Posts from setembro, 2012

Mala suerte, a saga dublinense de Bell Gama

 

 

 

Nenhum lugar é melhor do que a sua casa

 

Sair de Londres foi fácil. Viver um fim de semana em Edimburgo com o meu primo foi mais fácil ainda. Não tem nada melhor do que a gente encontrar alguém da família, que fala a sua língua, que tem o mesmo sobrenome, o mesmo jeito, as mesmas piadas… Encontrar meu primo em um país que jamais imaginei conhecer como a Escócia foi algo inesquecível. A cidade de Edimburgo é mínima e bastam algumas horas para você conhecê-la por inteiro. Por isso, parecia que estávamos tirando férias na casa da avó. Todos os escoceses são muito gentis e parecem que te conhecem de longa data. A noite é super animada. Pubs com música ao vivo, bares incríveis… É uma cidade tão tranquila que até pudemos conhecer outra, Stirling, que não tem muita coisa além de um castelo.

Deixei o Felipe dormindo no hotel e parti para o terceiro trecho na minha viagem na segunda-feira. Já saí de lá com saudade dele e preocupada com a minha mala que estava muito pesada. Ao chegar com antecedência no aeroporto senti que dali em diante mais nada seria fácil. Diferente do que li no site da companhia aérea (23 kg permitidos), só pude levar 20 kg. Ou seja, tive que pagar 2kg excesso de bagagem, desfazer de algumas coisas. Enfim, encarei como um momento de desapego necessário da viagem.

Chegando em Dublin tive a ingrata surpresa de não ver a minha mala na esteira. Outros dois passageiros também estavam na mesma situação. Me juntei a eles e fomos conversar com um representante da companhia aérea que rodou o aeroporto e não achou as malas. Ele disse que não tinha mais nada a ser feito, que se as malas tivessem ficado em Edimburgo elas poderiam chegar em um voo do mesmo dia, mas que teria que checar. Vou poupá-los do calvário que tem sido até então. Hoje é quarta-feira. Minha mala está em algum lugar da Inglaterra. Depois de duas negativas , eles “esperam” que ela chegue hoje a noite. Não sei mais o que esperar.

Em uma viagem, a mala é sua casa. É onde você se encontra. Quando cheguei em Dublin choveu três dias sem parar. Quando digo sem parar é sem parar mesmo. Um frio infernal. O vento aqui é impressionante. E eu só tinha uma roupa molhada. Depois de chorar, chorar e chorar, tomei coragem e comprei outra. Mas não adiantou. Continuei me sentindo triste e abandonada em um lugar cinza que não fala a minha língua. Tentei pedir ajuda para várias pessoas que apesar de serem super simpáticas não tem muito o que fazer. Ainda estou lutando contra uma sensação estranha de abandono.

Não entendo as regras em Dublin. Tem carro na mão esquerda e na mão direita. Tem castelo medieval mas tem pixação. Aqui, se você está muito bêbado, não pode entrar no bar. A perda da minha mala parece ter sido minha culpa. A companhia aérea nem sequer pensa em me ressarcir. É difícil tentar entender tudo isso junto sem ter completo domínio da língua. Não dá pra brigar em inglês. Pra xingar com vontade, tem que ser na nossa língua materna.

O único local onde fiz bons amigos é onde não se precisa falar muita coisa: o bar. A linguagem universal da cachaça domina por aqui. Foi no bar do hostel que conheci uma australiana que estava passando pela mesma situação que eu. Desolada, ela também teve as malas perdidas pela mesma companhia aérea. Isso nos aproximou e nos ajudamos. Assim conhecemos um outro cara de New Castle, um local de Dublin, dois outros de Melbourne e três da Áustria. Foi com essa trupe louca e sedenta que saí ontem. Fizemos um Pub Crawl só nosso liderado pelo menino de Dublin. Fizemos mais amigos no caminho e no final parecíamos uma família estranhamente bêbada em que um cuidava do outro. Perdi a conta de quantos Pubs entrei. Lembro até o oitavo. Depois, decidi ir embora.

