Posts from abril, 2012

A resposta

 

 

 

          A Bell leu.

          E respondeu.

 

 

Olympia

 

Quando se tem dez anos em 1980 a imagem que temos do nosso pai trabalhando é de um homem de costas, de terno, batendo compulsivamente em uma máquina. O barulho das teclas ecoava em um escritório grande, com cheiro de loção pós barba, papel carbono e mimeógrafo. Aquilo para mim era sinônimo de sucesso.

Datilografar com todos os dedos era sinônimo de inteligência.

Ter uma máquina de escrever era sinônimo de poder.

Aos dez anos eu já queria tudo isso. Mas não sabia datilografar, muito menos escrever. É nesse momento que você puxa o paletó do seu pai e faz birra até ele deixar você usar a máquina. É nesse momento que o seu pai vira professor.

“Vai Isabella, Q,W,E,R,T… Sem olhar! Olho no papel. Nunca olhe para as teclas!”

Eu ficava incansavelmente repetindo os exercícios que ele me ensinava. Folha após folha, aqueles emaranhados de letras que nada significavam para os outros, tinham muito importância para mim. Era eu quem estava no comando de uma máquina, imitando o que o meu pai fazia.

Não é novidade que admiro meu pai. Muito menos que sempre quis ser ele. Aprender a manusear a velha máquina portátil era apenas uma desculpa para me sentir mais próxima dele, meio inteligente como ele e sem dúvida, mais poderosa que as minhas amigas. Nunca tive dificuldade de digitar com todos os dedos. Assim como meu pai, internamente zombo de quem digita “catando milho”.

Após aprender a digitar, chegou uma nova máquina em casa. Papai colocou na sala um 486 PCXT com tela verde. Nele, fiz papel de carta, escrevi homenagens a parentes e comecei a entrar no mundo da internet, que hoje é meu ganha-pão. De lá pra cá, vieram muitas máquinas. Mas nenhuma me ensinou tanto quanto a Olympia.

Vinte anos depois, voltei ao escritório do meu pai. O ambiente ainda cheira loção pós barba mas nem é mais tão grande. Tanto que para arrumar espaço, algumas coisas foram deixadas de lado, como as duas antigas máquinas: a IBM elétrica dele e a Olympia portátil (que eu já julgava minha).

Fiquei triste ao vê-la encostada no chão, cheia de umidade. Ao abrir a caixa, todas essas lembranças vieram a tona. Decidi libertá-la. Mais uma vez, puxei o paletó do meu pai e pedi a máquina. Mais uma vez, ele atendeu meu pedido. Carreguei a máquina e todo o seu peso para São Paulo, restauramos. Ao invés do verde discreto do papai, ganhou um fôlego com meu amarelão. Agora ela está aqui, no meio da sala, olhando para mim junto com esse texto, esses sentimentos e uma saudade danada de quando eu achava que só precisava digitar algumas letras para ter um bom texto.

 

 

 

PS: (Este texto foi escrito no meu iMAC após ter lido o emocionante texto do meu pai sobre a nossa Olympia. Pensei em escrevê-lo nela. Mas ainda tenho medo de errar).

Bell Gama (abril/2012)

 

 

A outra

 

 

 

               Ela era mais velha do que eu, então nos meus verdes 19 anos, quando se tornou minha.

               Estava ali, entre outras do mesmo tipo, mas era de longe a mais bonita e bem conservada de todas.

               No leilão que se seguiu, dei-lhe um lance. Ninguém ofereceu mais. E ela ficou comigo.

               Conclui a faculdade, advoguei brevemente, ingressei no Ministério Público de São Paulo, fiz duas pós-graduações, ela sempre me acompanhando, auxiliando nos estudos e no trabalho.

               Namorei, noivei, casei, a primeira filha nasceu, e continuamos inseparáveis.

               Quantas noites varamos juntos, quantos cafés e alvoreceres, ela por vezes assentada no meu colo (como Clarice), a me amparar nos contos e poemas claudicantes.

               Logo após o nascimento da segunda filha, um amigo que viria a batizá-la e se tornar meu compadre, apresentou-me outra, falou-me dos seus dotes, da seu beleza, do seu desempenho, e de tanto insistir conseguiu que eu a trocasse por uma novinha, o que me custou os olhos da cara.

               Não lhe fui ingrato, porém, nem a deixei ao léu.

               Guardei zelosamente a minha querida Olympia portátil, e passei a usar a novíssima e moderna IBM elétrica, que possibilitava, entre outras maravilhas, apagar erros e mudar as esferas, alterando as letras para negrito, itálico e outras fontes!

