Posts from setembro, 2012

Dó de peito

 

 

 

       Joaquim Ferreira dos Santos me alertou na segunda-feira passada para o relançamento de “Tem que acontecer”, do saudoso Sérgio Sampaio, e para a música do disco preferida dele, “Velho bode”, “aquela do “Você é um fracasso / do meu lado esquerdo do peito / uma corda de nylon / de aço / que arrebenta quando faço dó”. Nesse “dó” final ele tira o som da nota no violão, um dó pungente capaz de deixar humilhados os do Nélson Cavaquinho”.

        De Sérgio Sampaio nunca me esqueço (“Eu quero é botar meu bloco na rua” é uma das músicas prediletas da minha mulher), mas confesso que há muito tempo não ouvia uma canção dele, nem me lembrava do “Velho bode”, segundo Joaquim Ferreira dos Santos “um dos bichos mais geniais da MPB (ao lado do “Pato”, do João, do “Sapo” do Donato, da “Perereca” da Dercy”)”.

       Sérgio Sampaio, que se foi tão cedo, faz muita falta no cenário da MPB, não apenas pelo seu imenso talento, mas por ser um dos maiores representantes de uma vertente meio “maldita” (semelhante à dos poètes maudits), iconoclasta e irônica, sem medo de palmear o “brega”. Raul Seixas, Tom Zé, Jards Macalé, Eduardo Dusek e o próprio Caetano Veloso podem ser incluídos no mesmo time.

       A exemplo de Joaquim Ferreira dos Santos, também “sou de uma geração em que a ordem do mundo mudava ao sabor de um LP do Caetano, do Chico, dos Beatles. Hoje, eu ouço o Criolo, os crioulos do rap, e, a não ser que você me desminta, Dapi, não percebo as águas do mar se abrindo. A música não é mais o importante, mas o show.”

     Saí atrás do bode, e daquele “dó”, o que hoje em dia é bem fácil com o prodígio do YouTube.

         Passei o resto da semana com o velho bode e o seu “dó” final me doendo no peito.

      Comprei o CD (com outras faixas ótimas) que  — como se dizia antigamente — está prestes a furar, de tanto tocar.

 

 

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=2H_d4NEz5bE&list=FL4NABM5uSuIBCGiiPxgvugA&index=1&feature=plpp_video[/youtube]

 

 

 

A Queda e O Apanhador

 

 

 

 

 

 

          Diogo Mainardi chorou.

          Ali onde ele chorou, qualquer um chorava:

            

“82

Passei o dia na UTI.

Acariciei o rosto de Tito, Ele permaneceu morto. Acariciei o peito de Tito. Ele permaneceu morto. Acariciei a perna de Tito. Ele permaneceu morto. Acariciei as costas de Tito. No momento em que acariciei suas costas, deu-se o inesperado. Subitamente, ele contorceu o corpo e arqueou a coluna.

Tito ressuscitou.

Chorei por meia hora. Depois de ter chorado por meia hora, chorei por uma hora. Depois de ter chorado por uma hora, chorei por duas horas.”

 

          Mas Diogo Mainardi não quer comiseração nem simpatia por ele e pelo filho Tito, que sofreu paralisia cerebral em consequência de barbeiragens absurdas praticadas durante o parto, no hospital de Veneza.

          Mainardi não faz concessão alguma ao bom-mocismo:

 

“3 

[…]

 

Quando chegamos ao Campo Santi Giovanni e Paolo, à altura da estátua de Bartolomeo Colleoni, Anna disse:

— Estou com medo do parto.

Ela já manifestara o mesmo temor nas semanas anteriores, porque o hospital de Veneza, que agora se erguia à nossa frente, era conhecido por erros médicos.

Contemplei sua fachada por um instante.

O hospital de Veneza instalara-se no prédio da Scuola Grande di San Marco em 1808. A fachada arquitetada por Pietro Lombardo, em 1489, tornara-se sua porta de entrada.

Respondi:

— Com esta fachada, aceito até um filho deforme.”

  

          Castigo divino? 