Eu era a única latina. Eles não tem a menor noção do Brasil. É como se eu fosse um ET. Por isso, me adotaram. Tentei passar várias referências. Me peguei várias vezes defendendo enfaticamente o Brasil como nunca fiz. Disse que gosto de caipirinha, que amo futebol, que sei sambar, que no Brasil o cigarro custa praticamente 2 euros, a cerveja também. Disse que a Copa será incrível e as Olimpíadas um sucesso. Falei da Amazônia, do Pré-Sal e até da Dilma Roussef. Disse que reciclo lixo, me importo com o carbono zero e que as pessoas andam com carro movido a cana-de-açúcar. Nada disso os convenceu de que o Brasil é o melhor lugar do mundo. Hoje, para mim, é.

Bell Gama

setembro/2012

 

 

 

St. Patrick, Arthur e São Longuinho

 

Seria impossível começar o dia de hoje sem escrever no blog. Ontem postei um texto contando da minha saga sem a minha mala em Dublin. Depois de publicá-lo recebi mensagens lindíssimas. Quando o fiz me senti até um pouco infantil de ficar sofrendo pela minha mala. Meus queridos Allex Colontonio, Marcel Gomes e Marina Menezes me relataram seus episódios quando passaram pela mesma situação. Meu coração ficou mais calmo. Eu não estava mais sozinha e sabia que tinha gente torcendo por mim e indignada com a situação. Por isso escrevo para contar o próximo episódio do capítulo da novela “Cara, cadê minha mala?”.

Decidi levar o conselho de alguns adiante e fui tentar conhecer Dublin. “Não deixe que isso estrague sua viagem”, muitos disseram. Pois bem, apesar de achar impossível levá-lo em frente porque a sua cabeça só fica pensando “eu to aqui passeando e minha mala tá em algum lugar do mundo”, decidi dar uma volta. Como já disse, o primeiro lugar que vou é sempre em uma igreja. E se era para apelar para um santo, fui direto ao St Patrick. Ele é o padroeiro da cidade e em sua homenagem é feita a maior festa de Dublin no mês de abril. Todo mundo veste verde e enche a cara. Fui lá na bela Catedral meio gótica, meio medieval que tem quase 1.000 anos (erguida em 1192). Fui direto para o altar. Abaixei a cabeça e pedi pela minha mala. Enquanto pedia, também vinha outro pensamento. “Se a minha mala não voltar, me ajude a lidar com a situação”. Pedi para que ele não me fizesse odiar a cidade que era dele. Pedi intervenção imediata. Eu estava me sentindo muito fraca e indefesa e chorei muito na igreja.

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Olhei as lindas esculturas por lá. Caminhei pelo jardim e … juro, o céu que estava cinza e chuvoso desde que eu cheguei abriu. Pensei que talvez pudesse ser a única oportunidade de ver a cidade sem chuva e decidi que era um sinal e precisava continuar. Fui andando pelos arredores da área Viking Medieval, passei pela Christ Church Cathedral (1030), pelo Dublin Castle (1204), Chester Beaty Library Galleries e o City Mall. Comi um crepe (graças a Deus, um crepe!) nas proximidades do Temple Bar e voltei para a Jervis, um shopping que fica numa rua comercial onde tem sido o meu destino diário para comprar roupa, escova de dente, calcinha, essas coisas. Lá, vi um vestido florido e alegre. O sol já estava a pino. E pensei, quer sabe? Cansei de vestir roupa velha e suja aqui. Estava me sentindo um lixo. Provei o vestido, ficou lindo. Levei. Voltei para o hostel (nada da mala). Fiquei no quarto por um longo tempo pensando em não descer mais. Apesar de ter curtido o passeio, a mala não saia da minha cabeça. Depois, quando não aguentei mais ficar no quarto, desci e encontrei meus amigos gringos (nosso acordo é sempre estarmos as 17h no bar do Hostel). Lá estavam Michelle (Australia) e Andy (New Castle). Eles me perguntaram se eu não gostava mais deles e eu disse que estava cansada, estressada, desiludida, de saco cheio. Para Michelle, motivos suficientes para encher a cara. Me fizeram tomar um Guinness e alguns shots de sei lá o que. Tomei.