               Anos depois, aquela minha segunda filha, já meninota, resolveu aprender datilografia e voltou a usá-la para se exercitar.

               Há pouco mais de um mês, a mesma filha encontrou-a guardada num canto do meu pequeno escritório de casa, ainda em perfeito estado.

               Pediu-me, dizendo que era uma lembrança da infância e que iria colocá-la em destaque na prateleira da sala do seu apartamento.

               Como negar-lhe?

               Só então nos separamos. Lá se foi ela para São Paulo, nas boas mãos da Bell.

               Passou por uma plástica (embora não precisasse) e ganhou nova cor (apesar dos protestos do velho restaurador da Praça da Sé, que preferia manter a original).

               Ela era verde, como meus verdes 19 anos de quando nos conhecemos.

               Agora, rebrilha amarela na prateleira da minha Isabella, como o sol do meu amor por ela.

 

 

 

 

 

Maria Fumaça

 

 

 

          Absolutamente adorável para mim essa composição dos irmãos Kleiton e Kledir, com a qual se tornaram conhecidos ao participar, com enorme sucesso, do Festival de Música da TV Tupi em 1980, em um dos últimos momentos da histórica emissora, que faliu naquele mesmo ano.

          Os antigos trens de ferro e suas locomotivas Maria Fumaça são uma das mais queridas lembranças da minha infância.

          As venturosas viagens até São Paulo, no carro leito e com uma aflitiva baldeação, malas passadas às pressas pela janela, meu pai me segurando firme pela mão para não me perder, a correria e o alívio quando embarcávamos no novo comboio.

          Depois de casado, fiz ainda uma memorável e derradeira viagem noturna no célebre “Trem de Prata”, de São Paulo para o Rio de Janeiro.

          Como um país com a nossa dimensão territorial pôde abandonar tão irresponsavelmente as ferrovias, trocando-as pelas poluentes e mortais estradas de rodagem?

 

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=Yd51SuxyA1w]

 

 

 

As águas vão rolar

 

 

 

  Arte de Antonio Lucena (Fonte: Blog do Noblat)

 

 

 

            Brasília completou 52 anos no último sábado, dia 21.

            Em seu artigo quinzenal na revista Veja da semana passada (A era da inocênia), o sempre excelente Roberto Pompeu de Toledo narra a visita que em 1958 a poeta americana Elizabeth Bishop fez à cidade que nascia, integrando uma comitiva organizada pelo Itamaraty, da qual também participou Aldous Huxley.

            Bishop ficou impressionada com a chamada Cidade Livre, toda de madeira como um cenário de faroeste, onde moravam as pessoas que trabalhavam na construção de Brasília.

            A Cidade Livre tinha então 45.000 habitantes e possuía, além das moradias, mercados, bares, farmácias, lojas e até um cinema, de propriedade de uma condessa polonesa, jovem e bonita, refugiada no país.

            A condessa Tarnowska, que serviu de cicerone e anfitriã na Cidade Livre, contou aos visitantes a seguinte história que ocorrera no seu cinema, pouco tempo antes, quando estava em cartaz o filme E Deus Criou a Mulher, com Brigitte Bardot:

 

“A projeção caminhava normalmente, até que, na mais esperada cena, no momento mesmo em que Bardot desfazia o primeiro botão da roupa, parava. As luzes então se acendiam e o projetista avisava: “Queiram as senhoras e senhoritas, por favor, deixar a sala.” As mulheres saíam e aglomeravam-se lá fora, na rua de terra, sem calçada. A projeção continuava só para os homens. Terminada a cena de nudez, parava de novo, e as senhoras e senhoritas eram avisadas de que estavam liberadas para voltar. Pudor era o que não faltava, na Brasília daquele tempo.”

 

            Desde então, muitas águas rolaram, e ainda vão rolar…

 

 

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=H5YFfpj2wQU]

 

 

 

Dentro da menina, ainda dança

                                                                                                                                                                                                                                                                                                               .

                                                                                                                                                                                                                                                                                                               .

                                                                                                                                                                                                                                                                                                               .

                              Estou em São Paulo.

                              O porquê está abaixo.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                 .

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                  .

Dentro da menina, ainda dança

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          .

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          .

Hoje meu pai me ligou e me deu uma vontade estúpida de chorar.

