Posts from fevereiro, 2012

O procurador procuradeiro

 

 

 

 

Mrs. Digby me contou que, quando morava em Londres, em companhia de sua irmã, Mrs. Brooke, de vez em quando tinham a honra de receber a visita do Dr. Johnson. Assim sucedeu um dia, pouco depois da publicação do dicionário imortal. As duas senhoras, na ocasião, prestaram-lhe os cumprimentos de praxe. Entre outros motivos de louvor, elogiaram muitíssimo a omissão de todas as palavras ‘impróprias’. 

“Como, minhas caras! Então vocês as procuraram?” — perguntou o moralista.

(H. D. Best, Memórias Pessoais e Literárias)

 

 

            Conforme noticiado, um procurador do Ministério Público Federal — cujo nome nem merece ser citado — ingressou com uma ação civil pública perante a Justiça Federal em Uberlândia, postulando a retirada de circulação do Dicionário Houaiss, o qual, segundo ele, contém expressões “pejorativas e preconceituosas” que caracterizam racismo contra ciganos.

            Eis algumas das pérolas do zeloso procurador:

 

“Ao se ler em um dicionário, por sinal extremamente bem conceituado, que a nomenclatura cigano significa aquele que trapaceia, velhaco, entre outras coisas do gênero, ainda que se deixe expresso que é uma linguagem pejorativa, ou que se trata de acepções carregadas de preconceito ou xenofobia, fica claro o caráter discriminatório assumido pela publicação.”

“Trata-se de um dicionário. Ninguém duvida da veracidade do que ali encontra. Sequer questiona. Aquele sentido, extremamente pejorativo, será internalizado, levando à formação de uma postura interna pré-concebida em relação a uma etnia que deveria, por força de lei, ser respeitada”

“O direito à liberdade de expressão não pode albergar posturas preconceituosas e discriminatórias, sobretudo quando caracterizadas como infração penal”. 

 

            Anota, ainda, Sua Excelência, que a editora não atendeu a recomendações de alterar o texto, como fizeram outras duas editoras com seus dicionários (ao que consta, Melhoramentos e Globo), e, além da retirada da publicação do mercado, pleiteia que a editora Objetiva e o Instituto Houaiss sejam condenados a pagar 200.000 reais de indenização por danos morais coletivos, por terem ofendido “de maneira absolutamente injustificável o patrimônio moral da nação cigana”.

            Custa-me crer em tamanho despautério, e talvez não acreditasse se não houvesse lido a notícia em diversas fontes e não estivéssemos no Brasil.

            Recorro ao significado de dicionário dado pelo próprio Houaiss: “compilação completa ou parcial das unidades léxicas de uma língua (palavras, locuções, afixos etc.) ou de certas categorias específicas suas, organizadas numa ordem convencionada, ger. alfabética, e que pode fornecer, além das definições, informações sobre sinônimos, antônimos, ortografia, pronúncia, classe gramatical, etimologia etc”

            O velho e bom Caldas Aulete diz o mesmo, de modo menos pomposo: “coleção de todas as palavras ou somente de certa classe de palavras de uma língua, por ordem alfabética com a sua significação na mesma língua ou com a tradução em outra.”

            O que pretende, pois, o eminente procurador, além dos seus quinze minutos de fama?

            Implantar uma novilíngua como o Big Brother de Orwell?

            E por que apenas em relação aos ciganos?

            Por que não riscar também os significados pejorativos de “judeu”, “mulato”, “preto”, “baiano” “paraíba”, “retardado”, “idiota”, “capadócio”, “beócio”, “boçal”, e de todos os palavrões e expressões ofensivas?

            Melhor ainda: vamos queimar todos os dicionários em praça pública e adotar a “Cartilha do Politicamente Correto” de um sósia intelectual do doutíssimo procurador — cujo nome tampouco merece menção — que entre outras asneiras sustenta que o uso da expressão “barbeiro” “no sentido de motorista inábil, obviamente é ofensiva ao profissional especializado em cortar cabelo e aparar barba”.

            A propósito, o argumento central do procurador é pejorativo, ofensivo e preconceituoso em relação aos leitores do dicionário, que não saberiam distinguir ou entender que se trata de palavras ou expressões pejorativas, mesmo que isso conste expressamente da publicação.

