a ser uma das preciosidades da biblioteca Brasiliana.

                        Ele jamais conseguiu saber ao certo como o livro saiu ou caiu da pasta para lhe pregar uma derradeira peça, como a mulher coquete que se nega, foge, adia, dissimula e exaspera o nosso desejo ao máximo, antes de finalmente se entregar ao nosso amor.

                        Indagado como se sentia ao se tornar um imortal da Academia Brasileira de Letras, respondeu:

                        — Trocaria a imortalidade por mais uns dez anos de vida.

                        — E o que o senhor faria, com esses dez anos a mais?

                        ― Continuaria a ler e a garimpar livros.

                        Jorge Luis Borges imaginava o paraíso como uma imensa biblioteca. Se ele estiver certo, José Mindlin se sentirá em casa.

 

 

 

O segredo dos seus olhos

 

 

 

 

                        O cinema argentino tem produzido excelentes filmes, a maioria de baixo custo,  com roteiros muito bem elaborados, histórias sensíveis e tocantes, reflexões sobre o seu passado recente, os tempos da ditadura e as crises econômicas, ótimos diretores e atores.

                        Talvez fosse esse o caminho a ser seguido pelo cinema brasileiro, que, com algumas exceções, tem optado por filmes grandiloquentes ou apologéticos, como Dois filhos de Francisco, Lula, o filho do Brasil, Chico Xavier (que está vindo por aí) ou besteiróis com artistas globais, visando acima de tudo ao sucesso comercial.

                        Segundo tenho lido, O segredo dos seus olhos (El Secreto de sus Ojos), que concorre ao Oscar de melhor filme estrangeiro, dirigido por Juan José Campanella, que também elaborou o roteiro juntamente com o autor do romance no qual foi inspirado, faz uma engenhosa combinação de gêneros — um filme noir permeado com o drama de um romance frustrado —, narrando em dois tempos uma história de amor, obsessão, sede de vingança, que viaja do presente ao passado, tocando em feridas da história argentina como tema de fundo, mas sem jamais se afastar do veio principal.

                        As sinopses apresentam o protagonista Benjamín Espósito, vivido pelo grande ator Ricardo Darín (que já havia trabalhado antes com Campanella em O Filho da Noiva e Clube da Lua), como um antigo oficial de justiça no Tribunal Penal argentino (no sistema judiciário do Brasil ele seria um escrivão ou secretário, já que oficial de justiça tem outras atribuições aqui).

                        Após a aposentadoria, com todo o tempo livre, ele pode se dedicar a realizar o sonho antigo de se tornar escritor, e começa a escrever um livro baseado num caso em que trabalhou na década de 70, investigando um brutal assassinato. Ao fazer isso, relembrando dos fatos da época, Benjamín percebe alguns equívocos que cometeu e como aquele momento teve uma forte influência no caminho que ele seguiu para o resto de sua vida. Retoma, também, o contato com seu grande amor irrealizado, a juíza com quem trabalhava.

                        O diretor Juan José Campanella esteve nos últimos anos nos EUA, atuando como assistente de direção em diversas séries de televisão, entre as quais a cultuada House.

                        Uma longa sequência já se tornou famosa e tem deixado os críticos e amantes do cinema tão entusiasmados quanto estupefatos: a tomada começa de muito longe e do alto, vai se aproximando pouco a pouco, revelando uma multidão em delírio e depois que se trata de torcedores nas arquibancadas de um campo de futebol (creio que seja La Bombonera), em pleno desenrolar de uma partida, até se fixar em Benjamín que está ali com seu companheiro em perseguição a um suspeito. Tudo sem nenhum corte. Ninguém sabe como Campanella fez.

                        Soube de tudo isso por matérias de revistas, jornais e canais de TV (em que vi a sequência acima), porquanto embora o filme já tenha estreado no circuito brasileiro, ainda não chegou a Ribeirão Preto, que continua muito provinciana nesse aspecto, exibindo os novos filmes com muito atraso, quando chega a fazê-lo.

                        Acabei encomendando o romance de Eduardo Alfredo Sacheri, La Pregunta de Sus Ojos, em que o filme se baseou, na sua edição argentina, pois não encontrei edição brasileira. O pior é que, segundo a Livraria Cultura, o recebimento do livro pode demorar mais de trinta dias, por ser importado.

                        Assista ao trailer oficial do filme aqui, em que infelizmente não há a extraordinária sequência mencionada.