Madeira de lei

 

 

 

                        Já me disseram que este blog está se tornando um obituário, tanto que escrevo de pessoas que se foram.

                        Mas que culpa posso ter se este ano de 2010 tem sido especialmente cruel, com mortes sucessivas de figuras especialíssimas para mim? Como Cazuza, sinto-me  a perder os meus heróis de overdose de viver, que é mais inebriante e fatal das drogas.

                        Cheguei a me conter e deixei de registrar as mortes do grande sambista Walter Alfaiate e do maravilhoso Johnny Alf (no que fui injusto).

                        Mas ontem foi a vez de Armando Nogueira, e não posso manter o silêncio obsequioso.

                        Lá se vai um dos últimos representantes de uma geração de jornalistas extraordinários, cultos e cultores do texto, com uma visão romântica e épica do esporte, especialmente do futebol.

                        A alguns a idade faz amargos, ranzinzas, intolerantes, professorais. A outros, adoça, torna bem-humorados, compreensivos e incansáveis aprendizes.

                        A Armando o envelhecer só fez bem, aprimorando e lapidando seus talentos e suas qualidades pessoais.

                        Que delícia ler o que escrevia, ouvir seus comentários e suas histórias.

                        Contava, por exemplo, que costuma assistir aos jogos no Maracanã ao lado de Nelson Rodrigues, que enxergava mal e tinha dificuldade de ver o que se passava no distante gramado, daí lhe indagar a todo instante:

                        — Armando, o que nós estamos achando do jogo?

                        E depois, na famosa mesa-redonda de que participavam, Nelson pontificava acima de todos, comentando a seu modo o desenrolar da partida, os lances polêmicos, a ponto de cunhar a famosa frase, quando confrontado com o videoteipe:

                        — O videoteipe é burro!

                        Já com certa idade Armando quis aprender a jogar tênis e se tornou (segundo dizem) um ótimo tenista. Aos sessenta, resolveu tocar gaita e (isso eu vi) também conseguiu se transformar num grande gaitista, tocando com muita bossa e suingue, com uma levada jazzística.

                        Foi o criador e diretor do Jornal Nacional, que estreou em plena Ditadura Militar, e na afoiteza da minha juventude cheguei a antipatizar com ele na época, responsabilizando-o pelo alinhamento do jornal e da Globo com os milicos. Quanta tolice minha! O que poderia ele fazer diante da censura e do autoritarismo de então, e da sempre dócil e interesseira subserviência de Roberto Marinho?

                        Muito pior está agora o Jornal Nacional, em tempos de plena liberdade e democracia, tendo como editor o sonso, bajulador e despreparado Willian Bonner.

                        “Armando”, segundo ensina o Houaiss, é um alimento em forma de mingau que se destina a dar apetite e força aos cavalos debilitados. “Nogueira”, todos sabemos, é uma árvore com madeira de ótima qualidade, cujas folhas contêm um óleo aromático, e as sementes são comestíveis.

                        Numa época de tantos descerebrados sob as luzes da ribalta, é uma pena e amarga ironia que um homem como Armando Nogueira morra vitimado por um câncer no seu cérebro privilegiado, que tanto nos iluminou com frases lapidares como estas:

 

“Pelé é tão perfeito que se não tivesse nascido gente, teria nascido bola.”

“Para Mané Garrincha, o espaço de um pequeno guardanapo era um enorme latifúndio.”

“A tabelinha de Pelé e Tostão confirma a existência de Deus.”

“No futebol, matar a bola é um ato de amor. Se a bola não quica, mau-caráter indica.”

“Anúncio: troco dois pés em bom estado de conservação por um par de asas bem voadas.”

“Heróis são reféns da glória. Vivem sufocados pela tirania da alta performance.”

“Gol de letra é injúria; gol contra é incesto; gol de bico é estupro.”

“Tu, em campo, parecias tantos, e no entanto, que encanto! Eras um só, Nílton Santos.”  (esta, com a licença do Rockmann, que já a havia citado no seu blog).

 

 

 

 

 

4 comentários

  1. Lilian
    30/03/10 at 20:11

    Fazer o que se estamos numa época de perdas, né?
    Ano passado, fui surpreendida com a morte de Michael Jackson, que sempre adorei. Mesmo com aquele sucesso todo, que prossegue, ele sempre me pareceu uma vítima, daí a compaixão. Ficava bem chateada quando via notícias daqueles episódios “estranhos” narrados pela imprensa. Assistia entrevistas das irmãs dele, só pra “saber notícias”. Elas eram unânimes em dizer que ele era solitário, infeliz. Deve ser horrível ter a vida assim devassada pela imprensa… e, pior, exposta pela própria família.
    Eu ainda esperava muito dele. Ele se foi cedo demais. Até o Mick Jagger, um consumidor de drogas assumido está bem (cada vez melhor) até hoje. E o pobre Michael se foi, ainda criança, porque pra mim ele nunca cresceu.
    Continuando com o obituário, semana passada, tive a notícia do falecimento do marido de uma amiga minha. Jovenzinha, agora viúva… essa vida é muito estranha. Não há como deixar de se condoer diante da morte que afeta a vida de uma pessoa querida. Esses dias todos tenho pensado nela, em como estará se sentindo.
    Melhor não conhecer muita gente pra não sofrer tanto…
    Quando ao Armando Nogueira… era, no mínimo, uma pessoa de respeito, daquelas que você ouve com atenção e prazer. Devia ser boa companhia…

  2. 31/03/10 at 10:48

    num mundo de bbb, melhor falar sobre os mortos.

  3. sonia k.
    31/03/10 at 15:28

    Os últimos dois anos foram pródigos em levar pessoas muito queridas, muito admiradas e que farão falta a este mundo cada vez mais dilacerante. Mas é a parte da vida latente e patente que não há como se furtar e fugir. E não se preocupe com ser um blog considerado por vezes um obituário. É, na verdade, uma maternidade de lindas mensagens, de textos magníficos. Continuo sua fã, na fila do gargarejo.

  4. Lilian
    31/03/10 at 22:51

    Esqueci de anexar a minha homenagem…
    http://www.youtube.com/watch?v=hyuF3UkFQ5o
    (É lindo!)

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