          Diogo Mainardi não acredita em Deus (tampouco eu consigo acreditar num deus que agisse assim):

  

“143

Eu soubera que minha mulher estava grávida exatamente um ano antes.

Tratei do assunto em 23 de fevereiro de 2000, em minha coluna na revista Veja.

Comecei dizendo que, até aquele momento, a recusa da paternidade fora uma das raras certezas que eu jamais questionaria em minha vida. Em seguida, comentei que meu desejo — reproduzo palavra por palavra — era ter um “filho tartaruga: toda vez que ele se agitasse demais, bastaria revirá-lo de barriga para cima, e ele permaneceria parado, silencioso, sacudindo os bracinhos”.

Eu tive meu filho tartaruga.

 

“134

Eu nunca cultuei Deus. Eu nunca cultuei o Homem. Passei a cultuar Tito. Passei a cultuar a vida doméstica. Meu evangelho é uma conta de luz. Meu templo é uma quitanda.

Tito é o Todo. Um tomate é o Todo.”

 

          Dizia Fernando Pessoa que “A literatura, como toda arte, é uma confissão de que a vida não basta”, ideia essa retomada por Ferreira Gullar ao dizer que “A arte existe porque a vida não basta”.

          Antes de Tito, a vida não bastava para Diogo Mainardi, e ele  a vivia por meio da arte e da literatura:

 

“138

[…] 

Quando Tito nasceu, eu estava escrevendo meu quinto romance.

Era assim que eu vislumbrava meu futuro: sempre em Veneza, pulando de romance em romance.

O nascimento de Tito mudou tudo.”

 

“331

Para Marcel Proust, a “vida verdadeira, a única vida plenamente vivida, era a literatura”. Para mim, a vida verdadeira, plenamente vivida, passou a ser Tito.

Depois de seu nascimento, repudiei minha literatura e fui ganhar dinheiro.”

 

          Diogo Mainardi já não precisa se preocupar em ganhar dinheiro para cuidar do filho.

          Tito está rico. Recebeu uma indenização milionária:

 

“350

Depois de sete anos, o processo contra dottoressa F e o hospital de Veneza finalmente chegara ao fim.

Tito ganhara 3.162.761 euros.

No caminho de volta da Fondamenta delle Zattere, Tito e eu passamos pela Calle Querini, onde morou Ezra Pound.

O meu parasita deixara de ser um parasita.”

 

          Por que, então, o livro sobre Tito?

          De novo a vida, a literatura e Proust:

 

“309

No último volume de Em Busca do Tempo Perdido, Marcel Proust pisa em falso e quase cai no pátio do castelo de Guermantes.

O incidente recorda-lhe suas caminhas pelas lajotas desiguais de Veneza.

Subitamente, os eventos de seu passado encaixam-se como um mosaico, e ele é tomado por um sentimento de felicidade.

Ele compreende que as memórias de suas caminhadas por Veneza — com as imagens e as analogias que elas evocavam — podiam dar sentido à sua vida.”

 

“310

Naquele instante, Marcel Proust pensa em escrever um livro sobre seu passado, porque para interpretar os sentimentos era necessário, antes de tudo, transforma-los em ideias, “convertendo-os em seu equivalente intelectual”.

O livro que ele pensa em escrever é o próprio Em Busca do Tempo Perdido.”

 

“311

Em nossas caminhadas por Veneza, Tito sempre pisava em falso.

Quando isso ocorria, eu era tomado por um sentimento de felicidade. Impedir uma queda de Tito em Veneza dava um sentido à minha vida.”

 

“312

O livro que converte meus sentimentos em seu equivalente intelectual é este aqui.”

 

          O livro é todo assim, circular como a vida e a história, com as imagens, analogias e referências da vida de Mainardi e Tito evocadas em itens curtos, cada um representando os 424 passos que Tito conseguiu dar sem cair, contados um a um pelo pai, que sempre recomeçava a contar após uma queda.

            Diogo vive para evitar as quedas de Tito.

            Ele é “O apanhador no campo de centeio” de Tito.

