Para o Gilberto, que me salvou da semana.
Eta semanazinha ranzinza esta!
Ainda bem que se vai indo, e já vai tarde…
Contratempos, contragostos, contrariedades, contrafeitos.
Nada de grave, apenas chateações que gostaria não mais ter de aturar a esta altura da vida.
Mas assim é a vida…
Eis que me vem às mãos um pequeno ensaio sobre Miguel Unamumo, escrito e a mim enviado por Gilberto Kujawski.
Ao longo do primoroso ensaio (que deverá integrar um livro em gestação), deparo com um poema impressionante de Unamuno que me cai como um relâmpago a iluminar a noite.
Não bastassem a beleza e a força do poema, creio que meu estado de espírito se acha propício a ele. Fala da morte, ou da espera da morte, sem mencioná-la uma vez sequer.
Embora não pretenda morrer tão cedo, o poema me ficou na cabeça todos esses dias. Reli-o inúmeras vezes, e a cada leitura mais me extasiava.
Um poema dessa qualidade há de ser lido, e sentido, na sua própria língua. A tradução de qualquer obra literária é sempre problemática (Tradutore, traditore! — dizem os italianos), mas a de um poema, especialmente um bom poema, é ainda pior, talvez até mesmo impossível.
Todavia, como o lutador de Drummond, insistimos nessa luta vã, mal rompe a manhã.
Apesar do meu trôpego espanhol, meti-me a besta e perpetrei uma versão do poema, muito mais para me consolar de não o ter escrito, e da falta de talento para jamais o escrever.
Procurei ser fiel ao texto e sentido originais, mas me vi obrigado a algumas licenças poéticas, que espero não tenham desfigurado o poema.
A mais evidente e duvidosa delas talvez seja o tempo verbal. “Vendrá” é “futuro simple” ou “futuro imperfecto” do verbo “venir”, que possivelmente melhor se traduza no presente do subjuntivo do nosso verbo “vir”: “venha; que venha”.
Comecei a versão usando esse tempo verbal, mas depois de algumas estrofes senti que o poema (não bastasse a incompetência do tradutor) perdia muito da sua força. Decidi-me, então, pelo futuro do indicativo ou futuro do presente, “virá”, que me pareceu expressar mais adequadamente o misto de anseio e de certeza do poeta, isto é, de como ele gostaria ou imagina que venha aquilo ou aquela (“él, ella o ello?”) que fatalmente virá. Não sem razão, uma das mais conhecidas obras da vasta produção de Unamuno intitula-se “Do sentimento trágico da vida”.
Há algumas outras estrepolias, como por exemplo utilizar “elo” (não seria a morte o nosso elo com algo mais ou com os demais?) à falta de um vocábulo em português como o neutro “ello” (aquilo?) espanhol.
Se muito me explico é porque pouco me fio, e o fiasco prenuncio.
Mesmo assim, aqui vão o belíssimo poema e sua tosca versão.
VENDRÁ DE NOCHE
Miguel de Unamuno
Vendrá de noche, cuando todo duerma;
vendrá de noche, cuando el alma enferma
se emboce en vida;
vendrá de noche, con su paso quedo;
vendrá de noche y posará su dedo
sobre la herida.
Vendrá de noche, y su fugaz vislumbre
volverá lumbre la fatal quejumbre;
vendrá de noche,
con su rosário; soltará las perlas
del negro sol que da ceguera verlas,
¡todo un derroche!
Vendrá de noche, noche nuestra madre,
cuando a lo lejos el recuerdo ladre
perdido aguero;
vendrá de noche; apagará su paso
mortal ladrido, y dejará al ocaso
largo agujero…
¿Vendrá una noche recogida y vasta?
¿Vendrá una noche maternal y casta
de luna llena?
Vendrá viniendo con venir eterno;
vendrá una noche del postrer invierno…
noche serena…
Vendrá como se fué, como se ha ido
— suena a lo lejos el fatal ladrido —,
vendrá a la cita;
será de noche mas que sea aurora;
vendrá a su hora, cuando el aire llora,
llora y medita…
Vendrá de noche, en una noche clara,
noche de luna que al dolor ampara,
noche desnuda;
vendrá… venir es porvenir…, pasado
que pasa y queda y que se queda al lado
y nunca muda….
Vendrá de noche cuando el tiempo aguarda,
cuando la tarde en las tinieblas tarda
y espera al dia;
vendrá de noche, en una noche pura,
cuando del sol la sangre se depura,
del mediodía.
Noche ha de hacerse en cuanto venga y llegue,
y el corazón rendido se le entregue,
noche serena,
de noche ha de venir… ¿él, ella o ello?
De noche ha de sellar su negro sello,
noche sin pena.
Vendrá la noche, la que da la vida
y en que la noche al fin el alma olvida,
traerá la cura;
vendrá la noche que lo cubre todo
y espeja al cielo en el luciente lodo
que lo depura.
Vendrá de noche, sí, vendrá de noche,
su negro sello servirá de broche
que cierra el alma;
vendrá de noche sin hacer ruido,
se apagará a lo lejos el ladrido,
vendrá la calma…
vendrá la noche….
VIRÁ DE NOITE
(versão pessoal)
Virá de noite, quando tudo dorme;
virá de noite, quando a alma enferma
se esmaece em vida;
virá de noite, com seu passo quedo;
virá de noite e pousará seu dedo
sobre a ferida.
Virá de noite, e seu fugaz vislumbre
volitará o lume do fatal queixume;
virá de noite
com seu rosário; derramará as contas
do negro solstício que enceguece,
tanto desperdício!
Virá de noite, nossa mãe soturna,
quando ao longe a lembrança açoite
com seu agouro;
virá de noite; apagará seu passo
o mortal gemido, e deixará no ocaso
a amplidão do abismo…
Virá uma noite recolhida e vasta?
Virá uma noite maternal e casta
de lua cheia?
Virá vindo num vir eterno;
virá uma noite do póstumo inverno…
noite serena…
Virá como foi, como havido
— ressoa ao longe o fatal gemido —,
virá ao encontro marcado;
será de noite mas que seja aurora;
virá na sua hora, quando o ar chora,
chora e medita…
Virá de noite, em uma noite clara,
noite de lua que a dor ampara,
noite desnuda;
virá… vir é porvir…, passado
que passa e para e ao lado fica
e nunca muda…
Virá de noite quando o tempo aguarda,
quando a tarde nas trevas tarda
e espera o dia;
virá de noite, numa noite pura,
quando do sol se depura o sangue
do meio-dia.
Noite há de se fazer enquanto venha e chegue,
e o coração rendido se aconchegue,
noite serena,
de noite há de vir… ele, ela ou elo?
De noite há de selar sua negra estampa,
noite sem pena.
Virá a noite, a que dá a vida,
e naquela noite infinda que a alma olvida,
trará a cura;
virá a noite que tudo encobre
e espelha no céu a luzente lama
que o depura.
Virá de noite, sim, virá de noite,
seu negro selo servirá de broche
que encerra a alma;
virá de noite sem fazer ruído,
se apagará ao longe o gemido,
virá a calma …
virá a noite ….