Ele me disse que havia comprado passagens para vir a São Paulo assistir minha prova de corrida. Será a primeira provação de uma mudança radical que decidi fazer em 2012. Desde o dia 2 de janeiro estou de dieta, mudei meus hábitos alimentares e minha vida toda como nunca fiz. Entre as mudanças, comecei a correr. Passo após passo decidi que precisaria de uma prova para me dar um incentivo e me inscrevi. Domingo, 7h, estarei na Mizuno Night Run para encarar 4km de concreto.

Não é a prova que me deu vontade de chorar. Sei que não estarei nem entre as 1000 primeiras a chegar. Meu objetivo é cumprir o desafio  correndo o máximo possivel. Na hora que ele falou que viria me veio a cabeça aquela tarde no Colégio Marista. Estava disputando um campeonato de basquete. Sempre fiz de tudo: basquete, handball, voley, ginástica olímpica, capoeira… abraçava qualquer coisa que me aparecesse na mesma velocidade que eu abandonava depois. Como sempre fiz muitas coisas, meus pais trabalhavam e eu também não era muito de falar, poucas vezes eles conseguiram estar presente. Também nunca fiz nada de excepcional, não era atleta olímpica, federada, nada disso. Era coisa de criança na escola. Mas como qualquer criança tudo é muito grande. Jemar é Olimpíadas, Jogos da Primavera é Copa do Mundo. E um dia aconteceu. Estava na quadra, no meio do jogo, olhei para a arquibancada e meu pai estava sentado lá. Foi escondido, entrou sem eu ver. Ao ser descoberto, deu um tchauzinho feliz da vida, no melhor estilo “vai filhona!” Nesse momento o jogo acabou. Não fiz nada, sequer um ponto. Nunca joguei tão mal.

Durante os meus treinos de corrida, chamei meu pai para correr junto. Ele até se esforçou segurando suas largas passadas para tentar me acompanhar. Comprou o frequencímetro que eu mandei só pra se mostrar empolgado para mim. Nunca meu coração foi tão na boca (182 bpm). Tentei também treinar com a minha irmã mais velha. Ela, que nunca correu na vida, deu duas voltas a mais em mim. E eu, de novo, com o coração na boca (176 bpm).

E você, que está lendo o meu texto e minha terapeuta que provavelmente ouvirá essa história amanhã, dirá que eu cresci, que não sou mais a mesma menina da quadra de basquete, que minha idade mudou assim como o tamanho da minha bunda, meus cabelos brancos e minha experiência de vida, que devemos fazer as coisas por si …. Conta outra!

A gente sempre continua fazendo as coisas para os nossos pais, querendo que o boletim vá para a porta da geladeira, que eles nos achem bonita, que aprovem nosso marido, torcendo para que eles amem os netos e esperando o abraço na linha de chegada. Mesmo que se finja que não.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                            .

Bell Gama

Abril 2012

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                .

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                .

PS: Ao final desse texto, impossível não lembrar da minha sobrinha Manuela que aos dois anos faz acrobacias e diz: “Papai Shel, mamã, olha eu!”

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                 .

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                       .

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          .

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           .

Atualização: Bell mandou muito bem!!! Completou a prova com seu melhor tempo até agora!!! E eu a esperava na linha de chegada. Vai filhona!!!

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         .

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         .

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         .

No tempo em que o Bianchini desfilava para a Ducal

 

 

 

 

 

            Depois de me perder pelo caminho (como costumo fazer sempre), cheguei ao sítio por volta de meio-dia e meia para o churrasquinho e o samba combinados.

            Pensava que já encontraria por lá todos os convivas, mas não. Estavam apenas o Brenno e um senhor grisalho, barriguinha cervejeira, cara boa, às voltas com a churrasqueira.

            ― Gama, esse é o meu amigo Luís, que mora aqui perto e sempre vem dar uma mãozinha pra gente, apresentou-me Brenno, o anfitrião.

            Muito prazer… Muito prazer… nos dissemos, e ele, todo cordial:

            ― Quer um uisquinho para começar? Enquanto já ia preparando e me servindo a dose generosa. 

            Em seguida, voltou à crucial operação de acendimento da churrasqueira e últimos retoques nas carnes.

            Brenno e eu ficamos ao redor, bebendo e pondo a conversa em dia.

            ― Ô Gama, pena você não ter vindo no dia em que o Virgínio estava por aqui. Cara, o Virgínio continua o mesmo, com aquela mania de discordar de tudo e ditar regras. Agora então que é dono de um bufê lá em Curitiba, ninguém aguenta. Foi muito bom.

            ― Pois é, estava em São Paulo e o meu voo de volta, pra variar, atrasou. Cheguei muito tarde e muito cansado. Não deu para vir.

