Enquanto escovava, os dentes iam se soltando inteiros das gengivas e caindo dentro na boca.
Enfiava os dedos e os pegava um a um, bitelões, com raiz e tudo, aparentemente sadios.
Não doía, nem sangrava. Sentia apenas uma angústia profunda, desesperada, sem saber o que era aquilo.
Abriu a boca e se olhou no espelho para verificar o estrago. Estava com todos os dentes intactos. Correu o dedo indicador até o fundo, dos dois lados, em cima e embaixo. Nenhuma falha. Nenhum dente faltando. Mas se amontoavam no mármore da pia aqueles que havia tirado. Contou: 21!
Acordou sobressaltado, coração a mil, o suor escorrendo pelo rosto, o pijama empapado.
Correu ao banheiro e conferiu. Lá estavam todos os dentes, nada de anormal. Escovou-os com delicadeza e cautela (não caiu nenhum), e foi para a copa tomar o café da manhã.
Ainda incomodado, contou o pesadelo para a mulher, que sempre fora muito mística, intuitiva, espiritualista, em contraste com o ceticismo dele.
― Qual será o significado desse sonho, Clarice?
― Ué, você que não acredita em nada vem me perguntar?
― Quero saber o que você acha, ora bolas!
― Sonhar com dente caindo costuma ser sinal de alguma perda, ou então de traição. Mas você disse que continuava com todos os dentes, apesar dos que caíam! Isso é estranho…
― Só se você estiver me traindo, minha querida!
― Deixa de ser bobo, João! Perda nem sempre é uma coisa ruim. Pode significar renovação, uma nova fase, novas oportunidades, mudanças.
― Bom, fiquei na mesma, então. E com todos os meus dentes para morder o pernil de Natal, e também o seu…
Ela sorriu afetuosa e lhe remexeu os cabelos, num gesto de carinho e apoio que lhe era característico.
Apesar da pilhéria, passou o resto do dia incomodado, agitado, sem conseguir se concentrar em nada.
No final da tarde, no boteco em que costumava se reunir com os amigos, contou-lhes sobre o sonho, como se fizesse graça.
Às gargalhadas, cada qual deu um palpite mais destrambelhado do que o outro.
― Nostalgia da infância, meu caro! Dos dentes de leite que caíam e logo nasciam outros no lugar: “Oh! que saudades que tenho / Da aurora da minha vida, / Da minha infância querida / Que os anos não trazem mais!”
― Xi, rapaz… O seu Palmeiras caiu ― pode ser essa a explicação do sonho ―, o Corinthians foi campeão do mundo, andam dizendo que o mundo acaba agora, no dia 21, e você tá preocupado com dentes? Vão-se os dentes e ficam as gengivas. E a língua, que é importantíssima…
― Pera lá! Você não disse que contou 21 dentes que caíram da sua boca? Tá aí, pô: dia 21, fim do mundo! Vamo bebê, então…
De volta para casa, comeu pouco no jantar, sem apetite. Acompanhou desinteressado ao noticiário da TV. Folheou o jornal, remexeu nos livros, sem conseguir se fixar em nenhum. Pôs um disco para tocar, mas nem escutou as músicas. Tentou assistir a um filme. Mudou de canal várias vezes. Nenhum prendeu sua atenção.
Nessa inquietude, ouviu o velho relógio badalar duas horas da madrugada. A mulher fora se deitar pouco depois das onze. Sabia que ia se remexer na cama e atrapalhar o sono dela. Para não a incomodar, resolveu ficar num dos quartos dos filhos, que haviam levantado voo do ninho fazia tempo, mas logo estariam de volta, temporariamente, para as festas do fim de ano.
Tragou uma bela dose de uísque, caubói, recostou-se na cama e se forçou a prosseguir na leitura de um livro policial que o estava agradando muito. Depois de algumas páginas, acabou adormecendo e quando despertou a manhã já ia alta.
Tinha um gosto ruim na boca e se lembrou então que dormira sem escovar os dentes, o que lhe trouxe de volta o sonho perturbador.
Foi até o banheiro anexo ao quarto do casal, lavou o rosto, pegou a escova e colocou a pasta. Embora quase nunca fizesse isso, para facilitar a limpeza tirou com algum esforço as dentaduras duplas, perfeitas, imperceptíveis, que discretamente passara a usar havia cerca de três anos. Sobre a pia, brancos e perfilhados, os dentes pareciam lhe sorrir, sorrateiros.