Tentei dormir, não consegui. Chorei. Pensei no que poderia fazer. Repensei por que estava me sentindo tão fragilizada. Pensei em tanta coisa que minha cabeça entrou em parafuso. No Brasil, todas as terças-ferias, meus queridos Murilo, Gill, Lau e Vina se encontram em casa para a nossa “uísqueterapia”. Eles me mandaram fotos, disseram que estavam pensando em mim e minha vontade era pegar um avião e correr para os braços deles. Como isso seria impossível, bolei um plano doido. Pensei em acordar o mais cedo possível e ligar para a companhia aérea. Se eu não tivesse uma resposta satisfatória, procuraria o consulado. Se não conseguisse nada, procuraria a imprensa. Pensei: sou jornalista, vou escrever para algum colega falando do descaso da Aer Lingus com seus passageiros. Procurei matérias referentes ao assunto e encontrei. Já fui pauteira e pensei em associar ao Arthur´s Day, que é hoje. Fiz o lead todo na minha cabeça. Já pensei na tradução Depois pensei em fazer um flash mob no aeroporto para chamar a atenção. Enfim, achei que estava enlouquecendo. Era 4h da manhã, tomei um Frontal e capotei.

Me arrastei para a recepção hoje de manhã (fruto do remédio). Perguntei por minha mala, ela não havia chegado. Liguei na companhia, a mulher pediu para esperar. Caiu a ligação. Liguei novamente, outra disse que me retornaria. Mas não retornou. Liguei para o consulado. Eles pediram para eu mandar um e-mail para ver o que poderiam fazer, mandei. Decidi ligar de novo na companhia aérea. MILAGRE! Minha mala havia chegado. Já estava no aeroporto e seria encaminhada pra mim hoje a tarde! Chequei se era verdade no meu site e CONFIRMADO. Minha mala já estava em Dublin. Minha vontade era gritar no meio do lobby do Hostel. Fiquei paralisada. Não sabia o que fazer. Saio? Fico aqui? Vou para o aeroporto? Acordo todo mundo no Brasil? Enfim, o que se faz nessa hora é fumar um cigarro. Fui fumar e de repente vejo uma MIRAGEM. Um senhorzinho com a minha mala na mão vindo em direção ao Hostel. Corri para ele e disse que era minha. Ele perguntou meu nome e se eu era do Brazil e eu disse: YES!

Como a Marina Menezes disse, a vontade é de abraçar a mala, abraçar todo mundo! Subi, tomei um bom banho com todas as minhas coisinhas. Passei todos os cremes. Arrumei minha roupa e agora estou aqui de vestido florido. Esperando para erguer um(s) copo(s) de Guinness e agradecer ao Arthur´s Day, St. Patrick e especialmente São Longuinho!

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Cheers!

Obrigada a todos!

Bell
(setembro/2012)

 

 

 

Olhos de ver

 

 

 

            Primeiro a obrigação, depois a devoção. Cumprida a primeira, resolvo aproveitar o resto do dia na Mostra dos Impressionistas, no belíssimo prédio do Centro Cultural Banco do Brasil, bem no miolinho da velha cidade, ou o que restou dela.

            Após a chuva da noite anterior, São Paulo amanheceu cinza, com um vento cortante e um frio de rachar. Eu apenas com um paletó de lã fina. Apanho emprestado um cachecol da Júlia, e lá me vou, um estrangeiro nessa São Paulo parisiense. 

            Defronte do Centro Cultural, a fila dá voltas no quarteirão. De duas a três horas de espera para entrar, me dizem.