            Você se lembra do Bianchini, Gama?

            Claro que lembro, trabalhava na Ducal com o Virgínio. Cara legal. Gostava dele. Chegou a fazer parte da nossa turma por uns tempos e a jogar futebol com gente…

            Isso! Ele apareceu por aqui com o Virgínio.

            É mesmo? Nossa, faz um tempão que não vejo. Como ele está? 

            Tá bem, tá bem… Só tem uma coisa muito chata que aconteceu com ele…

            O quê? Indaguei, pensando em algum problema de saúde ou familiar.

            Chato, cara! Muito chato… O Bianchini, depois de velho, virou bicha. Bichona louca!

            Ah, não me diga isso… Não acredito! Você tá me gozando… Ele era boa pinta, pegador… Andou até desfilando e fazendo comercial para a Ducal, lembra?

            É mesmo! Vai ver então que desde aquele tempo ele jogava no outro time, sem que a gente soubesse…

            A conversa se desvia, mas depois de alguns minutos Brenno volta ao assunto:

            E o Bianchini, hem? Bichona, quem diria! Mas você se lembra bem dele, Gama?

            Pera aí, conheço esse jeito inzoneiro, esse olhar dissimulado do meu velho parceiro!

            Olho com mais atenção para o tal amigo Luís, sempre de lado, ouvindo a conversa, mas se fazendo de interessado na churrasqueira e no preparo das carnes. 

            Tanto me lembro que essa bicha aí, fingindo de churrasqueiro, é o Bianchini. (Imagine se eu não gostasse dele e me pusesse a desancá-lo…)

            Gargalhadas, abraços, outra dose para comemorar.

            E pelo resto do dia foi só recordar, com muitas outras doses e alguns sambas para acompanhar.

 

P.S.      O Bianchini não virou bicha. Pelo menos foi o que ele me disse…

 

 

 [youtube=http://www.youtube.com/watch?v=heWcW8xJs5U&feature=youtu.be]

 

 

 

À Espera dos Banqueiros

 

 

 

 

  

“Pois os deuses percebem as coisas futuras; os homens aquelas que ocorrem; e os sábios, as que se aproximam.”

(Filóstrato, “Vida de Apolônio de Tiana”, VIII, 7)

 

 

 

(Com perdão de Kaváfis e seu magnífico À Espera dos Bárbaros)

                                              

 

 

                                             Aonde vai o velho boticário

                                             com seu precário passo?

                                             Por que não fica a aviar as receitas

                                             que os médicos lhe passam?

 

                                             É que ele está jubilado

                                            e já não havia receita para viver.

 

                                             Por que ele se dirige ao Parlamento?

                                             Os senadores já não legislaram

                                             o que lhes mandaram legislar?

 

                                            Que outras leis haverão de fazer?

                                             Os banqueiros que chegam as farão.

 

                                             Os nossos governantes contam saldar

                                             os banqueiros. Têm pronto para lhes dar

                                             as nossas riquezas do passado,

                                             filosofia, teatro, poesia, desporto,

                                             todos os barcos fundeados no porto.

 

                                             É que tais coisas deslumbram

                                             os banqueiros, mas não os satisfazem.

 

                                             Por que o velho boticário alvejou

                                             a branca fronte, defronte daquela árvore?

 

                                             É que ele não quer deixar dívidas

                                             para que os filhos paguem aos banqueiros.

                                             Prefere ter um digno fim antes

                                             de ir procurar comida no lixo.

 

                                             Por que a ágora agora

                                             encheu-se de flores, velas e bilhetes?

                                             Por que tão rápido são todos reprimidos

                                             e obrigados a voltar para a casa?

                                             (aqueles que ainda têm casa).

 

                                             É que os banqueiros chegaram

                                             e lhes aborrecem arengas, pendências.

 

                                             Sem os banqueiros o que seria de nós?

                                             Ah! eles sempre têm uma solução

                                             (que lhes cai do céu)

                                             e vão nos deixar o Cavalo de Troia.

                                             como laurel da nossa infinda glória.

 

                           

 

Leia aqui sobre o suicídio do velho farmacêutico grego

 

 

Odiar o odiável, amar o amável

 

 

 

 

 

            Ótima entrevista feita por Paulo Werneck com Caetano Veloso, publicada na edição deste domingo da Folha de S. Paulo (Caetano Veloso e os elegantes uspianos, Ilustríssima, 4/5).

