Eles estão logo ali, à minha frente e no alto, numa prateleira que mandei afixar na parede para que pudessem descansar de tanta lida e de tanto lidos.
Sem me dar conta disso, coloquei-os como sempre esteve o seu autor: à frente e acima do seu tempo.
Subo numa pequena escada e contemplo de perto os 30 volumes das “Obras Completas de Monteiro Lobato”. São 13 de “Literatura Geral”, e 17 de “Literatura Infantil”, em bela encadernação marrom, com filigranas douradas nas lombadas e o título na capa também em letras douradas.
Apanho o primeiro volume da coleção infantil, “Reinações de Narizinho”, e levo um susto: a edição é de 1947, da Editora Brasiliense Limitada, com ilustrações de André Le Blanc. Ainda nem tinha nascido!
Ganhei os livros infantis de meu avô materno, Vô Tufy, que manteve com ele os de literatura geral, que mais tarde também me repassou.
Li todos os dezessete volumes infantis dos 8 aos 10 anos — pouco mais, pouco menos —, a princípio tropeçando em algumas palavras, perguntando ou indo ao dicionário, depois com maior fluência, mas sempre absolutamente deslumbrado.
Além das travessuras de Narizinho, Pedrinho, Emília, Visconde de Sabugosa, Rabicó, das histórias de Dona Benta, das iguarias de Anastácia, aprendi muito, e gostosamente, sobre gramática, aritmética, geografia, história, as grandes invenções, o petróleo (obsessão de Lobato). Tomei contato ainda com a mitologia grega e com D. Quixote, que se tornaria um dos meus livros prediletos.
Os velhos livros resistem bravamente, mas alguns exemplares estão bastante desgastados. Além das minhas, passaram por diversas mãos e cabeças (foram muito emprestados), entre as quais as das minhas três filhas, que não chegaram a ler todos, creio eu. Agora, esperam Manuela, e que delícia vai ser reler com ela…
Encontro anotações a lápis no volume de “Reinações de Narizinho”, que está com várias folhas e a contracapa soltas. Na página 12, logo acima do item “IV — O bobinho”, uma letra infantil assinala: “Vou começar aqui”. Não sei se é minha, de alguma das meninas ou de outra criança leitora. Mas fico intrigado, por que começar dali? Ou seria recomeçar?
E o que me leva agora recorrer o passado?
José Bento Monteiro Lobato nasceu no dia 18 de abril (que em razão disso foi consagrado, desde 2002, como o “Dia Nacional do Livro Infantil) do ano de 1882, embora ele insistisse que nascera de fato em 1884.
Consta de algumas biografias que foi batizado como José Renato Monteiro Lobato, mas em 1893 resolveu adotar o nome do pai porque desejava usar uma bengala que pertencera a ele, cuja empunhadura trazia as iniciais “JBML”.
Perdeu o pai aos 16 anos e, aos 17, a mãe, ficando a partir de então sob a tutela do avô materno, o Visconde de Tremembé. Formou-se em Direito por vontade do avô, porque preferia ter cursado a Escola de Belas-Artes.
Chegou a exercer a promotoria de justiça na cidadezinha de Areias, abandonando o cargo para ir cuidar da fazenda que herdou do avô, situada no município de Buquira, que depois o homenageou adotando o seu nome. Foi naquela fazenda que presenciou as queimadas feitas pelos jecas tatus, que tanto o indignaram.
O autor que soube encantar as crianças, tratando-as de igual para igual, era um homem cético, ranzinza, polemista e visionário. Brigou com muita gente e fez muitos inimigos. Criticou acerbamente Oswald de Andrade e Anita Malfatti, e chegou por isso a ter a “morte” decretada por Mário de Andrade, num artigo publicado no jornal “A Manhã”. Todavia, na década de trinta, depois de regressar dos EUA, reconciliou com eles e passou a defendê-los, chegando a afirmar em carta enviada a Flávio Campos que “Mário, pelo seu talento no analismo criticista, tem direito a tudo, até de meter o pau em você e em mim”.
Na mesma época, em carta enviada a Érico Veríssimo, ao comentar o novo livro deste, anotou: “Escrever bem é mijar. É deixar que o pensamento flua com o à vontade da mijada feliz.”
Enfrentou muitos problemas nos EUA (para onde foi em 1926, como adido comercial da embaixada brasileira) com o seu livro profético “O Presidente Negro e o Choque de Raças”, uma história que relata a vitória de um candidato negro à Presidência daquele país, que, apesar disso, continuou a admirar.
Regressou dos EUA entusiasmado com as riquezas naturais do Brasil e nossa capacidade de produzir petróleo, tornando-se um dos maiores defensores de uma política que entregasse à iniciativa privada a extração do petróleo em solo brasileiro. Chegou a remeter uma carta veemente a Getúlio Vargas na qual denunciava o interesse estrangeiro em negar a existência do “ouro negro” no Brasil, em razão do quê acabou detido no presídio Tiradentes, de onde enviou a seus amigos em todo o país cópias da carta que Getúlio havia considerado “ofensiva”. Voltou a ser preso pelo mesmo motivo em 1941, e sua luta pelo petróleo acabaria por deixá-lo pobre, doente e desiludido.
Ainda hoje continua vítima da coragem de sempre defender com destemor suas ideias, sendo tachado entre outras coisas de politicamente incorreto e racista pela forma de se referir à negra Anastácia e ao caipira indolente e predatório personificado por Jeca Tatu. Cogita-se até mesmo reescrever trechos de sua obra, para adequá-la à sanha atual do politicamente correto, como o fazia o Big Brother de Orwell com a novilíngua.
Ele mesmo, em vida, pediu desculpas ao caipira, reconhecendo que era vítima de doenças endêmicas e da falta de educação, responsabilizando por isso o Poder Público.
Foi ele quem lançou as bases da indústria nacional do livro, ao fundar em 1908 a “Monteiro Lobato e Cia”, a primeira editora brasileira. Antes disso, todos os livros eram impressos em Portugal.
Progressista ferrenho (ao contrário do que muitos dizem), escreveu a respeito daqueles que são contrários às coisas novas: “O grande erro dessa casta de homens é confundir corrupção com evolução. Condenam as formas novas de vida, que se vão determinando em consequência do natural progresso humano, em nome das formas revelhas. Logicamente, para eles, o homem é a corrupção do macaco; o automóvel é a corrupção do carro de boi; o telefone é a corrupção do moço de recados.”
No final da vida, lamentava não ter escrito mais para as crianças, afirmando que não valia a pena escrever para gente grande. Sobre ele e o sua obra, escreveu Oswald de Andrade (o mesmo que ele havia criticado de início), quando dos 25 anos do lançamento de “Urupês”: “Você foi o Gandhi do modernismo brasileiro, jejuou e produziu, quem sabe, nesse e noutros setores, a mais eficaz resistência passiva de que se pode orgulhar uma vocação patriótica. No entanto, martirizaram você por falta de patriotismo.”
Ouça abaixo um trecho da última entrevista concedida por Monteiro Lobato ao jornalista Murilo Antunes, da Rádio Record. em 1948. Dois dias depois, Lobato faleceu, vitimado por um derrame.
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