Posts from abril, 2012

Presente de Páscoa

 

 

 

 

  

               Jose Costa, ou Zsoze Kósta, protagonista do romance Budapeste de Chico Buarque, afirma que o húngaro é a “única língua do mundo que, segundo as más línguas, o diabo respeita”.

               Para nós, latinos, a língua polonesa com sua sopa de letrinhas não fica atrás na dificuldade.

               Se bem que talvez muito em breve o português escrito abandone as inúteis vogais, a persistir o modo de redigir do internetês. Ainda hoje, na sua crônica na Folha de S. Paulo, Tatibitatês, Ruy Castro (que, felizmente, parece recuperado sem sequelas da crise convulsiva), conta sobre a intrigante mensagem que recebeu de uma amiga: “Pq vc tb ñ vai la em ksa nesse fds comer krambola?”. Diz, a final, que entendeu tudo, menos “krambola”.

               Se a língua é uma barreira, a poesia pode ser outra, embora alguns gostem de poesia.

               Nenhum espanto, pois, de que Wisława Szymborska (segundo a excelente tradutora Regina Przybycien pronuncia-se mais ou menos Vissuáva Chembórska) seja pouco conhecida no Brasil, mesmo tendo recebido o prêmio Nobel de Literatura em 1996.

               Até então havia lido alguns poucos poemas dela, que muito me impressionaram, mas faltava-me uma visão geral da sua obra, que não é extensa. Falecida em fevereiro deste ano, aos 88 anos, Wisława Szymborska, ainda segundo Regina Przybycien, sempre foi muito discreta, zelosa de sua vida privada, e nunca se dispôs a desempenhar “[…] o papel de celebridade literária, dessas que aparecem na televisão e opinam sobre os mais diversos assuntos. Também não gosta de dar entrevistas. Uma vez declarou: Minha vida está nos meus versos”.

               Foi, portanto, com doce e expectante estremecimento que tomei nas mãos o pequeno livro de poemas de Wisława Szymborska, ainda mais porque a fotografia da capa — ela por trás da fumaça do cigarro que tem entre os dedos, olhos semicerrados, a xícara de chá ou café defronte — lembrou-me de imediato minha mãe, que também se foi, levada pelo cigarro.

               A começar pelo precioso prefácio da tradutora Regina Przybycien, o livrinho tem me encantado com a seleta de 44 poemas escritos por Wisława Szymborska de 1957 a 2002.

               Um dos poemas mais conhecidos dela é Alguns gostam de poesia, e com esses divido parte do meu encantamento por meio dos três poemas que se seguem (muito difícil escolher entre tantas maravilhas).

               É o meu presente de Páscoa, surrupiado da poeta. Mas quem furta (ou recepta) poemas, tem cem anos de perdão.

 

 

Alguns gostam de poesia

 

Alguns —

ou seja nem todos.

Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria.

Sem contar a escola onde é obrigatório

e os próprios poetas

seriam talvez uns dois em mil.

 

Gostam —

mas também se gosta de canja de galinha,

gosta-se de galanteios e da cor azul,

gosta-se de um xale velho,

gosta-se de fazer o que se tem vontade

gosta-se de afagar um cão.

 

De poesia —

mas o que é isso, poesia.

Muita resposta vaga

já foi dada a essa pergunta.

Pois eu não sei e não sei e me agarro a isso

como a uma tábua de salvação.

 

 

Escrevendo um currículo

 

O que é preciso?

É preciso fazer um requerimento

e ao requerimento anexar um currículo.

 

O currículo tem que ser curto

mesmo que a vida seja longa.

 

Obrigatória a concisão e seleção dos fatos.

Trocam-se as paisagens pelos endereços

e a memória vacilante pelas datas imóveis.

 

De todos os amores basta o casamento,

e dos filhos só os nascidos.

 

Melhor quem te conhece do que o teu conhecido.

Viagens só se for para fora.

Associações a quê, mas sem por quê.

Distinções sem a razão.

 

Escreva como se nunca falasse consigo

e se mantivesse à distância.

 

Passe ao largo de cães, gatos e pássaros,

de trastes empoeirados, amigos e sonhos.

 

Antes o preço que o valor

e o título que o conteúdo.

Antes o número do sapato que aonde vai,

esse por quem você se passa.

 

Acrescente uma foto com a orelha de fora.

O que conta é o seu formato, não o que se ouve.

O que se ouve?

O matraquear das máquinas picotando papel.

 

 

A alegria da escrita

  

Para onde corre essa corça escrita pelo bosque escrito?

Vai beber da água escrita

que lhe copia o focinho como papel-carbono?

Por que ergue a cabeça, será que ouve algo?

Apoiada sobre as quatro patas emprestadas da verdade

sob meus dedos apura o ouvido.

Silêncio — também essa palavra ressoa pelo papel

e afasta

os ramos que a palavra “bosque” originou.

 

Na folha branca se aprontam para o salto

as letras que podem se alojar mal

as frases acossantes,

perante as quais não haverá saída.

 

Numa gota de tinta há um bom estoque

de caçadores de olho semicerrado

prontos a correr pena abaixo,

rodear a corça, preparar o tiro.

 

Esquecem-se de que isso não é a vida.

Outras leis, preto no branco aqui vigoram.

Um pestanejar vai durar quanto eu quiser,

e se deixar dividir em pequenas eternidades

cheias de balas suspensas no voo.

 

Para sempre se eu assim dispuser nada aqui acontece.

Sem meu querer nem uma folha cai

nem um caniço se curva sob o ponto final de um casco.

 

Existe então um mundo assim

sobre o qual exerço um destino independente?

Um tempo que enlaço com correntes de signos?

Uma existência perene por meu comando?

 

A alegria da escrita.

O poder de preservar.

A vingança da mão mortal.