 

“24 

[…] 

Assim como a Scuola Grande di San Marco, a espasticidade de Tito remete-o ao passado, paralisando seu amadurecimento motor. Eu me encanto com cada detalhe bizantino da sua motricidade.

Assim como a Scuola Grande di San Marco, Tito tenta resistir à queda. Ele sempre cai. Ele sempre cai gargalhando.”

 

          Diogo Mainardi chorou.

          Ali onde ele chorou, qualquer um chorava.

          Dar a volta por cima, quero ver quem dava.

 

 

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=qFa56zgqQ78[/youtube]

 

 

 

 

 

 

 

Oh my God!

 

 

 

 

 

 

“— Vamos por partes — disse ela [Emília].

— Antes de mais nada, quero que o senhor doutor me prove que ali o Senhor Müller é mesmo o dono deste rinoceronte. Exijo provas, sabe? Eu não uso anel de advogado no dedo, mas acho que em direito o que vale são as provas.

Foi a vez de o advogado abrir a boca, de espanto.

A tal bonequinha sabia discutir como um perfeito rábula.”

(Monteiro Lobato, Caçadas de Pedrinho, livro sub judice no STF)

 

 

“Estudei a legislação do país e arranjei clientela neste bairro, onde não se exigem diplomas. Não foi fácil, mas eu inspiro confiança, não acha? Tenho um riso agradável e franco, o meu aperto de mão é enérgico: são os meus trunfos. E, além disso, resolvi alguns casos difíceis: a princípio, por interesse e, depois, por convicção. Se os proxenetas e os ladrões fossem sempre condenados em toda a parte, as pessoas de bem, meu caro senhor, julgar-se-iam todas e incessantemente inocentes. E, no meu entender, e pronto, pronto, já chego lá — é sobretudo isso que é preciso evitar. De outra forma, haveria muita razão para rir.” 

(Albert Camus, A Queda)

 

 

        

          Consta que os colegas mensaleiros de Márcio Thomaz Bastos a ele se referem como “God”.

          Haja subserviência!

         Os ingleses, ao contrário dos norte-americanos, referem-se a Deus como “Lord” e não como “God”, que lido ao contrário é “Dog”, um dos designativos do demônio.

          Talvez, então, o lema dos colegas mensaleiros de Thomaz Bastos seja o mesmo que engalana as cédulas e moedas do dólar americano: “In God We Trust”

          Ao ver seu anjo decadente e cliente condenado por gestão fraudulenta do Banco Rural, “God” clamou contra um “retrocesso na área penal”, pelo fato de o STF estar “flexibilizando perigosamente certas garantias”, e chegou até mesmo a invocar o AI-5 e o comentário do então vice-presidente, Pedro Aleixo, contrário à edição do ato, de que não se preocupava com a concentração de poderes nas mãos do ditador Costa e Silva, mas com o que faria o “guarda de esquina” depois da supressão dos direitos individuais. 

          Oh my God!

          O “Senhor” não devia ser advogado numa causa que trata de fatos ocorridos nos tempos em que o “Senhor” tinha descido à Terra na condição de simples mortal e Ministro da Justiça. A propósito, onde estava o “Senhor” nos tempos da ditadura?

          Diante de um deus assim, graças a Deus sou ateu.

 

 

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=iMs9feeSknk[/youtube]

 

 

 

Contrapasso

 

 

 

 

 

 

          A comemoração de datas cívicas com paradas militares é algo que me causa espécie, como diriam os eminentes ministros da nossa Excelsa Corte.

       Se as datas são cívicas (do latim civicus, aquilo que é relativo ao cidadão, à cidade ou civitas), por que os militares delas se apoderam e se exibem, enquanto os demais cidadãos ficam parados, apenas assistindo? Daí talvez a denominação de parada.

          Nem venham me dizer que representantes da sociedade civil também participam dessas paradas. Quando tal ocorre, a parcela é mínima em comparação com o enorme contingente militar, e para tomar parte os civis (sempre os primeiros chamados a morrer pela pátria quando esta se envolve em alguma guerra) são obrigados a se enquadrar aos padrões militares, marchando em formação.