            Estou prestes a desistir. Entro pela porta ao lado na cafeteria do saguão e avisto um pequeno cartaz com uma seta indicativa de “fila preferencial” para idosos e pessoas com deficiência, com direito a um acompanhante. Na fila, apenas cinco senhorinhas, muito bem vestidas, joviais, rindo e conversando animadamente. Meio cabreiro, num ímpeto de ousadia e despudor, decido invocar pela primeira vez os meus direitos de idoso (é a mãe!) e entro na fila, atrás das garotas. Por via das dúvidas, saco minha carteira de identidade de advogado sênior e fico com ela na mão.

            Em menos de cinco minutos as moçoilas são convidadas a entrar, recebendo um pequeno carimbo no dorso da mão. Avanço junto e o porteiro, sem bem me olhar ou esperar pela resposta, enquanto pespega o carimbo na minha mão esquerda, diz: “O senhor está com elas?” 

            Alvíssaras! (Que consolo…)

            Fico mais de três horas percorrendo os andares da exposição, de início próximo das minhas companheiras, mas logo elas me ganham a dianteira e somem, serelepes. 

            A exposição está muito bem montada, com boas informações sobre a época, os pintores e os quadros, um ótimo audiovisual de pouco mais de cinco minutos, narrado pelo grande Antônio Abujamra. 

            Vários quadros de Monet (em diferentes fases, com predominância da inicial), Renoir, Cézanne, Pissarro, Sisley, Manet (O tocador de pífaro se destaca), Gauguin, Degas e suas bailarinas, dois ou três de Toulouse-Lautrec, apenas um Van Gogh (“O Salão de Dança em Arles”). Há diversos outros, são mais de oitenta obras do extraordinário acervo do Museu D’Orsay! 

            Ao sair, enquanto tomo um café, com os olhos transbordantes dos encantos vistos, ocorre-me que se minha alma é barroca, meus olhos são impressionistas. Meus sonhos, muita vez, são surrealistas, e meu coração, quiçá, seja romântico.

            O frio, a tarde caindo, as sensações borbulhando, fizeram-me recordar a exposição de Monet a que fui muitos anos atrás, no MASP. Após a visita, já de noite, enquanto caminhava pela Paulista, me veio inteiro à cabeça, em borbotões , este poeminha de circunstância, que finalizei e escrevi logo em seguida no guardanapo de um bar próximo, onde entrei para tomar um uísque.

 

 

  MONET no MASP

 

 

  A meu pai, companheiro de viagem

 

 

                                                                   Rever Monet

                                                                   nunca é coisa vã

                                                                   mesmo para quem

                                                                   já esteve no Marmottan

                                                                   cujo acervo — zasp —

                                                                   cruzou o Atlântico

                                                                   e se alojou no nosso Masp.

 

                                                                   Ninfeias e glicínias

                                                                   A ponte japonesa

                                                                   A aleia das roseiras

                                                                   O salgueiro chorão

                                                                   O jardim em Giverny

                                                                   estão logo ali

                                                                   quase ao alcance da mão

                                                                   e mais outros quadros

                                                                   de amigos do artista

                                                                   que também me encantam a vista.

 

                                                                   São Paulo amanheceu

                                                                   com ar europeu 

                                                                   invernal, chuvosa, vestida de gris,

                                                                   mas nem mesmo

                                                                   a capa de gabardine

                                                                   me redime

                                                                   da saudade de Paris.

 

                                                                   Sombra fugidia

                                                                   caminho incauto

                                                                   pela noite vazia

                                                                   com os olhos replenos

                                                                   de tanta cor e luz

                                                                   e num bar de esquina

                                                                   antes que se apague

                                                                   a vaga estrela fria

                                                                   brindo ao companheiro de viagem

                                                                   que pela vida me guia

                                                                   muito além das paragens

                                                                   de Oropa, França e Bahia.

 

 

 

 

 Minha mão de idoso (segundo o carimbo afirma)

 

 

 

Quem guenta?

  

 

Estou em São Paulo desde ontem, a trabalho.

O tempo é pouco, a correria, muita, mas não resisto.

Mensagem que recebi da Carolina:

 

“Pai olha a última da sua neta. Depois de levar bronca por ter bagunçado a casa me disse: Mamãe não quero mais morar nessa casa! Quero morar sozinha!!! Eu guento???”

