Posts from dezembro, 2011

Papéis velhos

 

 

 

 

            Fernando Pessoa, que em vida publicou apenas um livro, diz no seu delicioso poema “Liberdade” (“Ai que prazer / não cumprir um dever. / Ter um livro para ler / e não o fazer!”) que “Livros são papéis pintados com tinta”.

            E jornais, dizem muitos, no dia seguinte são papéis de embrulho.

            Do mesmo modo que o verso de Pessoa não é vero (e, como bom fingidor, nem ele próprio por certo acreditava no que disse), creio que em algumas coisas os jornais sobrevivem ao dia seguinte, embora em muitas outras coisas nos embrulhem em primeira ou última edição.

            Por isso costumo guardá-los durante a semana, ou parte deles, para com mais tempo e calma ler artigos e matérias que me despertam o interesse.

            Dois artigos publicados nesta semana na Folha de S. Paulo, que de certo modo se complementam, me chamaram a atenção, e relidos agora nesta tarde de sexta-feira, em que já me livrei dos atropelos dos compromissos e das obrigações, superam a minha primeira boa impressão.

            O primeiro deles é de João Pereira Coutinho, “Homofobia não é crime” (“Ilustrada”, 13/12), no qual o escritor e jornalista português — com lucidez e sem se lançar em defesa da homofobia, como o título pode sugerir — discorre sobre o projeto de lei da senadora Marta Suplicy e a visão dela sobre o assunto:

 

“Infelizmente, a sra. Suplicy confunde tudo na discussão do seu projeto: homofobia; crime homofóbico e medicalização da homossexualidade. Como diria um contemporâneo de Wilde, Jack, o Estripador, vamos por partes.

Começando pelo fim, ninguém de bom senso defende que a homossexualidade é uma doença mental. Não é preciso consultar a Organização Mundial da Saúde para o efeito. Basta olhar para a história da espécie humana  — e, mais ainda, para a diversidade do mundo natural — para concluir que, se a homossexualidade é loucura, então boa parte da criação deveria estar no manicômio.

De igual forma, ninguém de bom senso negará que persistem crimes medonhos contra homossexuais, seja no Brasil ou na Europa, porque os agressores, normalmente homossexuais reprimidos, não gostam de se ver no espelho.

O problema está em saber distinguir o momento em que uma aversão se converte em crime público. Porque a mera aversão não constitui, por si só, um crime.

Por mais que isso ofenda o espírito civilizado de Marta Suplicy, é perfeitamente legítimo que um heterossexual não goste de homossexuais. Como é perfeitamente legítimo o seu inverso.

Vou mais longe: no vasto mundo da estupidez humana, é perfeitamente legítimo não gostar de brancos; de negros; de asiáticos; de portugueses; de brasileiros; de judeus; de cristãos; de muçulmanos; de ateus; de gordos ou de magros. A diferença entre um adulto e uma criança é que o adulto entende que o mundo não tem necessariamente de gostar dele.

O que não é legítimo é transformar uma aversão em instrumento de discriminação ou violência. Não porque isso seja um crime homofóbico. Mas porque isso é simplesmente um crime.

E os crimes não têm sexo, nem cor, nem religião. Se Suplicy olhar para a estátua da Justiça, entenderá que os olhos da figura estão vendados por uma boa razão.

Pretender criminalizar a homofobia porque não se gosta de ideias homofóbicas é querer limpar o lixo que há na cabeça dos seres humanos. Essa ambição é compreensível em regimes autoritários, que faziam da lavagem cerebral um método de uniformização. Não deveria ser levado a sério por um Estado democrático.

 

            O outro artigo, mais luminoso ainda, é do psicanalista e escritor Contardo Calligaris, “Sentidos do fundamentalismo” (“Ilustrada”, 15/12), em que ele, embora por outro ângulo, retoma a questão, tirando conclusões parecidas:

 

“Mas tenho pressa de chegar ao outro sentido, pelo qual fundamentalista é quem exige que os preceitos que derivam de suas convicções ou de sua fé sejam observados por todos — ou mesmo que eles se transformem em lei da sociedade inteira.

Esse tipo de fundamentalista, seja qual for sua convicção, religiosa ou ateia, é animado pela necessidade de converter os outros, a qualquer custo. Em geral, ele acha que a violência de seu espírito “missionário” é um corolário de sua fé e uma prova de sua generosidade: “Forçando o outro a se converter, eu só quero seu bem, mesmo que seja contra a vontade dele”.

Com esse tipo de fundamentalista, eu implico, por duas razões.