          Num mundo tão carente de paz e entendimento, com tantas fronteiras físicas, sociais e ideológicas, qual o sentido dessa exibição do poderio militar e bélico nacional, com seus tanques, canhões, mísseis, caças e o que valha?

          A quem se busca intimidar ou ameaçar? Os outros países? O próprio povo?

       Haja vista o enorme fervor por esse tipo de ostentação sempre demonstrado por tiranos de todos os matizes — de Hitler a Mussolini, passando por Stálin, Mao Tsé-Tung, Generalíssimos e ditadores latino-americanos.

          Durante a última ditadura militar no Brasil (esperemos que tenha sido realmente a última), por pouco não acabei preso com um grupo de colegas do Diretório Acadêmico quando vazou o nosso plano de fazer uma manifestação num 7 de Setembro.

       Na Grécia antiga o termo idiota (do grego idiotés) referia-se àquele que só se interessava pela vida privada, que recusava a política (do grego polis) e não atendia ao chamamento básico da sua humanidade como zoon politikon

         Retomando esse sentido originário, os civis somos tratados como idiotas, postos à margem das paradas comemorativas, como se o patriotismo fosse apanágio dos militares.

        Já dizia o pensador inglês Samuel Johnson que “o patriotismo é o último refúgio do canalha”, aforismo esse que o nosso não menos extraordinário pensador Millôr Fernandes subverteu ― e melhorou ― para “a pátria é o primeiro refúgio do canalha”.

         Reencarnando Pessoa, Caetano Veloso canta que “a língua é minha pátria / e eu não tenho pátria, tenho mátria / e quero frátria.”

        E por falar em mátria e paradas militares, o exemplo maior de amor e devoção é o daquela mãe que vendo o filho soldado a marchar em meio ao batalhão, comenta orgulhosa com o marido:

           — Olha só que gracinha. Nosso filho é o único marchando no passo certo!

 

           

 

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=1CH3GlT78bU[/youtube]

 

 

 

Porque hoje é sábado…

 

 

 

 

 

                                

 

 

 

                                                Queria assim

                                                um ano à esmo

                                                sabático

                                                em que todo dia

                                                é sábado

                                                e véspera de si mesmo.

 

 

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=qfkz6eD8mn4]

 

 

 

O colecionador

 

 

 

          Para ficar mais próximo do Rio de Janeiro, do seu dia a dia e dos amigos que tenho por lá, tornei-me assinante da versão digital do jornal “O Globo”.

          O relacionamento do leitor com um jornal não difere muito dos relacionamentos da vida. Existem aqueles com quem simpatizamos e aqueles que nos aborrecem ou nos são indiferentes; pessoas com que nos identificamos de imediato e das quais nos sentimos próximos como se convivêssemos desde sempre.

          Assim também com os cronistas e colunistas permanentes dos jornais. Alguns, esperamos ansiosos o dia do encontro marcado; outros, viramos logo a página, como dobramos a primeira esquina para não cruzar com aquele chato de galochas.

          Nessas semanas de leitura de “O Globo” só tem aumentado meu encantamento com as crônicas de Joaquim Ferreira dos Santos, com seu jeito de “Gente Boa”, seu estilo simples e gostoso, sua sensibilidade na apreensão das coisas e dos fatos.

          Outro dia ele escreveu sobre o que seria um novo subgênero literário, como a nossa jabuticaba, a “crônica do vovô”, cujos autores “[…] passeiam ao redor de suas netas usando a mesma estupefação com que já observaram o Rio de Janeiro — a “crônica de exaltação da cidade” é outro subgênero — ou refizeram suas memórias de infância, uma ramificação em que todos também acabam mexendo. Do outro lado da página do jornal, o leitor reconhece, no texto do vovô babando as netas, o movimento universal do tempo que passa, das vidas que se renovam e da esperança do novo. A crônica faz a aposta lírica, nas entrelinhas, de que vem aí um mundo melhor.”