 

E ela só tem dois anos e meio…

 

 

 

 

A arte do encontro VI

 

 

 

 

Rubem Braga e Vinícius de Moraes sentados;

José Carlos de Oliveira entre os dois;

atrás, Paulo Mendes Campos e Sérgio Porto;

ao lado, com a mão no ombro de Vinicius, Fernando Sabino.

Que encontro, Deus meu!

(Creio que no jardim cultivado por Rubem Braga na cobertura em que morava)
 

 

 

“Meu caro Vinicius de Moraes

 

Escrevo-lhe aqui de Ipanema para lhe dar uma notícia grave: a primavera chegou.

Você partiu antes. É a primeira primavera, de 1913 para cá, sem a sua participação.

Seu nome virou placa de rua e nessa rua que tem seu nome na placa vi ontem 3 garotas de Ipanema que usavam mini-saias. Parece que a moda voltou nessa primavera. Acho que você aprovaria.

O mar anda virado. Houve uma lestada muito forte, depois veio um sudoeste com chuva e frio. E daqui de minha casa vejo uma vaga de espuma galgar o costão sul da Ilha das Palmas. São violências primaveris.

O tempo vai passando poeta, chega a primavera nesta Ipanema, toda cheia de sua música e de seus versos. Eu ainda vou ficando um pouco por aqui — a vigiar, em seu nome, as ondas, os tico-ticos e as moças em flor.”

 

Rubem Braga

 

  

 

God Save The Queen – um mergulho na realeza (da nossa correspondente em Londres, Bell Gama)

 

 

Quando decidi vir para Londres não sabia nada da cidade. Tentei comprar um guia mas fiquei com preguiça de ler. Conversei com alguns amigos e eles começaram a dar dicas. Também pesquisei em alguns blogs da internet e cheguei a duas conclusões. A primeira é que não entendi nada.  O que acontece é que para quem já veio para Londres as palavras Camden Town, Covent Garden, Notting Hill, London Eye, London Tower, Tower Bridge fazem sentido. Para quem nunca veio é só ummontedepalavrajunta. Você confunde todos os nomes e no final só lembra de: Buckingham Palace e troca da guarda. Por isso, a segunda conclusão que eu tinha era que não queria ver de jeito nenhum “esse lance de troca de guarda, de rainha, Henrique III, Elizabeth II e sei lá o quê”…


Depois de alguns primeiros dias lendo Londres às avessas e tentando entendê-la, decidi voltar atrás na minha decisão e recomeçar pelo começo: assistindo à troca da guarda. Quando dei por mim, estava grudada no portão, com a cara no meio da grade, com aquele jeito bem turista pedindo para tirarem fotos de mim. Apesar de ser totalmente previsível, a troca da guarda dá um certo frenesi em todo mundo. Mesmo sabendo que os soldados vestidos de vermelho e chapéu de pelúcia vão passar marchando engraçado e nem olhar na sua cara é algo que mexe com a gente. Tanto que quando vi já estava na fila para comprar os ingressos para as visitas do “State Room”. Durante dois meses por ano, a Rainha deixa o palácio e seus súditos podem entrar em alguns aposentos por 18 libras. Pelo que vi por dentro, estou certa de que ela não precisa do dinheiro. Mas ela diz que é para a caridade. Não importa. O que importou mesmo  foram duas coisas: a fila de senhorinhas de mais de 80 anos era imensa. Eu era a ÚNICA jovem não grisalha na fila. Imediatamente lembrei-me da minha falecida avó Norma que amaria estar naquele lugar. Ela tinha verdadeira paixão pela realeza. E eu tinha verdadeira paixão por ela. Vi seu rosto em várias senhoras. Foi impossível não me emocionar. Também foi impossível não pensar naquela suntuosidade toda. Em um dos aposentos, de relance, me deparei com o meu rosto em um espelho. Assustei. Com tanta beleza diante dos olhos é difícil sentir-se bonita. Pensei na Princesa Diana. Diziam que ela não se sentia bem nesse lugar.

