Meu querido e sempre lembrado pai
Depois de tanto tempo sem aparecer por aqui, ao comentar — quase numa tréplica — o que Bell e eu escrevemos sobre a nossa “Olympia”, você disse que seríamos muito novos para lembrar, para escrever nossas memórias, não sem indagar em seguida qual a idade para lembrar-se, e ainda nos brindar no final com mais um belíssimo poema.
Novo, eu? Só mesmo na lembrança do pai que ainda vê o menino que fui e busco não esquecer dentro de mim.
Você, talvez, seja a testemunha maior de que sempre fui um memorioso. Tenho lembranças da minha mais longínqua infância que muita vez me assustam de tão vívidas.
Mas as nossas lembranças, na realidade, não são nossas, ou não serão apenas nossas. São a soma das nossas lembranças e daqueles com quem convivemos, até mesmo do que apenas ouvimos dizer. Por isso me parece exemplar o título, “Minhas memórias dos outros”, do livro de Rodrigo Octavio, que ainda muito jovem participou da fundação da Academia Brasileira de Letras, e mais tarde pugnou com Ruy Barbosa (e o venceu) na célebre “Questão Lambary” .
As suas memórias relatadas no comentário são, portanto, minhas também: a máquina de escrever “Alpina” (mais nova do que a “Olympia” que, com seu incentivo, arrematei num leilão no fórum quando trabalhava no cartório, lembra-se?); as diatribes e os pontos e vírgulas do Coronel Asdrúbal; os cigarros de palha que ele laboriosamente fazia; as cópias de papel carbono (ainda tenho algumas folhas); as máquinas de escrever elétricas, os primeiros computadores…
Há algum tempo comecei a escrever uma série de pequenas histórias sobre homens que se dedicavam a ofícios que já não existem ou estão prestes a se extinguir, e um deles era exatamente um homem que consertava máquinas de escrever.
Reproduzo abaixo o texto (que já foi postado neste blog) em homenagem a essas tantas memórias, nossas e dos outros.
O homem que consertava máquinas de escrever
(da série “Homens que…”)
Os amigos adoravam provocá-lo. Ele, que não tinha nada de bobo, bem sabia disso, mas não fugia do confronto e até sentia prazer no enfrentamento.
Nas ocasiões em que a conversa arrefecia, porque já tinham falado de quase tudo, política, mulheres, futebol, velhas histórias sempre repetidas, mas nunca iguais, e até das últimas fofocas, alguém lançava o desafio:
― Qual foi o maior invento de todos os tempos?
E cada um por vez ia dando sua opinião, que variava ao sabor da imaginação do momento.
― O balão, que levou ao avião!
― A eletricidade!
― Fico entre a roda e a alavanca, sem as quais ainda estaríamos vivendo nas cavernas.
― A televisão!
― A fotografia!
― A mulher!
Deixavam ele sempre por último, porque já sabiam o que diria:
— O maior invento de todos os tempos foi a prensa de imprimir de Gutenberg, no século XV, que revolucionou o mundo e universalizou o conhecimento, com impressão em escala de livros e jornais, antes restrita à produção dos monges copistas e só acessível por alguns poucos padres e fidalgos. Embora o primeiro livro imprimido por Gutenberg tenha sido a Bíblia, a nova arte provocou temores de toda ordem, pois, para muitos, o livro saído de um prelo, e não da tinta de um monge escriba, iria se tornar uma força subversiva, capaz de abalar a fé e de reduzir a autoridade da Igreja.
E acrescentava:
― Mas depois da prensa, a maior invenção, sem dúvida, foi a máquina de escrever, que por sua vez democratizou o tipógrafo de Gutenberg, permitindo que empresas e indivíduos imprimissem seus escritos diretamente e a baixo custo. Além disso, contribuiu para a emancipação feminina, proporcionando às mulheres um mercado de trabalho que não tinham antes, ao demonstrarem que, para elas, datilografar era tão fácil quanto costurar. E o que dizer da relação entre os escritores e suas máquinas, que se tornaram companheiros e cúmplices?
E daí não parava mais de discorrer sobre as maravilhas das máquinas de escrever, de que era profundo conhecedor e verdadeiro mestre em conservá-las e consertá-las.
Embora seja difícil precisar quando a máquina de escrever teria sido inventada e começou a ser fabricada, sabia grandes histórias a respeito. Duas delas o fascinavam especialmente, e não se cansava de contá-las. A do nobre italiano Pellegrino Turri, que por volta de 1808 fabricou um artefato para que uma amiga, cega, pudesse se corresponder com ele. A máquina já não existe, mas algumas das cartas, sim. E a máquina brasileira inventada pelo padre Francisco Azevedo, apresentada na feira Internacional de Recife em 1861, gerando grande interesse, mas que nunca chegou a ser fabricada em série e cujo protótipo foi destruído.
― Aliás ― dizia ele ― é muito estranho que os americanos tenham abandonado de uma hora para outra os modelos em que vinham trabalhando há tanto tempo, justamente na época em que retornavam à América os emigrados de Recife. E as novas máquinas que passaram a desenvolver tinham grande semelhança com o projeto do padre Azevedo, até mesmo nos seus defeitos.
Cinco séculos depois do invento da prensa por Gutenberg, Marshall McLuhan, tido com o arauto dos novos tempos, decretou o fim do que denominou de Galáxia de Gutenberg, sustentando que o Cosmo da Impressão teria pouquíssima chance de sobreviver numa aldeia global que então se constituía, movida toda ela pela força das imagens. Uma nova galáxia, a audiovisual, então em fase de assombrosa expansão, em breve iria superá-la. Com o advento da internet e dos e-books novas previsões pululam a cada minuto acerca do fim do livro impresso, mas ele tem resistido bravamente.
