Posts from dezembro, 2012

Ledor

 

 

                                               LIDA

 

 

 Brenno Augusto Spinelli Martins

 

 

                                   O que lia Camões?

                                   E Homero, o que lia?

                                   Então deixem que eu destile

                                   essa saliva de poesia

                                   sem antes nada ter lido.

 

                                   É que eu lido com um desfile

                                   de ideias, almas e conflitos

                                   sem ter lido o que antes fora escrito.

                                   Circunscrito na emergência,

                                   abdico da influência.

 

                                   Respeito os vários estilos,

                                   até porque um não tenho…

                                   Ora rimo, ora transgrido

                                   as mais elementares regras.

                                   Por isso tenho sofrido

 

                                   os mais severos castigos

                                   por quase nada ter lido.

                                   E lido com tal preconceito,

                                   de ser tratado de louco,

                                   só por ter lido tão pouco.

 

 

 

A cada dia confirmo o que já pensava quando caí nesta vida de blogueiro: um blog é feito muito mais por aqueles que o acessam, leem e comentam do que pelo seu mantenedor.

Ontem, ao comentar o post de Selma, Brenno saiu-se com o prodigioso poema acima transcrito.

Poeta fingidor e licença poética à parte ― já que o conheço há muito e sei bem que não é de ler assim tão pouco como diz ― os seus versos e a sua verve remetem a uma questão absolutamente apaixonante, que é a importância da leitura e dos livros na nossa vida.

Já se definiu o hábito ou a mania leitura como “vício impune” (será mesmo impune?). Mas, afinal, por que lemos e, sobretudo, por que insistimos em acumular livros, arrumá-los em estantes, especialmente nestes tempos descartáveis, de virtualidade e internet? Os livros, como objeto que conhecemos, estarão mesmo fadados a desaparecer?

As perguntas são muitas, e não serei eu, pobre de mim, a dar as respostas.

Em diversos ensaios de “Os Diamantes de Ophir” (Funpec Editora), Annibal Augusto Gama reflete agudamente sobre leitura, leitores e  livros:

 

“Se me perguntam o que é leitura, eu respondo que leitura é um esquecimento. Fechada a última página de um livro, já voaram as pombas dos pombais, que pode ser que voltem, mas os sonhos não voltam nunca mais. O sonho do leitor dura algumas horas, ou alguns dias, na convivência com outro sonho, o das personagens de ficção que andam errantes a se indagar de si mesmas.”

[…]

De outro modo, o verdadeiro livro envelhece, reverdece e torna frutificar. Cada geração lê o mesmo livro de maneira diferente. E todas as interpretações que se fazem sobre ele se completam, para depois outra vez o descobrirem. Os clássicos são clássicos porque não são clássicos. Porque são desvios de uma norma que se petrificou, e criam uma nova norma.”

(Da leitura)

  

“Fora de qualquer contestação, Os Lusíadas não são obra apenas de um grande poeta. São obra de um erudito, de um historiador, que tinha profundo conhecimento geográfico, estudara a cosmovisão ptolomaica, a astronomia, a medicina, a náutica, e outras ciências, vasculhara com mão noturna e diurna a mitologia, lera Virgílio, Ovídio, e os clássicos da literatura latina na própria língua, e Homero, Platão e Aristóteles em traduções, estudara os fenômenos atmosféricos, compulsara assiduamente Petrarca, impregnara-se do dolce stilo nuovo, abeberara-se em todos os escritores portugueses, enfim, que tinha um saber enciclopédico, abrangendo tudo o que se sabia na época.

Para tanto, no mínimo, seria preciso que Camões possuísse uma preciosa livralhada, uma biblioteca.

Como ajustar-se, porém, esta livraria, de difícil transporte, com a sua pobreza franciscana, com os seus desterros e prisões, com as suas viagens, abrigando-se em miseráveis choupanas onde foi largado como soldado raso? Indo nas naus para terras de África e da Índia, sem ter de seu mais do que uma muda de roupa e a espada, espremido nas enxergas dos tripulantes, como levaria consigo tantos autores e livros?

Ninguém o explica, nada o explica.”

(“A biblioteca de Camões”)

 

(Veja só que curioso: sem ter lido o ensaio, Brenno abre o poema indagando sobre o que lia Camões…)

 

“Pois bem: um livro são muitos livros. No seu texto assinado e autenticado pelo autor, podem ser descobertos textos de outros autores, ideias, metáforas, personagens, intrigas, paisagens, que vieram de séculos atrás, e que se achavam noutros livros.”

[…]

“Pode-se dizer até que um livro novo é sempre obra de uma cooperação universal, de que participam autores da mais remota antiguidade. Houve mesmo época em que esses autores muitos antigos, os clássicos greco-latinos, serviam de modelos indispensáveis para outros que o sucederam. Assim, Homero, com a Ilíada e a Odisseia, para Virgílio com a Eneida, e este e aquele para Camões, com Os Lusíadas, e assim por diante. Desta maneira, os autores são sócios ou irmãos de uma confraria em que estão reunidos todos os prosadores, todos os poetas.

Aquele que pretende ser absolutamente original e único, ao escrever um livro, ou é um tolo, ou um pretensioso, um ignorante. Para começo de conversa, ele veio ao mundo da mãe que o gerou, e com a ajuda de outro. Imediatamente, aqui encontrou amparo e ensinamentos de uma sociedade preexistente. Nunca esteve absolutamente só, mas se viu cercado de gente, e tudo, ou quase tudo lhe foi transmitido. Esse relacionamento, esse jogo de influências, são inarredáveis.”

(O livro, um palimpsesto).

 

Nessa mesma linha, Pierre Bayard, psicanalista e professor de literatura francesa da Universidade Paris VIII, no seu delicioso “Como falar dos livros que não lemos?” (Editora Objetiva), fingindo pilheriar, escrever mais um dos abomináveis livros de autoajuda ou de como se dar bem enganando os outros,  elabora um refinado ensaio sobre a cultura literária, formada tanto pelos livros lidos, quanto pelos não lidos, mas que de algum modo se conhece e assimila. Pois todo leitor, segundo Bayard, carrega consigo uma biblioteca, um repertório que lhe permite ter uma opinião legítima sobre um livro, mesmo que não o tenha lido. Ainda porque, as obras de fato lidas, afora aquilo que fica esquecido, com o passar do tempo vão se embaralhando e confundindo de tal modo que, ao discorrer sobre elas, falamos da lembrança imperfeita e distorcida que guardamos.

Assim, Bayard estabelece diversas categorias, como livro folheado, livro de que ouvi falar, livro esquecido e livro desconhecido, bem como qualifica os livros conforme sua relevância cultural.