Já que eu estava me rendendo aos encantos mais tradicionais de Londres, é claro que baixei na Westmeinster. Como sempre faço em minhas viagens, decidi sentar no interior da abadia e agradecer a viagem, a família, os amigos, o trabalho, a vida. Da última vez que fiz isso foi em Notre Dame. Minha avó Norma estava bem doente e o último presente que dei a ela foi um terço de lá. Estava tão paralisada nos meus sentimentos que mal percebi um senhor dizer “The service will start now”. Como eu não sabia o que era o tal do “service” fiquei lá mesmo. Foi então que um padre chegou e começou a missa ou o “the service”. Foi lindo, tão lindo que quando vi estava ajoelhada no chão pegando a hóstia (que pode ser sem glúten e meu pai diria “God save the Queen”), tomando o vinho e recebendo a benção.

E se é para ir fundo, mergulhei de cabeça. Peguei uma bike e saí por aí para ter a experiência de  dirigir na mão inglesa. Foi uma das maiores e mais deliciosas aventuras da minha vida. Andei por todo Hyde Park, Speaker’s Corner. Enfrentei até o trânsito na hora do rush. E não é que depois de me perder tanto, acabei me encontrando?

Bell Gama

setembro/2012

 

 

 

Deus lhe pague

 

 

 

 

                                   ─ Dá uma moeda pra comprar um pão?

                                   Dou-lhe.

                                   E lá vai ele com o tostão furado

                                   comer o pão que o diabo amassou.

 

 

 

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=pODeQioMGRU[/youtube]

 

 

 

A origem do mundo

 

 

 

 

 Autorretrato de Courbet

 

 

          Selma Barcellos, com a sensibilidade e graça que lhe são características, suscitou no seu delicioso Bloghetto o quiproquó (sem trema não é a mesma coisa…) entre a Academia Brasileira de Letras e o historiador Jorge Coli que acusa a ABL “[…] de haver censurado sua conferência “Sexo não é mais o que era” para os que a acompanhavam ao vivo pelo site da casa. Motivo do corte? O alerta do conferencista de que seriam exibidas imagens pornográficas (fotos de felação em detalhes e por diversos ângulos, o quadro “A Origem do Mundo”, de Courbet, com genitália feminina em close avassalador…). A ABL se defende da acusação com base na lei que proíbe sites abertos de exibirem material pornográfico e a presidente Ana Maria Machado já convocou os ilustres colegas, o bolo de rolo e o chá para reunião urgente.”

          Selminha tem toda razão, a nudeza feminina do quadro de Courbet é avassaladora. Ninguém fica indiferente diante dela.

          Conhecia a pintura por fotos, que por melhores que possam ser nem de longe conseguem reproduzir o seu realismo extasiante (ou chocante). Fiquei definitivamente fascinado pelo quadro desde que o vi de perto no Musée d’Orsay. Como o menino Bandeira na sua velha Recife, diante de uma moça nuinha no banho, fiquei parado o coração batendo. Foi um alumbramento!

          Courbet, arrogante e desafiador, dizia que a sua pintura era contra a falsidade vigente na Arte e na sociedade oitocentista, enfurecendo os críticos da época que o acusaram de cultivar a fealdade, de se arvorar de paladino da causa do povo contra a Arte e de ser um revolucionário sem ideal.

          Consta que a obra, datada 1866, foi encomendada por um diplomata turco, colecionador de arte erótica, e mais tarde vendida para um antiquário, camuflada debaixo de outra tela de aspecto mais inocente. Passou de mão em mão até chegar a seu último dono, nada menos do que Jacques Lacan. Após a sua morte, a família doou o quadro ao Musée d’Orsay, onde passou a ser exposto somente a partir de 1995, deixando de representar então o paradoxo, quase lacaniano, de uma obra famosa, mas pouco vista.

          Creio também que a conferência de Jorge Coli possa ser muito interessante e gostaria de assisti-la.

