Que triste e desconcertante coincidência!
Passo a semana aborrecido e sob o impacto do poema noturnal de Unamuno, que me acompanha no dia a dia, até que resolvo traduzi-lo, quase que para me libertar.
Virá de noite!
E de noite veio para meu hoje distante amigo Sócrates, Brasileiro, como o outro Antônio Carlos.
Crescemos juntos em Ribeirão Preto, morando na mesma rua, em casas fronteiriças, onde hoje ainda habitam a mãe dele, nossa querida Dona Guiomar, e meu pai, ambos viúvos agora.
A casa do Seu Vieira e da Dona Guiomar — como uma Paris ribeiropretana — sempre foi uma festa permanente, com a fieira de filhos, os tantos amigos e a parentada que por lá passavam. Muitos ficavam, acolhidos generosamente enquanto estudavam, até que se formassem e ganhassem independência. Mas logo eram substituídos por outros, nas mesmas condições.
Uma das maiores dádivas que a vida me concedeu tem sido a convivência com pessoas muito especiais, como a família Vieira.
Sócrates, seus irmãos, outros moleques da vizinhança e eu jogávamos futebol no meio da larga rua das casas paternas (na época, ele era torcedor do Santos, como eu; mas já era botafoguense, e eu, comercialino). Mais tarde, fui adversário dele nos jogos universitários, na disputa de futebol de salão (como se chamava então, ao tempo da bola pesada), ele no time da Medicina, eu, no do Direito. Eram dois timaços, mas perdemos, por obra dele.
Tomamos alguns pileques juntos, passamos ao lado alguns velhos carnavais nos salões da veneranda Sociedade Recreativa e de Esportes de Ribeirão Preto.
Sua primeira mulher, Regina, era amiga da minha irmã, e não saía da nossa casa, de onde começaram a paquera.
Terminei a faculdade antes dele, logo passei no concurso de ingresso ao Ministério Público de São Paulo, e mergulhei nas novas responsabilidades. Ele se tornou jogador profissional, foi para o Corinthians, e o resto da história todos sabem.
Embora distanciados, toda vez que me via, da ampla varanda da casa dos pais (onde passava os dias a beber e celebrar durante os momentos de folga), nos bares da vida ou em qualquer outro local, fazia questão de vir ao meu encontro e me cumprimentar efusivamente, sem máscara alguma, como se ainda fôssemos os dois moleques vizinhos (e éramos).
Embora não concordasse com tudo o que pensava e dizia, não se pode deixar de lhe admirar e respeitar a coragem de pensar e dizer, a inteligência, a arte do seu futebol, a generosidade, a integridade, a paixão pela vida, que me lembra muito a de Vinicius de Moraes.
Quando soube que estava novamente internado, e com infecção generalizada, disse à minha mulher que dificilmente venceria mais essa batalha pela vida. Mas cheguei a ter esperança quando o noticiário informou que ele se achava estável, o que em tal situação é promissor.
Hoje, ao me levantar, soube que havia morrido por volta das quatro horas da madrugada.
“Vendrá de noche cuando todo duerma;
vendrá de noche cuando el alma enferma
se emboce en vida;
vendrá de noche con su paso quedo;
vendrá de noche y posará su dedo
sobre la herida.”
[…]
“será de noche mas que sea aurora;”
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