            Ah, que falta nos faz Sérgio Porto com seu Stanislaw Ponte Preta e o Febeapa (Festival de Besteiras que Assolam o País)!

            À falta dele, que o nobilíssimo e iluminado procurador, à falta do que mais fazer, vá procurar pelo em ovo e chifre em cabeça de cavalo.

            E se não achar, que vá então plantar batatas!

 

 

 

 

Crocs, Crocs…

 

 

 

            — Babu, Babu, presente!!!

            Acordo com os gritos de Manuela — como trinados de um bando de passarinhos ao alvorecer — enchendo meu quarto da sua alegria.

            Não que seja tão cedo assim. Depois de vinte anos saltando da cama às seis horas da matina para as aulas na faculdade de Direito, tenho me dado o direito de dormir até mais tarde, agora que me tornei um professor em recesso (creio que permanente). Ainda porque, com ou sem aulas, jamais consigo me deitar antes da meia-noite, e muita vez mais tarde ainda.

            Ela nem espera que eu me levante, sobe com esforço na cama, atrapalhada com uma sacola quase do tamanho dela, a repetir excitada:

            — Presente, Babu, presente!!!

            O aniversário de dois anos dela, dia 4 de março, está próximo e sou eu quem ganha o presente, não bastasse o presente maior da presença dela.

            Acesa a luz e com ela saltitante ao meu redor, abro a sacola, desfaço o embrulho e… Crocs, Crocs

            — Igual Manuela, me diz orgulhosa, exibindo-me o pezinho. Põe, põe!

            Claro que calço, e vejo que os tais de Crocs são mesmo deliciosamente confortáveis.

            Sequer sabia que adultos também usavam, até que no carnaval vi o jovem pai de um amiguinho da Manuela com um, e comentei com minha filha Carolina que deveriam ser ótimos.

            Agora que calcei, ela me diz para tirar, descalça os dela e quer que troquemos. Enfia os meus e sai arrastando os pés pelo corredor:

            — Vem, Babu…

            Ela me trata como se tivéssemos a mesma idade e o mesmo tamanho.

            Talvez tenha razão.

 

 

 

 

 

 

Teresa, Fausto e Né

 

 

 

 

“Considero-me legítimo herdeiro de Edmundo Bettencourt e de Menano, que são os homens do fado de Coimbra. Toda a grande música que se faz hoje e que está preocupada em não abandonar a matriz da música tradicional começou em Coimbra, dentro das universidades. A que nasceu fora das universidades desembocou numa desgraça, mas isso é outra coisa, é música de feira”. (Fausto)

 

 

            Foi graças a uma amiga portuguesa que tive a ventura de conhecer pela internet e me dá a honra de acessar este blog, Teresa Pinheiro Castro, Bibliotecária da Escola Profissional do Rodo, Peso da Régua, que tomei conhecimento da obra de altíssima qualidade daquele que é considerado por muitos como o maior compositor vivo da música popular portuguesa: Carlos Fausto Bordalo Gomes Dias, ou simplesmente Fausto, nome artístico que adotou.

            Nascido em novembro de 1948, a bordo de um navio que navegava pelo Atlântico entre Portugal e Angola, onde passou grande parte da infância e adolescência, Fausto iniciou sua aprendizagem musical a partir de ritmos africanos que lhe foram apresentados por um amigo angolano. Não obstante, os valores da cultura portuguesa, sobretudo os da Beira Baixa (de onde a sua família é natural) sempre estiveram sempre presentes na sua vida.

            Tornou-se um dos ícones da resistência à dolorosa agonia do processo revolucionário no pós 25 de Abril, integrando-se a artistas que empreenderam centenas de espetáculos por todo o país, época em que também passou a atuar como arranjador e produtor para outros cantores.

            Apaixonado pela temática dos Descobrimentos Portugueses, o seu álbum “Histórias de Viageiros” (1979) é o primeiro reflexo desse novo rumo da sua obra, cujo ápice se dá com o lançamento de “Por Este Rio Acima” (1982), em que traça um retrato da sociedade portuguesa, procurando os pontos de confluência entre a época das naus e caravelas e os dias de hoje. A esse propósito, afirma: “Canto o lado do povo anónimo que ia nos barcos, não o dos heróis. Canto o outro lado da História, o lado mais humano. Não falo do passado. Falo da actualidade e curiosamente há pontos em comum”.