          Mas uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.

          A transmissão ao vivo pela internet da palestra, ilustrada com as imagens tidas como pornográficas ou obscenas, sem controle algum daqueles que acessam o site da ABL, parece-me uma demasia, e até mesmo uma afronta às normas do Estatuto da Criança e do Adolescente.

          Alegar “censura” e “conservadorismo”, como o fizeram Jorge Coli e alguns outros, é uma falácia típica de quem, julgando-se iluminado e sapiente, pretende impor o seu senso estético e os seus valores à sociedade toda, sem respeitar as diferenças, as empatias, os contrários e até mesmo aqueles que ainda não têm maturidade e discernimento suficientes, o que se assemelha muito ao modo de pensar e agir dos fundamentalistas religiosos.

          A ABL errou no primeiro momento ao negar que houvesse tirado do ar a conferência. Deveria ter assumido desde logo a sua conduta acertada, o que só fez mais tarde.

          Logo depois de ver o quadro de Courbet, cheguei a perpetrar um poema sobre ele, que não lhe faz jus, mas expressa o que senti diante dele.

 

 

                              A origem do mundo

 

 

                                                                             Diante do quadro de Courbet

 

 

                    Súbito, tudo o que antes fora oculto,

                    obscuro, fechado, abotoado,

                    revela-se escancarado e descarado

                    como um hirsuto e bendito fruto

                    que se abre em dobras para o interior carnudo

                    numa explosão de cheiros e sabores

                    pressentidos mais do que sabidos.

 

                    Monte venusto, ígneo e absurdo,

                    cuja lava nos leva para o fundo

                    onde, misto de temor e deslumbre,

                    se encerra o começo e o fim de tudo.

 

 

 

Quem quiser ter uma pálida impressão do quadro, clique aqui

 

 

 

O sexo dos anjos

 

 

 

 

 

 

          Quando papai não está (o que ocorre pelo menos dois dias por semana), Babu vai buscar Manu na escola.

          No final do dia, ela é sempre a mais desgrenhada da turminha. Tintas variadas colorem seus dedos, respingam nas bochechas e no pescoço. Restos de massinha grudados na roupa e nos sapatos, o cabelo sem os laços e as fitas com que chega impecável no início da aula. Outro dia o cabelo, que ela diz ser “amarelo”, estava com uma mecha verde. Uma das professoras, sorridente, logo me tranquilizou 

          — É guache, só lavar que sai.

          No trajeto até sua casa, que se alonga em razão da hora do rush, sentada na cadeirinha ela matraqueia sem parar, conta-me o que fez e o que vai fazer, cantarola musiquinhas diversas.

          — Canta comigo, Babu!

          Depois de uma breve pausa, comunica radiante:

          — Babu, Manu tem “perereca”, mamãe tem “perereca”; papai tem “pipi”.

          Opa, não é cedo demais para isso? Ela só tem dois anos e meio!

          Mas se ela mexe no iPad muito melhor do que eu, não deveria me surpreender.

          Mantenho a naturalidade:

          — Isso mesmo! E o Babu, o que ele tem?

          Meditativa, murmura:

          — O Babu… O Babu… O Babu…

          E fulmina:

          — Que que você tem, Babu?

          Contenho o riso, e tento explicar:

          — O Babu não é igual o papai? Então…

          — A Maria Clara tem “perereca”; o Antônio tem “pipi”, replica.

          — Pois é. O Babu também se chama Antônio, contorno.

          — Não, Babu! O Antônio é meu amigo da escolinha…

          E logo muda de assunto, com a mesma sem-cerimônia que havia começado.

          Tomando nosso uísque da sexta-feira no “Bar do Chorinho”, relato o diálogo ao meu amigo Brenno.

          Ele se engasga com a bebida e quase cai da cadeira de tanto rir. 

          Quando se recompõe, me sai com esta:

          — Para ela Babu não tem sexo, idade, nome… “Babu” é uma entidade!

          Quem haverá de me aguentar esta “entidade” doravante?