Posts from março, 2010

No mundo dos brothers e dos manos

 

 

 

Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas, no que respeita ao universo, ainda não adquiri a certeza absoluta. (Albert Einstein)

 

 

 

                        Ela se bacharelou, com louvor, numa das melhores faculdades do país. O seu trabalho de conclusão do curso provocou tanto interesse que a banca, com fartos elogios e pouquíssimos reparos, ficou a discuti-lo muito além do tempo previsto, até que um bedel interviesse dizendo que precisava apagar as luzes do auditório e fechá-lo.

                        Antes mesmo de se graduar já trabalhava como freelance de uma grande empresa, o que a levou se dedicar ao jornalismo automotivo, enfrentando e superando as barreiras e os preconceitos de um ambiente preponderantemente masculino.

                        Fez pós-graduação e continua na mesma empresa, agora como diretora de três mídias, lançou e é a editora de um jornal sobre veículos, cobriu diversos salões internacionais, testou carros cultuados, como uma Ferrari em plena pista de Maranello.

                        Depois de sofrer um assalto relâmpago e selvagem na pracinha onde costumava brincar e andar de bicicleta na infância, próxima da casa dos pais, no interior, suplantou a traumática experiência fazendo o roteiro, produzindo e  dirigindo um curta-metragem, De Assalto, que já foi selecionado para participar de festivais.

                        É contratada com frequência para escrever roteiros, elaborar projetos e dirigir filmes publicitários. No próximo dia 24 de abril, com o patrocínio do Sesc, vai estrear em São Paulo um monólogo que roteirizou, sobre os universos feminino e masculino, a partir de textos seus e de escritores consagrados, que lhe deram autorização e se entusiasmaram com o projeto, para ser interpretado por uma grande amiga e atriz.

                        Acaba de comprar o seu sonhado apartamento em Higienópolis (financiado) e está cheia de planos para reformá-lo.

                        É uma pessoa encantadora, adorada por uma multidão de amigos e por todos que com ela convivem. Incapaz de maltratar alguém, se dispõe a qualquer sacrifício para ajudar e apoiar os outros. Não sabe dizer “não” e às vezes sofre por isso, mas quase nunca deixa de manter um sorriso luminoso no rosto.

                        Essa jornalista fez uma matéria sobre um automóvel na pista de Interlagos, e o editor do UOL, que abriga o site da empresa em que ela trabalha, provavelmente porque achou interessante, colocou o vídeo em destaque.

                        Ela foi vilependiada por diversos internautas, não pela qualidade do seu trabalho, mas pela sua aparência e por ser mulher. Eis apenas uma amostra dos inúmeros “comentários” (com sua “redação” mantida).

 

                        “pelo amor de deus queimou o filme com essa gorda no volante, ate parece uma comedia. sem mais comentarios para nao estresar”.

                        “Nem vi nada nem o motor nem sistema nenhum do carro manda essa reporte vim aqui em casa que eu mostro pra ela como se pega no cambio”.

                        “Fala sério.. A reporpeta (reporter porpeta) conseguiu acabar com a emoção de acelerar um R8 !!!! Parabéns, hein!! A matéria ficaria ótima para um bólido do tipo Ford ku ou Fiat Pálido, essas porcarias que brasileiro adora e pode comprar a prazo”.

                        “O carro é Ótimo uma belo esportivo de 700 mil reais, o mais interessante foi como vcs colocarão uma Baleia para dirigir esse audi R8 é adestrada essa Baleia?”

                        “essa gorda deve ter feito uma coisa muito feia para estar ai”.

 

                        O nível de quem escreveu(?) se evidencia tanto pelo conteúdo(?), quanto pelo domínio(?) da língua portuguesa.

                        São analfabetos funcionais, com cérebros atrofiados, sociopatas, e nem mereceriam ser considerados, se não representassem o nosso atual estágio civilizatório, fielmente retratado na internet, que ao contrário do que se pensa e diz não é um mundo virtual ou de avatares, mas real, com 95% de estupidez e 5% (se tanto) de vida inteligente.

                        É fácil deduzir o que aconteceu: o primeiro imbecil, metido a engraçadinho, postou seu comentário insultuoso e a matilha foi atrás, cada qual se esmerando na boçalidade. E o pior de tudo é que não houve uma única voz que reprovasse as ofensas gratuitas.