Primeiro, detesto que alguém esconda sua violência atrás de pretensas boas intenções e não gosto da ideia de que um outro imagine saber o que é “bom” para mim.

Segundo, não acredito que alguém possa querer converter os outros à força por generosidade.

Há duas razões pelas quais, em regra, alguém quer impor as normas de suas convicções aos outros, e ambas são péssimas:

1) Ele precisa que ao menos os outros respeitem essas normas, que ele preza, mas não consegue impor a si mesmo  — ou seja, incapaz de obedecer a seus próprios princípios, ele quer validá-los pela obediência forçada dos outros;

2) Ele quer se livrar da inveja que ele sente da vida dos que não respeitam essas mesmas normas (para assinalar a componente de inveja, presente nos moralistas, Alfred Kinsey, o grande sociólogo e sexólogo, dizia que “ninfômana” e “tarado” são os que conseguem ter uma vida sexual mais intensa do que a da gente).

Em suma, os motores de muitos fundamentalismos missionários são a incapacidade de viver à altura dos preceitos pregados e a inveja de quem não respeita esses preceitos.

Por isso, no debate (ou na gritaria) entre homossexuais e evangélicos, por exemplo, nem preciso decidir se gosto mais de Oscar Wilde ou do apóstolo Paulo.

Pois, bem antes e independentemente disso, a oposição relevante é a seguinte: os homossexuais não pretendem que os evangélicos passem todos a transar com parceiros do mesmo sexo ou a frequentar baladas gays, enquanto os evangélicos pretendem que os homossexuais se convertam e renunciem a seu desejo (transformado em “pecado”) — ou, no mínimo, que eles sejam impedidos de viver segundo suas próprias disposições e convicções.

Ou seja, para se situar nessa oposição, não é preciso escolher entre as ideias e as práticas das partes, mas entre os que querem regrar a vida de todos segundo seus preceitos e os que preferem que, nos limites da lei, todos possam pensar e agir como quiserem.”

 

            Tais reflexões parecem-me lapidares diante das crescentes investidas do Estado brasileiro, sob aplausos quase gerais, contra as liberdades do indivíduo, a pretexto de zelar pelo interesse coletivo.

            O rol é imenso, e as cruzadas se sucedem contra fumantes, porte de arma, consumo de álcool, controle social da mídia, uso obrigatório de “cadeirinhas” para crianças nos veículos particulares, “lei da palmada” e muito mais.

            Vejo nisso tudo, e em muitas outras atitudes de Estados que se pretendem democráticos e sociais o maior de todos os perigos: o das medidas demagógicas, de apelo popular, que mais tarde culminam no exercício do poder absoluto e arbitrário, seja de direita, seja de esquerda.

            Já se ouvem estímulos às crianças para que se contraponham aos pais que fumam ou que bebem, que demoram no banho e gastam muita água e energia, que não reciclam o lixo, que não preservam o meio ambiente, que deixam a torneira aberta enquanto escovam os dentes, que não tomam vacina contra a gripe e a pneumonia.

            O próximo passo será lhes dar medalhas por denunciar os pais relapsos ao Estado, como faziam os regimes fascista, nazista e comunista.

            Talvez já passe da hora de não nos calarmos para que não nos aconteça o que descreve aquele belo poema de Eduardo Alves de Souza, escrito em homenagem a Maiakóvski, e que muitos pensam ser deste mesmo:

 

                                   Na primeira noite eles se aproximam

                                   e roubam uma flor

                                   do nosso jardim.

                                   E não dizemos nada.

                                   Na segunda noite, já não se escondem:

                                   pisam as flores,

                                   matam nosso cão,

                                   e não dizemos nada.

                                   Até que um dia,

                                   o mais frágil deles

                                   entra sozinho em nossa casa,

                                   rouba-nos a luz, e,

                                   conhecendo nosso medo,

                                   arranca-nos a voz da garganta.

                                   E já não podemos dizer nada.

                                   […]

                                   Dizem-nos que de nós emana o poder

                                   mas sempre o temos contra nós.

                                   Dizem-nos que é preciso

                                   defender nossos lares

                                   mas se nos rebelamos contra a opressão

                                   é sobre nós que marcham os soldados.

                                   E por temor eu me calo,

                                   por temor aceito a condição

                                   de falso democrata

                                   e rotulo meus gestos

                                   com a palavra liberdade,

                                   procurando, num sorriso,

                                   esconder minha dor

                                   diante de meus superiores.

                                   Mas dentro de mim,

                                   com a potência de um milhão de vozes,

                                   o coração grita ─ MENTIRA!