Posts from março, 2012

A casinha amarela

 

 

 

  

            Morávamos na pequenina Pedregulho, quase na divisa com Minas Gerais, numa casinha amarela.

            A rua não tinha calçamento e uma das minhas tarefas cotidianas era, com uma longa mangueira, molhar a terra batida defronte de casa para baixar um pouco a poeira vermelha levantada pelo vento e pelos raros automóveis e caminhões que passavam. Aproveitava para me fingir de bombeiro.

            À falta de geladeira (uma raridade então), a manteiga fresca ficava mergulhada num pote d’água junto da talha de barro. O leite vinha todos os dias de um curral muito próximo, onde de vez em quando ia bebê-lo espumoso e quente, tirado na hora.

            Televisão nem pensar, a nossa janela para o mundo era o rádio, em que minha mãe ouvia novelas e programas de auditório.

            Havia racionamento de energia, ao longo de vários meses as luzes apagavam-se ao cair da noite e só voltavam lá pelas 21 horas, quando já era quase hora de eu ir para a cama. Não raro me atrasava jogando futebol e era obrigado a tomar banho frio ou esperar que a eletricidade voltasse. Enquanto não vinha, havia a lua e as estrelas, que não furavam nosso teto de telha-vã, mas ficávamos a vê-las da varanda.

            Meu pai, com seus trinta e poucos anos (hoje, sou bem mais velho do que aquele moço), era ensimesmado, mas também novidadeiro.

            Ao regressar de uma viagem a São Paulo, trouxe um aparelho estranho, com grandes carretéis de fita, microfone e outros apetrechos. Era um “gravador”, como logo nos explicou e passou a demonstrar gravando-nos as vozes e reproduzindo em seguida.

            O gravador Phillips tornou-se a grande atração familiar. Minha mãe era musical e sempre a ouvia cantarolar afinada, mas meu pai, com a surpreendente e bela voz de barítono grave, foi uma revelação ao cantar e gravar em dupla com a mulher velhas marchinhas de carnaval (“Se você fosse sincera /Oh, oh, oh, Aurora”) e algumas das lindas canções de Caymmi que passei a conhecer e amar: “É doce morrer no mar / Nas ondas verdes do mar”.

            Naqueles dias ainda, graças ao prodigioso gravador, a poesia começou a se entranhar em mim, enquanto ouvia repetidamente meu pai dizer poemas de Bandeira, Drummond, Vicente de Carvalho (“Só a leve esperança, em toda vida, / Disfarça a pena de viver, mais nada;”) e alguns dele mesmo.        

            Além dessas surpresas, meu pai gostava de me provocar com planos fantasiosos que fazia para mim, desencadeando-me aflições e receios que ele talvez não percebesse. Só muito mais tarde — e ainda bem que não foi tarde — compreendi que era aquele o seu jeito transverso (daí também seus versos) de demonstrar carinho, interesse e amor por mim, já que sempre teve grande dificuldade de expressar seus sentimentos com beijos, abraços, afagos e elogios  (“manifestações epidérmicas”, como tantas vezes definiu).

            Anunciava, por exemplo, com terrificante assiduidade, que ia me internar no Caraça, exibindo-me fotos e gravuras do velho mosteiro em que o pobre menino ficaria trancafiado, aprendendo latim, grego e filosofia com os padres.

            Vivia a repetir também que falaria com o pároco da cidade para me aceitar como coroinha, e essa ideia até que não me desagradava de todo, ao ver os rapazinhos, mais velhos do que eu, com seus vistosos paramentos ajudando a rezar a missa de domingo.

            Um dia, mostrou-me uma página de jornal (clique para ver a reprodução no acervo da Folha de S. Paulo) com a figura de um menino mais ou menos da minha idade que produtores da célebre Vera Cruz buscavam para interpretar um garoto que se tornaria padre.

            Não bastassem as ladainhas do Caraça e de me fazer coroinha, passei a ouvi-lo dizer que ia enviar uma foto minha e me inscrever para o papel.

            — Já pensou que maravilha participar de um filme? Você pode se tornar ator e fazer carreira no cinema e no teatro! Não seria uma coisa ótima?

            Até podia ser, mas eu queria mesmo era ficar por ali, no aconchego do meu pequeno vasto mundo, e andei angustiado por largo período com a íntima certeza de que seria o escolhido para o filme (segundo assegurava meu pai) e teria de partir para a vida afora.

            Foi há muito tempo…

            O filme, a que assisti alguns anos depois (e não é que me achei algo parecido com o menino ator?), era “A Primeira Missa”, última realização de Lima Barreto, que extraiu o roteiro do conto ‘‘Nhá Colaquinha Cheia de Graça”, de Nair Lacerda. Eis a sinopse que colhi nesse prodígio de agora, a internet:

 

“Na data da primeira missa do Padre Bento, a mãe, Nhá Coloquinha, apelido de D. Escolástica, relembra do passado do filho na cidade de Remanso. Quando criança, ele entregava a roupa que a mãe lavava e passava. A amizade de Mestre Zuza, velho amigo da família e sábio local. As injustiças sofridas: no Circo Teatro Santa Terezinha, quando vendia balas, Bentinho é expulso; na escola, ao ajudar um colega quase cego, ele é expulso pela professora. Ao pedir a ajuda do Mestre Zuza contra a expulsão, Bentinho descobre a vocação sacerdotal. O velho Zuza, apesar de ateu e anticlerical, incentiva a vocação. A entrada no seminário com a ajuda do Padre José, o pároco de Remanso. Durante a sua estada no seminário, acontecem a crise de 1929 e a Revolução de 1930. A ordenação do padre Bentinho e a sua partida para Louvain, Bélgica, para doutorar-se em teologia. O nazismo e a II Guerra Mundial, na Europa, forçam o Padre a voltar ao Brasil. Em Remanso, ele pretende rezar a sua primeira missa. O último sermão do Padre José, agora substituído pelo Padre Bento. O filho prostra-se diante da mãe, que tem os olhos agradecidos à Virgem Maria.”

 

            Segundo consta ainda, a Igreja Católica foi uma das patrocinadoras do filme, que, além de indicado para representar o Brasil no Festival de Cannes, recebeu por aqui diversos prêmios, entre os quais os de melhor roteiro, edição, cenografia, ator (Dionísio de Azevedo, o “Mestre Zuza”) e de revelação (José Marianno Filho, o menino Bentinho).

            Sem uma Capitu que à época me salvasse (ou danasse), quem sabe meu destino depois de coroinha e do Caraça tivesse sido o sacerdócio? Ou o estrelato como talentoso ator?

            As madeleines desse jorro de lembranças  foram a comovente crônica de José do Carmo publicada no Blog da Selma Barcellos e o comercial que logo após vi, produzido pela Igreja Católica na Espanha, oferecendo emprego fixo para os jovens que quiserem ser padre, aos quais promete “uma vida apaixonante”. Quanto à remuneração, a propaganda exime-se de ser enganosa: “não te prometo luxo, mas tua riqueza será eterna”.

            Fosse eu menino, lá viria meu pai a me mandar para as terras de Espanha.

 

 

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