            O disco, duplo, alcançou um êxito sem precedentes e deu origem a um novo ciclo da música popular portuguesa. Houve quem dissesse que seria impossível fazer algo melhor, com o que Fausto nunca se conformou: “Habituei-me à presença incómoda dessa obra. Mas acuso o espírito conservador dessas pessoas. Quem nos amarra não é mais que uma geração, as outras descobrem coisas novas”.

            Convidado a prosseguir no tema, impôs um longo período de trabalho entre cada registro da trilogia da diáspora marítima portuguesa, que se completa com “Crónicas da Terra Ardente” (1994) e “Em Busca das Montanhas Azuis” (2011).

            No interregno entre os álbuns do tríptico, editou diversos outros, como “O Despertar dos Alquimistas” (1985), grande painel sonoro sobre o tema da realidade e da utopia; “Para Além das Cordilheiras” (1987), em que percorre uma estrada musical entre Lisboa e Berlim, numa viagem simbólica do regresso de Portugal à Europa; “A Preto e Branco” (1989), com as canções africanas da sua adolescência angolana. Em 1996, sintetizou os temas fundamentais da sua obra no álbum duplo “Atrás dos Tempos Vêm Tempos”, em que 27 das suas principais canções são apresentadas regravadas e rearranjadas, com a colaboração de músicos da nova geração.

            Cognominado por alguns de “Cantor Maldito”, em razão das causas e ideias que defende com ardor, Fausto revela-se verdadeiramente extraordinário — como o nosso Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim — seja na criatividade e maestria dos poemas, seja na dimensão rítmica e melódica das composições e dos arranjos, como é o caso exemplar da maravilhosa canção “Porque Não Me Vês” (que integra o primeiro álbum da trilogia, “Por Este Rio Acima”), aqui interpretada pela voz límpida da não menos excepcional cantora portuguesa Né Ladeiras (Maria da Nazaré Azevedo Sobral Ladeiras).

 

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                        Meu amor adeus

                        Tem cuidado

                        Se a dor é um espinho

                        Que espeta sozinho

                        Do outro lado

                        Meu bem desvairado

                        Tão aflito

                        Se a dor é um dó

                        Que desfaz o nó

                        E desata um grito

                        Um mau olhado

                        Um mal pecado

                        E a saudade é uma espera

                        É uma aflição

                        Se é Primavera

                        É um fim de Outono

                        Um tempo morno

                        É quase Verão

                        Em pleno Inverno

                        É um abandono

 

                        Porque não me vês

                        Maresia

                        Se a dor é um ciúme

                        Que espalha um perfume

                        Que me agonia

                        Vem me ver amor

                        De mansinho

                        Se a dor é um mar

                        Louco a transbordar

                        Noutro caminho

                        Quase a espraiar

                        Quase a afundar

                        E a saudade é uma espera

                        É uma aflição

                        Se é Primavera

                        É um fim de Outono

                        Um tempo morno

                        É quase Verão

                        Em pleno Inverno

                        É um abandono

 

 

 

 

Tom menor

 

 

 

            Acordei-me tom menor.

            Segundo meus parcos conhecimentos, o tom ou acorde menor corresponde a um intervalo mais curto (ou menor) entre as notas, o que geralmente faz a música soar mais doce, mais suave, introspectiva, até mesmo algo tristonha ou melancólica.

            Gosto muito de canções assim, talvez porque, no fundo, eu não passe de um tom menor que se disfarça e busca nos tons maiores levar mais leve a vida.

            Também o carnaval, na sua explosão de alegria em tom maior, fantasia os tons menores do dia a dia.

            Pierrôs, Colombinas, Arlequins, Jardineiras, Tiroleses, Sultões, Odaliscas, Reis, Rainhas, Príncipes e Princesas, “somos todos iguais nesta noite, na frieza de um riso pintado.”

 

            “Quem é você?”

 

            “Hoje eu sou da maneira que você me quer.”

 

            “Eu sou o pirata da perna de pau, do olho de vidro, da cara de mau…”

 

            “Ei, você aí, me dá um dinheiro aí!”

 

            “Allah-la-ô, ô ô ô ô ô ô

            Mas que calor, ô ô ô ô ô ô.”