                        Não é muito diferente do que se vê nos programas denominados de reality show, dos quais o campeão de audiência Big Brother, já na sua décima edição, é o exemplo maior. Alguns idiotas gananciosos e exibicionistas passam meses confinados, sem fazer nada de útil — enchendo a cara, esfregando-se, dançando, tramando golpes uns contra os outros e se submetendo a “provas” que ferem a dignidade humana — enquanto são acompanhados ao vivo pelo restante da choldra (que faria tudo para estar no lugar deles).

                        Costumam permanecer até o final da competição  — “eleitos” pelo público —  os que demonstram mais esperteza e menos caráter (se é possível uma graduação), as gostosonas e os gostosões, os extravagantes, os que “aprontam” mais, pois que a “galera” gosta mesmo é de ver o circo pegar fogo. É esse tipo de gente que o apresentador Pedro Bial — que em passado remoto parecia provido de alguma inteligência — tem o desplante de chamar de “nossos heróis” (“nossos” quem, cara pálida?).

                        A jornalista Carolina Nogueira, que mora há dois anos em Paris, de onde mantém o blog Le Croissant, relatou dias atrás no Blog do Noblat que a France 2 levou ao ar um documentário chocante sobre um falso jogo de TV produzido com o objetivo de desmascarar esse tipo de programa.

                        Foram selecionados 80 participantes reais, que se imaginavam em um programa de auditório e, para ganhar o prêmio final, teriam de aplicar choques elétricos em outro participante, que se tratava de um ator (sem que os demais soubessem disso), instruído a gritar e a pedir para deixar o jogo, simulando dor e sofrimento com os supostos choques.

                        Nada menos do que 81% dos participantes aplicaram a voltagem máxima de 460 volts proposta pelo jogo, mais do que o dobro da potência da descarga elétrica de uma tomada doméstica e com grande probabilidade de causar a morte.

                        Os depoimentos colhidos posteriormente dos participantes são impressionantes: “Apliquei o procedimento”; “Simplesmente obedeci”; “Ele podia gritar, não estou nem aí: vim aqui para ganhar”; “Tem a pressão do público, das câmeras, da apresentadora, é difícil dizer não”.

                        Conclui Carolina Nogueira:

                        “Sociólogos veem na experiência um efeito do que Le Bon apontou como o comportamento de massa — aquela velha história de fazermos em grupo o que não faríamos sozinhos. A ideia é que, na televisão, ainda que o indivíduo esteja sozinho na cabine de jogo, tem-se a impressão de estar “acompanhado” por todos os telespectadores.”

                        “Para os críticos radicais da televisão (como já contei aqui antes, isso é o que não falta na França), a lógica também contamina o telespectador comum, que “aceita” comportamentos amorais recebidos pela telinha graças à sensação de cumplicidade de se saber parte de um enorme grupo.”

                        Tais massas informes e despersonalizadas, sem mínimo senso crítico e moral, facilmente manipuláveis, foram caudatárias das grandes tragédias da humanidade, como o nazismo, o holocausto e diversos outros genocídios e massacres que continuam acontecendo.

                        Se essa é a nova sociedade que estamos a construir, o nosso admirável mundo mundo, parem o mundo que eu quero descer!

 

 

P.S.                 A jornalista atacada pelos “comentaristas” do UOL é minha filha, mas isso é de menor importância. Ela já não precisa de mim para defendê-la, e não é o que pretendo fazer aqui, mas sim propor uma reflexão sobre os caminhos que estamos trilhando. Ela própria se encarregou de manifestar sua indignação  no seu blog, Projeto Grifos, e ao editor do UOL.  Ela é da área e do seu tempo, e acha que é comum e aceitável que, para garantir a liberdade de expressão dos internautas, os sites não exerçam a moderação ou filtragem nos comentários postados. Crê que é suficiente assegurar, a quem se sentir ofendido, o direito de se manifestar, o que lhe foi concedido pelo UOL. Nisso não concordo com ela. Mas não sou da área e venho de outros tempos, e talvez este já não seja mesmo o meu tempo, e esteja na hora de sair da área.