Seu interesse e conhecimento remontavam à meninice, desde o seu primeiro emprego como ajudante de tipógrafo, quando se apaixonara irremediavelmente pela arte da impressão, os modelos e detalhes dos caracteres, a composição, o acabamento.
Já adulto, resolveu se estabelecer por conta própria, e à falta de capital para uma tipografia, montou uma modesta loja para vender máquinas de escrever e consertá-las. A sua expertise e dedicação levaram-no a progredir junto com a cidade e chegou a enricar, tornando-se proprietário da maior casa comercial do ramo na região.
Após o surgimento das máquinas elétricas ainda prosseguiu firme no negócio, embora contrariado, pois se matinha fiel os velhos modelos mecânicos, para cuja utilização bastava uma superfície plana, sem tomada por perto, nem risco de interrupção pela queda da energia elétrica. Além disso, com um pouco de manutenção, limpeza e lubrificação, duravam a vida toda.
Todavia, com a era da informática e dos microcomputadores deflagrada nos anos 1980, foi perdendo espaço até que decidiu fechar a loja. Os filhos e amigos insistiram com ele para se adaptar ao mercado, passar a vender computadores e a parafernália que os acompanha, mas ele se recusou terminantemente.
Levou para casa diversas máquinas de escrever que colecionava e tinha na conta de verdadeiros ícones, construiu um barracão no amplo quintal para acomodá-las e lhe servir como oficina e lazer. Muito raramente era chamado, e acorria com grande deleite, a consertar ou fazer a manutenção de algumas máquinas de escrever que sobreviviam nas mãos de outros poucos apaixonados como ele.
A exemplo das ruas da Recife antiga do menino Bandeira, como eram lindos os nomes das velhas máquinas de escrever: Remington, Underwood, Olivetti, Facit, Olympia, Royal, Everest, Alpina, Erika! Os microcomputadores de hoje nem nome têm, mas siglas: IBM, HP, Mac, Dell…
Secretamente, alimentava grandes esperanças no anunciado bug do milênio, na transição de 1999 para 2000, o que haveria de confirmar a vantagem das velhas máquinas de escrever.
Mas o tal bug foi como a passagem do Cometa Halley em 1986, que ele também esperou com grande ansiedade: ninguém sabe, ninguém viu.
Mesmo assim, a vida lhe reservava um momento de glória inexcedível.
Já em pleno século XXI, as diabruras climáticas, fruto das ações diabólicas do homem contra a natureza, provocaram trombas-d’água com vendavais devastadores durante uma semana sem parar, que deixaram a cidade, situada num vale ao sopé de uma cadeia de morros, totalmente ilhada e sem energia elétrica, em decorrência da queda de linhas de transmissão. A periferia e a zona rural foram as mais afetadas pela enchente, que levou de roldão as pontes dos ribeirões do Taboão e do Piripau, que davam acesso ao município pelos dois lados principais, dificultando enormemente os reparos para restabelecimento da energia.
Durante o dia, apesar da falta de eletricidade e da chuva fina que persistia, o cotidiano ainda se mantinha razoavelmente, mas à noite os lampiões a gás, velas e lanternas voltaram a reinar. E ele gostava disso, lembrando-se da cidade penumbrosa da sua infância.
Depois de uma semana às escuras, e sem perspectiva de quando os problemas seriam sanados, foi chamado para uma reunião no fórum, com o juiz de direito, a promotora de justiça, o prefeito, o delegado, o tenente que comandava o destacamento da Polícia Militar, o padre, o provedor da Santa Casa e outras pessoas gradas da comunidade.
Estranhou haver sido convocado. Mas logo foi posto a par e se encheu de orgulho e satisfação: pediram-lhe que cedesse as suas velhas máquinas de escrever, conservadas impecáveis, para que fossem utilizadas pelas repartições públicas para manutenção dos serviços básicos e de urgência.
Claro que concordou, e já na manhã seguinte distribuiu as máquinas, instruiu como utilizá-las e passou a percorrer diariamente os locais para verificar se tudo estava em ordem. Como lhe soavam bem os estalidos dos teclados e a sineta que assinalava o final do curso do carro, e ao mesmo tempo se divertia com as agruras dos atuais digitadores para se transmudarem em verdadeiros datilógrafos, valendo-se da força necessária para premer as teclas!
Transcorreu mais de um mês até que tudo se normalizasse. Pouco depois ele foi homenageado pelo prefeito e pela Câmara de vereadores, que lhe outorgou o título de cidadão emérito. O juiz fez questão de fazer uso da palavra para também agradecê-lo e cumprimentá-lo em nome dos comarcãos e do Poder Judiciário. O prefeito, no seu discurso, prometeu que encaminharia um projeto à Câmara para criar na cidade um museu das suas máquinas de escrever, do qual ele seria o responsável (o que acabou não fazendo).
Durante a cerimônia, sua família e seus amigos diletos assentaram-se na primeira fila e o aplaudiram entusiasticamente.
O melhor de tudo, porém, veio depois, quando retomaram as conversas desocupadas na barbearia. Foi ele então quem provocou a questão recorrente:
― Qual foi o maior invento de todos os tempos?
— A prensa de Gutenberg, responderam-lhe os outros, quase em uníssono.