 

            “Eu fui às touradas em Madri

            E quase não volto mais aqui!”

 

            “Não existe pecado do lado de baixo do Equador

            Vamos fazer um pecado rasgado, suado a todo vapor.”

 

            “Não se perca de mim

            Não se esqueça de mim

            Não desapareça…”

 

            Quanto riso! Oh, quanta alegria!

 

            “Bandeira branca, amor,

            Não posso mais!”

 

            Passado o carnaval, a quarta-feira virá nas cinzas do tom menor.

 

            “E no entanto é preciso cantar

            Mais que nunca é preciso cantar

            É preciso cantar e alegrar a cidade.”

 

 

 [youtube=http://www.youtube.com/watch?v=4kHmk995qVA&feature=related]

 

 

 

Viger

 

 

 

                                   Na noite insone

                                   a vida assoma e assola

                                   com sôfrega exasperação.

 

                                   O sono pode esperar,

                                   a vida sonhada,

                                   não.

 

 

 

 

No Tom

 

 

 

            Não sei bem o que se me passa (envelheço, amadureço, enterneço?), mas a cada dia que passa gosto cada vez mais de Tom Jobim, em todos os sentidos, do homem à obra.

            Essa parceria dele com Dolores Duran, por exemplo, tem uma linda história.

            Tom havia feito a música e dado a Vinicius para pôr a letra, mas quando Dolores ouviu a canção, pegou um papelucho (consta que um guardanapo de papel) e escreveu os versos de uma só tacada.

            Alguns dias depois, Vinicius trouxe a sua letra para o Tom e este, constrangido, mostrou-lhe a que Dolores fizera. O poetinha ― sempre generoso e amigo ― ouviu, enfiou a sua no bolso sem deixar que Tom a lesse e lhe falou: “Fique com a da menina”.

            A letra de Dolores é de fato muito bonita e se harmoniza perfeitamente com a canção, que se tornou um clássico, mas como seriam os versos de Vinicius?

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=mKR746yT0Vo]

 

 

 

É preciso aprender a ser só (ou a só ser)

 

 

 

 

               Há trinta anos ficamos sós, sem a presença, às vezes doce, às vezes apimentada, de Elis Regina.

               Lá pelos meus verdes vinte anos, tive a graça de conhecê-la na casa dos irmãos Penha, Altamir e Edinho, músicos excepcionais, onde costumava se hospedar (ou pelo menos visitava) quando vinha a Ribeirão Preto e região para se apresentar.

               Levou-me um amigo mais velho, Caio Próspero, que desfrutava da intimidade dos Penha e me recomendou cuidado e discrição perto de Elis, que a qualquer momento podia se zangar e mandar a mim, ou qualquer outro, para um lugar pouco aprazível.

               Comecei então aquela noite de sonho um tanto ressabiado, mantendo-me a certa distância e a olhando de soslaio. “Olhos de águia, ouvidos de elefante e boca de siri”, eis outro velho e bom conselho recebido no passado que sempre trato de seguir, com ótimos resultados. 

               Mas com o decorrer das horas, bebidinhas rolando ao som de canções e interpretações de arrepiar, fui me entusiasmando e soltando, até que de repente, não mais que de repente, estava sentado quase ao lado dela, que me encarou e sorriu duas ou três vezes. Arrisquei mesmo alguns comentários que foram bem recebidos, sem destoar do que se conversava e do clima de intimidade reinante. Enfim, comendo pelas bordas, acabei por entrar na roda de música e encantamento. Elis, ao contrário do que temia, foi gentilíssima com todos até o final da noitada.

               Para minha alegria houve um repeteco meses depois, quando cheguei a ganhar beijinhos no rosto ao cumprimentá-la e ao me despedir.

               Costumo dizer que sempre tivemos cantoras extraordinárias, e continuamos a ter, mas para mim Elis Regina foi, e ainda é, a síntese de todas elas, reunindo em si as melhores qualidades de cada uma de nossas grandes damas.

               Numa daquelas noites, presenciei Elis cantar o lindo samba-canção dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle, “Eu preciso aprender a ser só”, que ela havia gravado. Quando já se achava consagrada, disse em várias entrevistas que a partir daquela interpretação é que começou a ter o respeito da crítica e do público. Talvez ela tenha alcançado então outro patamar de reconhecimento do seu talento, mas muito antes, desde suas primeiras aparições, já era reverenciada como grande cantora e intérprete.

