Mrs. Digby me contou que, quando morava em Londres, em companhia de sua irmã, Mrs. Brooke, de vez em quando tinham a honra de receber a visita do Dr. Johnson. Assim sucedeu um dia, pouco depois da publicação do dicionário imortal. As duas senhoras, na ocasião, prestaram-lhe os cumprimentos de praxe. Entre outros motivos de louvor, elogiaram muitíssimo a omissão de todas as palavras ‘impróprias’.
“Como, minhas caras! Então vocês as procuraram?” — perguntou o moralista.
(H. D. Best, Memórias Pessoais e Literárias)
Conforme noticiado, um procurador do Ministério Público Federal — cujo nome nem merece ser citado — ingressou com uma ação civil pública perante a Justiça Federal em Uberlândia, postulando a retirada de circulação do Dicionário Houaiss, o qual, segundo ele, contém expressões “pejorativas e preconceituosas” que caracterizam racismo contra ciganos.
Eis algumas das pérolas do zeloso procurador:
“Ao se ler em um dicionário, por sinal extremamente bem conceituado, que a nomenclatura cigano significa aquele que trapaceia, velhaco, entre outras coisas do gênero, ainda que se deixe expresso que é uma linguagem pejorativa, ou que se trata de acepções carregadas de preconceito ou xenofobia, fica claro o caráter discriminatório assumido pela publicação.”
“Trata-se de um dicionário. Ninguém duvida da veracidade do que ali encontra. Sequer questiona. Aquele sentido, extremamente pejorativo, será internalizado, levando à formação de uma postura interna pré-concebida em relação a uma etnia que deveria, por força de lei, ser respeitada”
“O direito à liberdade de expressão não pode albergar posturas preconceituosas e discriminatórias, sobretudo quando caracterizadas como infração penal”.
Anota, ainda, Sua Excelência, que a editora não atendeu a recomendações de alterar o texto, como fizeram outras duas editoras com seus dicionários (ao que consta, Melhoramentos e Globo), e, além da retirada da publicação do mercado, pleiteia que a editora Objetiva e o Instituto Houaiss sejam condenados a pagar 200.000 reais de indenização por danos morais coletivos, por terem ofendido “de maneira absolutamente injustificável o patrimônio moral da nação cigana”.
Custa-me crer em tamanho despautério, e talvez não acreditasse se não houvesse lido a notícia em diversas fontes e não estivéssemos no Brasil.
Recorro ao significado de dicionário dado pelo próprio Houaiss: “compilação completa ou parcial das unidades léxicas de uma língua (palavras, locuções, afixos etc.) ou de certas categorias específicas suas, organizadas numa ordem convencionada, ger. alfabética, e que pode fornecer, além das definições, informações sobre sinônimos, antônimos, ortografia, pronúncia, classe gramatical, etimologia etc”
O velho e bom Caldas Aulete diz o mesmo, de modo menos pomposo: “coleção de todas as palavras ou somente de certa classe de palavras de uma língua, por ordem alfabética com a sua significação na mesma língua ou com a tradução em outra.”
O que pretende, pois, o eminente procurador, além dos seus quinze minutos de fama?
Implantar uma novilíngua como o Big Brother de Orwell?
E por que apenas em relação aos ciganos?
Por que não riscar também os significados pejorativos de “judeu”, “mulato”, “preto”, “baiano” “paraíba”, “retardado”, “idiota”, “capadócio”, “beócio”, “boçal”, e de todos os palavrões e expressões ofensivas?
Melhor ainda: vamos queimar todos os dicionários em praça pública e adotar a “Cartilha do Politicamente Correto” de um sósia intelectual do doutíssimo procurador — cujo nome tampouco merece menção — que entre outras asneiras sustenta que o uso da expressão “barbeiro” “no sentido de motorista inábil, obviamente é ofensiva ao profissional especializado em cortar cabelo e aparar barba”.
A propósito, o argumento central do procurador é pejorativo, ofensivo e preconceituoso em relação aos leitores do dicionário, que não saberiam distinguir ou entender que se trata de palavras ou expressões pejorativas, mesmo que isso conste expressamente da publicação.
Ah, que falta nos faz Sérgio Porto com seu Stanislaw Ponte Preta e o Febeapa (Festival de Besteiras que Assolam o País)!
À falta dele, que o nobilíssimo e iluminado procurador, à falta do que mais fazer, vá procurar pelo em ovo e chifre em cabeça de cavalo.
E se não achar, que vá então plantar batatas!
É muita falta do que fazer. O erário sendo subtraído em tenebrosas transações e tais criaturas “criminalizando” Lobato, Houaiss… Tsc.
– Prendi questa mano, zingaraaaaaa… Adorava essa música. Zingara (cigana) é uma palavra linda, não?
Beijocas!
A Toda Sociedade Brasileira.
Abaixo, manifesto nacional por melhoria da condição de um povo com o estigma doloroso de vidas – 800000 pessoas, 90% analfabetos, segundo o IBGE – relegadas ao abandono e à execração pública diária. Resolvemos apelar para a compaixão e a responsabilidade civil de todos os segmentos da sociedade, por puro cansaço de anos de tentativa inglória de amenizar a dor do despertencimento.