            Caetano sempre rende boas entrevistas, mas a maturidade (completa 70 anos em agosto deste ano) lhe fez muito bem: “Gosto do atrito. É a base do sexo. Mas não rejeito o antagonismo. Sou nitidamente contra o Brasil ter devolvido os atletas cubanos. Sou nitidamente contra o manifesto dos militares reformados. Sou nitidamente contra Luta ter apoiado a eleição de Ahmadinejad antes de o próprio Irá decidir se as eleições tinham sido fraudadas ou não”, diz ele no final da matéria.

            Noutra resposta, anota: “Toda cartilha ideológica, pode ser — e frequentemente é — obstáculo à inteligência” (essa vírgula depois de “ideológica”, que me parece equivocada, é da edição).

            Identifico-me muito com esse pensamento. Não abro mão de pensar livremente (ou tão livremente quanto consiga), e hoje sou radical apenas no repúdio a todo e qualquer tipo de tirania e ditadura, seja de direita, de esquerda, de centro, cristã, islâmica, das elites ou do proletariado.

            Grande parte da entrevista, e o seu próprio móvel, é o recente ensaio de Roberto Schwarz (Verdade Tropical: Um percurso do Nosso Tempo) sobre o livro de Caetano (Verdade Tropical), quinze anos depois da publicação deste.

Schwarz, com sua assumida condição de crítico marxista, é exemplo típico do engessamento ideológico a contaminar tudo o que escreve e pensa, como é o caso dos seus ensaios e artigos sobre Machado de Assis, em especial do incensado Um Mestre na Periferia do Capitalismo (que não deixa de ser um bom livro).

            Eis um trecho significativo da entrevista de Caetano:

 

“Schwarz critica o “amor aos homens da ditadura” expresso por Gil ao tomar ayahuasca e comenta os seus elogios à letra de “Aquele Abraço”: “A lição aplicada pelos militares havia surtido efeito”. Como vê essa avaliação severa?”

“Esse parágrafo de Schwarz é cruel e tolo. A prisão me pôs mais profundamente em inimizade com o projeto dos militares de direita que tomaram o Brasil. A descrição dos solavancos por que passamos não poderia ser desinfetada para agradar aos revolucionários de gabinete. Sou muito franco e apaixonado pela clareza e pela luz.

Gosto mais do esclarecimento do que da Dialética do Esclarecimento, que tanto obscurece. (Aliás, desconfio dessa escolha da palavra “esclarecimento” em lugar de “Iluminismo”.)

A lição aplicada pelos militares surtiu efeito em mim: me fez mais realista, mais conhecedor dos pesos concretos da vida. Foi sob a ditadura, sobretudo na prisão, que aprendi a odiar o odiável em nossa sociedade.”

 

            Odiar o odiável, e também amar o amável, pois afinal, como dizem os versos de Chico Buarque na maravilhosa Futuros Amantes, “amores serão sempre amáveis”.

 

 

 

A língua do pê

 

 

 

 

 

               Os cabelos eram muito pretos e lisos, quase sempre presos com uma trança ou um rabo de cavalo.

               As pernas, muito compridas e torneadas, como de moça feita, mas disso ele só veio saber muito tempo depois, quando ela já devia ser moça.

               O que o empolgava naqueles tempos era como as pernas corriam velozes (até mais do que as dele), subiam nas árvores, plantavam bananeira, rodavam estrelas, pulavam corda, pedalavam a bicicleta.

               Os olhos, o nariz e a boca eram muito grandes, engraçados, mas só muito tempo depois ele veio saber que essa era a graça.

               Ela era ótima no pega-pega, além de correr muito, dava uns dribles de entortar, mas no esconde-esconde se escondia sempre nos mesmos lugares, que ele fingia não achar, só para que a brincadeira continuasse.

               “Pe-vo-pe-cê-pe-quer-pe-ser-pe-mi-pe-nha-pe-na-pe-mo-pe-ra-pe-da?”

               Perguntou-lhe um dia, na língua secreta.

               “Pe-só-pe-se-pe-vo-pe-cê-pe-me-pe-al-pe-can-pe-çar.”

               Ela deu uma risada, saiu correndo e antes que ele a pegasse entrou em casa gritando: “Pique!”

               Então ela se mudou daquela casa, e se escondeu tão bem que ele nunca mais a encontrou.

 

 

Millorianas

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

“O mundo tem muitos idiotas, mas, felizmente, estão todos nas outras mesas”

(Millôr Fernandes, em conversa com Tom Jobim no bar Veloso. Ipanema, 1962)