          Selminha, com seu inesgotável carinho, além de me avisar para ler a crônica do vovô Joaquim, logo me incluiu na categoria, capitaneada por Ricardo Noblat, Luis Fernando Veríssimo e Zuenir Ventura, vejam só!

          Segunda-feira passada, Joaquim Ferreira dos Santos escreveu deliciosamente sobre uma mania que também tenho, a de anotar frases que ouço, vejo ou leio por aí.

          Sou, porém, mais dispersivo do que ele. Não mantenho um caderno (o que talvez passe a fazer), vou anotando em papeluchos que geralmente se perdem nas páginas de livros, em gavetas e pastas esquecidas. O que não é de todo mau, pois ao reencontrá-las de repente as frases me despertam o mesmo prazer que me levou a anotá-las.

 

 

O COLECIONADOR

 

Acho que já disse outrora, alhures, quiçá aqui. Quero enfatizar. Anoto frases. Ouço na rua, vejo num muro, leio num livro. Anoto. Um dia, perguntado de onde vinha tanta inspiração, Cole Porter respondeu: “Do telefonema do produtor”. Anoto frases como essas num caderno, frases não necessariamente inspiradoras, mas que por algum motivo me provocam um esgar no cerebelo e, um dia, se o telefone do produtor tocar, poderão ajudar no milagre de já encontrar fumegando o caldeirão das ideias. Não discuto com elas. Boto para dentro e esqueço. Quem sou eu para entender o que me vai nas internas.

Vou anotando, que é um modo como outro qualquer de salgar a carne para o banquete futuro. Pode ser Muhammad Ali ensinando a boxear (“Flutua como borboleta, ferroa como abelha”) ou Fabrício Carpinejar ensinando a se tocar a vida (“O bom humor é a cirurgia plástica de baixo custo”). Tudo sem hierarquia, um açougue de chã de dentro, gordura e letras. Anotei “Se o mundo fosse bom, o dono moraria nele”, de um parachoque de caminhão. Anotei também o artilheiro Dario Maravilha explicando aos repórteres, espantados com a boa direção de suas caneladas, que “não existe gol feio, feio é não fazer gols”.

De que isso me servirá, não lo sei. Pode ser o desabafo do Otto Lara, cansado da ignorância urbana dos jovens (“Não quero mais conhecer ninguém que não saiba o que é goiaba”) ou o jingle “Peço licença pra mandar Detefon em meu lugar”. Gostei, quero preservar aquele prazer. “Cada minuto é um milagre que não se repete”, dizia o locutor da Rádio Relógio — e eu já teria esquecido tamanha delícia se meus garranchos não a tivessem preservado.

Eis o meu hobby. Anoto frases, que é uma forma de expressar meu carinho para com elas. Cubro-as em seguida com um cobertor das lojas Pernambucanas e ponho para dormir com as minhas. Torço em silêncio para que elas se locupletem todas ou que pelo menos se restaure a moralidade do verbo, como dizia, e está anotado, o Stanislaw Ponte Preta. De mais não sei, de mais não encuco e nem me preocupo com o que delas vai resultar. “Depois de um século de atividade, a psicanálise chegou a uma conclusão científica: gafanhoto não tem grilo”, disse o Millôr.

As minhas frases dormem com as estranhas que eu trago da rua e rezo para que se reproduzam. Temos sido felizes em nossa cornucópia semântica. O que nasce daí, um tiroteio interminável de frases iluminando a noite das ideias, vai empacotado em papel de seda azul para o produtor. Em seguida, às vezes no formato de livro, outras mais em jornal, ele distribui o palavrório pelas boas casas do ramo. Vivo disso.