               “Eu preciso aprender a ser só” tornou-se tão marcante que anos mais tarde Gilberto Gil respondeu com o não menos inspirado “Eu preciso aprender a só ser”, sobre o qual o ouvi contar ou li em alguma parte que compôs e gravou para conseguir se livrar da canção dos irmãos Valle que não lhe saía da cabeça e o estava impedindo de fazer outras coisas.

               Aqui vão as duas canções que me despertam tantas lembranças e provocam imensa emoção sempre que ouço.

               Em seguida, um vídeo do meu querido e talentoso amigo José Marcio Castro Alves que dá uma amostra da maestria de Altamir e Edinho Penha (e de como eram as noitadas e os saraus na casa ou na chácara deles).

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=VqWyAHVrwgs]

 

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=wRe3LmbrhEg&feature=related]

 

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=qKJzPXzwRTo&feature=related]

 

 

 

O som do silêncio

 

 

 

                                                O silêncio de fora

                                                é um pássaro volátil

                                                que a qualquer hora

                                                abre o bico, bate as asas

                                                e vai embora.

 

                                                O silêncio de dentro

                                                é a vaga gaiola

                                                em que se encerra

                                                o canto do pássaro

                                                que não há lá fora.

 

 

 

 

A psicóloga, o Id, o Superego e o Ego

 

 

Para a Júlia

 

 

               O sol ainda espreguiçava quando o Ego me sacudiu e fez saltar da cama, me enchendo a bola: “Hoje é um grande dia! Formatura da Júlia, a caçulinha! Que beleza! Suas três filhas concluíram o curso superior! Duas já são profissionais de sucesso, e a Júlia vai no mesmo caminho! Você pode se orgulhar!”.

               No fundo, bem sei que o mérito é só delas, mas é difícil não se deixar levar pela comoção e adulação em momentos assim.

               Passei o dia nas nuvens, como o avião em que embarcamos logo depois com destino a São Paulo para participar das solenidades. O Ego na poltrona ao lado. Céu de brigadeiro.

               No finalzinho da tarde, quando me vestia para a colação de grau, o Id deu o ar da sua graça, refletindo no espelho as imagens terríveis do Real: “Engordei! Que droga de cabelo esbranquiçado, que ficou áspero e rebelde, difícil de pentear. E essas rugas? Ainda bem que os óculos disfarçam um pouco… Parece que foi ontem a minha formatura.” E ainda por cima começou a chover…

               Mas logo o Ego voltou a se sentar a meu lado no auditório. “A Júlia é a mais elegante e linda de todas! Olha só ela recebendo o canudo! E foi escolhida para homenagear o patrono da turma! Veja só como ele sorri, a abraça e beija, deve gostar muito dela!”.

               O Superego, sempre muito bem articulado, sistemático e legiferante, não poderia faltar. Pontificou nos tantos discursos, ressaltando o simbolismo da graduação, rito de passagem para os compromissos e as responsabilidades da vida adulta, etc. etc.

               No baile, o Ego novamente se engalanou. “Como a Júlia está exuberante! E que maravilha dançar a valsa com ela! Champanhe, uísque, tim tim!”

               O retorno para o hotel de madrugada foi na companhia do Id, cansado, suado, o estômago revirando dos comes e bebes…

               No dia seguinte, de volta a Ribeirão Preto, Júlia telefona, melancólica com o fim da sua vida estudantil, receosa da duríssima pós-graduação em psicologia hospitalar que já iniciaria no dia 1º de fevereiro. O Id e o Superego estavam com ela.

               Real, Simbólico, Imaginário.

               Id, Superego, Ego.

               Ela vai lidar com eles profissionalmente agora. E cada vez mais, já que pretende se tornar psicanalista.

               Talvez me explique um pouco mais sobre essa Santíssima Trindade lacaniana, se eu não estiver emburrecido demais para entender.

               Como vivente leigo, pressinto que os três se misturam e alternam a cada instante, e talvez a chave esteja nisso, em não se fixar em apenas um deles.

                Afinal, como viver sem a verdade, regras, tradições e uma boa dose de fantasia?