Menino, era uma doce criança.
Todos na família não se cansavam de lhe exaltar a tranqulidade, obediência, o amor pelos irmãos, o respeito aos mais velhos, a solicitude em fazer o que lhe pediam.
Adorava todos os animais. Além do seu mais fiel amigo, o cachorro da família, que claramente o havia escolhido como dono e o acompanhava por toda parte, alimentava os gatinhos de rua, nunca deixava faltar água açucarada para os beija-flores, frequentadores assíduos do jardim da casa.
Certa vez encontrou caído no chão, ainda vivo, um filhote de passarinho. Subiu na árvore e procurou até encontrar o ninho e o recolocar nele. Nos dias seguintes, continuou a subir na árvore para se certificar de que o filhote continuava lá, e bem.
Acompanhava o pai nas pescarias, mas tinha pena dos peixes e disfarçava, fazendo outras coisas, caminhando pelo rancho, fingindo brincar, para não pescá-los.
Na escola, além do ótimo desempenho, era adorado pelos professores e colegas. Nunca brigou com ninguém. Ao contrário, era sempre o pacificador quando dois outros meninos se desafiavam e estavam prestes a partir para a briga.
Se ninguém queria ir para o gol, ele ia, apesar de ser um dos melhores na linha.
Quando cresceu, não se modificou. Tornou-se advogado e atendia de graça todos que não podiam pagá-lo. Sorte que o pai havia sido um comerciante próspero e constituído um sólido patrimônio, deixado aos filhos como herança.
Mantinha a loja de armarinhos, roupas e sapatos modestos, com que o pai havia iniciado a vida no centro antigo da cidade, por razões sentimentais, já que os rendimentos eram cada vez menores, com a concorrência dos grandes magazines, supermercados e shoppings.
Colaborava com todas as instituições filantrópicas da cidade, foi durante muitos anos provedor da Santa Casa, assumiu a presidência do time de futebol, que se achava em crise e ninguém queria dirigir, recuperou as finanças e o trouxe de volta para à primeira divisão, da qual tinha sido rebaixado.
Queriam-no prefeito, mas ele jamais aceitou se candidatar.
Avançado nos sessenta, começou a sentir alguns desconfortos, fraqueza, um pouco de falta de ar, e procurou o médico, seu compadre, temendo que estivesse sofrendo do coração, como o pai.
Passou por uma série de exames e nada de grave foi constatado. Apenas uma parasitose e anemia, que se agravaram com a vida corrida, muito trabalho e preocupação, má alimentação.
— E o coração Tunico?, perguntou ao médico.
— Você tem um coração de pedra! Não precisa se preocupar, pilheriou o amigo, que o aconselhou a diminuir as atividades e descansar mais.
Foi se acostumando e tomando gosto pela vida mais sossegada, permanecendo cada vez mais tempo em casa, saboreando a companhia da mulher, dos filhos e netos, lendo, ouvindo música, divertindo-se ao cuidar do jardim
Ninguém sabe como a boataria começou, mas foi crescendo de modo incontrolável.
Juravam perante a cruz que ele era um caso raríssimo, jamais visto e inexplicável para a Medicina, alguma coisa no coração.
— Ele tem um coração de pedra, e parece que está ficando cada vez mais duro. Podem perguntar ao doutor.
O compadre médico, grande gozador, confirmou o diagnóstico, e pensando que o ajudava disse para que o deixassem em paz, pois já tinha feito muito por todos e pela cidade e agora precisava descansar.
— Tudo mentira! Sabem aquele prêmio milionário da loteria, que ninguém sabe quem ganhou? Pois foi ele! E agora vem com essa para não ajudar os outros. O coração é de pedra sim, mas de ruindade!
Ele e a família passaram a ser hostilizados e malquistos. Num fim de semana, alguns moleques drogados invadiram a chácara em que a família costumava passar o fim de semana reunida, exigiram dinheiro, ameaçaram, espancaram, praticaram atrocidades e por fim queriam levar a neta mais nova, até que ele lhes pagasse o resgate exigido.
Isso ele não podia permitir, e depois de perceber que eram inúteis todos os apelos e promessas que fizera, investiu descontrolado contra aquele que tomara a criança nos braços para levá-la embora.
O tiro o acertou no peito e lhe transfixou o coração de pedra, do qual jorrou sangue abundante.
Poucos foram ao enterro.
Algum tempo depois, a família resolveu deixar a cidade e se mudou ninguém sabe para onde.
Dizem até hoje que na Santa Casa existe um vidro, em que se acha conservado o coração de pedra até que a ciência possa explicá-lo.