Na semana passada, o jornalista Marcel Souto Maior e a revista “Veja” lançaram livros com coleções de frases ditas por outros. Respirei aliviado. Eu não estava sozinho no culto da obsessão. Um dia, quem sabe, eu transfiro todas do caderno humilde em que dormitam as minhas para o luxo protetor da capa dura. São moças simples. Nenhuma delas foi tirada de um evento épico (“Amanhã não vai ser possível, porque encomendei um franguinho assado”, de Moreira da Silva, desmarcando uma entrevista), mas me são todas queridas e lhes quero o melhor. Haveria um capítulo com as do “Poderoso chefão”:

“Fique perto dos amigos, e muito mais dos inimigos”, “Nunca diga para alguém de fora da família o que está fazendo”, ou “Dom Corleone nunca pede um segundo favor quando lhe recusam o primeiro”. Haveria um outro capítulo com mandamentos de machões:

“Fale com calma, fale devagar e não diga muita coisa” (John Wayne), “Sexo é uma das nove razões para a reencarnação, as outras oito não têm importância” (Henry Miller) e “Perdoar, sim, esquecer, nunca” (John Kennedy).

Eu anoto essas frases com o fito de mantê-las sempre por perto, e brincar com a cara delas. Leio “Quem bebe Sukita não engole qualquer coisa”, e é impossível não rir. “Sapo não pula por boniteza, pula por percisão”, dizia Guimarães Rosa, e já são duas risadas.

Frank Sinatra escreveu, na parede do salão onde guardava seus trenzinhos, que “Quem morre com o maior número de brinquedos, ganha”. Tinha sido garoto pobre, queria uma quantidade enorme de trenzinhos. Eu acho que ganha quem morre com a maior diversidade. Tenho outros brinquedos, quase todos inconfessáveis diante de grandes plateias. Garimpar frases e cultuá-las no altar de um caderno é apenas um deles, e os livros lançados sobre o assunto me autorizam a dizer alto que eu também sou do clube. Elas não servem de autoajuda, nem para encaixar num discurso de formatura. São moças da venerável estirpe das que não se dão ao respeito. “Não há nada mais gostoso do que um ‘mim’ sujeito de verbo no infinitivo”, dizia Manuel Bandeira — e em seguida suspirava a delícia de um “para mim brincar”.

Era o que eu queria dizer. Anoto frases porque o joelho não me deixa mais subir no skate. É para mim brincar.

 

Joaquim Ferreira dos Santos

O GLOBO

3/9/2012

 

 

 

Amor aos pedaços

 

 

 

 Para Regina e Calato, mestres da arte de juntar cacos e corações

 

 

 

                              Com o coração despedaçado, levou a vida inteira juntando os cacos.

                              Deixou a família, a casa, o emprego, os amigos, e se foi catando os cacos por ruas, vielas, becos, jardins, dia e noite.

                              Um caco aqui, outro acolá, ia vivendo aos cacos.

                              Pouco a pouco ficou um caco, o cabelo e a barba desgrenhados, as roupas rotas, os sapatos furados, mas ele seguiu catando os cacos.

                              Tornou-se a figura folclórica da cidade. Sabiam que era incapaz de fazer mal a alguém, mas as mães ameaçavam os filhos rebeldes:

                              — Se você não comer tudo, eu chamo o catador de cacos para te levar no saco.

                              E as crianças logo devoravam os brócolis, as vagens, os quiabos, os espinafres e os jilós.

                              Já muito velho e carcomido, com o saco cheio, um dia o coração partido espatifou de vez.

                              Até então não havia conferido os cacos catados. Acostumara-se a catá-los simplesmente.

                              De joelhos, antes de desfalecer, juntou as últimas forças e despejou o saco, mas não percebeu que de lá caíam estrelas, luares, raios de sol, entardeceres, alvoreceres, flores, borboletas e pássaros, sorrisos e olhares em meio aos cacos.

                              Com os olhos baços, só viu que à frente de si tinha um cacófato (que lhe serviu de sarcófago).

 

 

 

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=izmVLk6eh6c]

 

 

Veja no link abaixo alguns cacos dos trabalhos da Regina e do Calato

http://www.arteoficiomosaicos.com.br/

 

 

 

Ufa!

 

 

 

            Ufa!

            Chega de lufa-lufa.

 

            Saulo e Alexandra, nem tenho como agradecer.

            E a vocês, Selminha e Duda, que até de perna para o alto me deu ajuda.

 

            O blog continua o mesmo, mas os cabelos…