Estamos enviando-lhes este manifesto de pedido de socorro imediato ao Povo Cigano, para que todos se sensibilizem e interfiram junto aos órgãos competentes, para incluí-los nas políticas públicas de saúde, educação, erradicação da miséria e de comportamentos preconceituosos que causam tanto sofrimento a esses seres à margem da vida.
Nós, voluntários do Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente, APAC, Casa de Passagem, e na cidade de Viçosa, Minas Gerais, além do Forum Mundial Social – Mineiro e diversas outras entidades requeremos as medidas emergenciais de inclusão destes brasileiros, que já nascem massacrados pelo fardo vitalício da dor do aviltamento e segregação atávica em nossa sociedade, desabrigados que são da prática do macroprincípio da dignidade da pessoa humana, telhado da Constituição.
Cliquem no link abaixo, no artigo da SEPPIR, que confirma a situação deles.
http://noticias.r7.com/brasil/noticias/falta-de-politicas-publicas-para-ciganos-e-desafio-para-o-governo-20110524.html
Se nosso país tornou-se referência em crescimento econômico, certamente conseguirá sê-lo também em compaixão e acolhimento dessa causa universal.
DE GENTE ESTRANHA, em caravana.
Dolorosamente incômoda.
Ciganos. Descobrimos, perplexos, que suas famílias são excluídas dos programas de bolsa-família, saúde, educação, profilaxia dentária, vacinas etc. Sua existência se torna mais dramática, pois não conseguem os benefícios do governo por não terem endereço fixo. Segundo o IBGE, são cerca de 800.000, 90% analfabetos.
Há seis anos, resolvemos visitar um acampamento em Teixeiras, perto de Viçosa. E o que vimos foi estarrecedor: idosas, quase cegas, com catarata. Pais silenciosamente angustiados, esperando os filhos aprenderem a ler em curto espaço de tempo, até serem despejados da cidade. Levamos ao médico crianças que “tinham problema de cabeça”. E eram normais. Apenas sofriam um tipo diferente de bullyng, ignoradas, invisíveis que são. E descobrimos também que os homens, em sua maioria, jamais saem das barracas, onde ficam fazendo escambo, artesanato- e não entram em farmácias, supermercados, lojas, pois entendem que a sociedade incluída só não bate em mulheres e crianças. Vimos chefes de família com pressão altíssima e congelados pelo medo de deixarem os seus ao desamparo.
Vida itinerante. Numa bolha, impermeável. Forasteiros no próprio país. Dor sem volta. Passamos a visitar todos que aqui vem. E a conviver com o drama de mulheres grávidas, anêmicas e sem enxoval. Crianças analfabetas aos dez, onze anos.
Como pessoas reféns do analfabetismo, execradas publicamente todos os dias de suas vidas, amordaçadas pelo preconceito e com filhos para alimentar conseguirão lutar por algo? Vide a Pirâmide de Maslow. Quem tem que gritar somos nós. Para eles não sobra tempo de aprender o ofício da libertação, já que são compulsoriamente nômades – sempre partem porque os donos dos terrenos ou algum prefeito pressionado expede a ordem de saída.
A gente descobre, atordoada, que desde a primeira diáspora, quando passaram a viver à deriva, sempre expulsos, eles vivem numa cápsula do tempo. Conservam os mesmos hábitos daquela época, ou seja, sociedade patriarcal, vestuário, casamento prematuro, a prática de escambo e a mesma língua dos antepassados. Tudo isto PORQUE NÃO PARTICIPAM DAS TRANSFORMAÇÕES DA CIVILIZAÇÃO. Jamais tem acesso às benesses das pesquisas tecnológicas e científicas, aos programas governamentais de erradicação da miséria, às celebrações civis agregadoras ou sequer a proposta de ao menos um olhar de compaixão.
E, então, “civilizados” que somos, cristãos ou não, que gritamos por nossos direitos, que votamos a favor ou contra, que existimos, continuaremos a dormir em paz?
Agradecemos a todos que se sensibilizarem com a causa.
Respeitosamente,
Profª.Bernadete Lage Rocha
l.bernadete@yahoo.com.br
031-88853369
Voluntariado:
APAC – Viçosa-MG
Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente
Conselho de Segurança Alimentar
MULHERES PELA PAZ
PASTORAL NÔMADE
Prezada Professora Bernadete,
Não tenho absolutamente nada contra os ciganos, nem contra judeus, capadócios, beócios, gregos, troianos ou qualquer outra etnia.
Somos todos terráqueos, e como dizia o Álvaro de Campos de Pessoa, “A terra é semelhante e pequenina / E há só uma maneira de viver.”
Parabéns pelo seu trabalho e pela sua luta.
O procurador procureiro, que atua aí em Minas Gerais, em muito poderia contribuir com a causa dos ciganos, promovendo medidas judiciais consequentes para ampará-los e lhes assegurar os direitos de cidadania, em vez de se prestar ao ridículo de censurar dicionários e reescrever a língua portuguesa.
Por que vocês não o procuram para que ele faça algo realmente útil?
Triste onda de ignorância dos que se intitulam “politicamente corretos”.