Se estivesse vivo, João Rubinato teria completado ontem, dia 6, 103 anos.
Morto, é a prova viva de que a profecia de Vinicius de Moraes — que perdia o amigo, mas não perdia a piada — era mesmo só um chiste: São Paulo não é, nem jamais foi o túmulo do samba.
João Rubinato não é nome de sambista. Então ele pegou o nome de um amigo e o sobrenome de outro e criou o personagem Adoniran Barbosa (em que de fato acabou se transformando), cujo tipo físico, de chapéu, paletó, gravatinha borboleta e a voz roufenha foi inspirado em outro personagem cômico que ele encarnava com muito sucesso, o Charutinho.
Como todo gênio, criou uma língua própria para expressar o sentimento da sua gente e o seu universo, um misto de italianês com paulistanês, com uma sintaxe peculiar e adorável, e expressões inefáveis, como “tiro ao álvaro”, “a situação aqui tá muito cínica”, “nóis viemo aqui pra beber ou pra conversar?”, e até uma iguaria, “torresmo à milanesa”, entre tantas outras. Com relação a esta última, da canção do mesmo nome em parceria com Carlinhos Vergueiro, este lhe indagou se existia aquele tipo de torresmo, ao que lhe respondeu que nunca tinha visto nem comido, mas que devia ser muito gostoso, além do que rimava com Tereza…
O enxadão da obra bateu onze hora
Vam s’embora, João!
Vam s’embora, João!
O enxadão da obra bateu onze hora
Vam s’embora, João!
Vam s’embora, João!
Que é que você troxe na marmita, Dito?
Troxe ovo frito, troxe ovo frito
E você beleza, o que é que você troxe?
Arroz com feijão e um torresmo à milanesa,
Da minha Tereza!
Vamos armoçar
Sentados na calçada
Conversar sobre isso e aquilo
Coisas que nóis não entende nada
Depois, puxá uma páia
Andar um pouco
Pra fazer o quilo
É dureza João!
É dureza João!
É dureza João!
É dureza João!
O mestre falou
Que hoje não tem vale não
Ele se esqueceu
Que lá em casa não sou só eu
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Como dizia Manuel Bandeira, na sua antológica Evocação ao Recife:
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada.
Adoniran não teve educação formal, mas sabia o que fazia, tinha cultura e conhecia a chamada norma culta, que utilizava quando entendia necessário. Uma prova disso é a sua parceria inusitada com Vinicius de Moraes, que antes o havia criticado por estropiar a língua portuguesa em “Samba do Arnesto”.
Até que um dia, de repente, não mais do que de repente, Aracy de Almeida, então morando e trabalhando em São Paulo na TV Record, passou ao colega Adoniran um papel que recebera de Vinicius com um poema e atribuições plenipotenciárias: “faça o que quiser com ele”.
O poema — na esteira da onda existencialista e do livro de Françoise Sagan — se tornou a letra do antológico samba-canção “Bom dia, tristeza”, composto por Adoniran inteiramente fora do padrão melódico dos seus sambas paulistanos, como a dar a resposta do seu imenso talento.
O diplomata Vinicius estava em Paris, integrando a delegação brasileira na Unesco, e de lá acompanhou o repentino e estrondoso sucesso da canção, gravada inicialmente por Aracy Cardoso e em seguida por outras cantoras consagradas, como Elizeth Cardoso e Maysa (esta encarnava como ninguém a personagem do poema). Adoniran achava que a melhor gravação e interpretação de todas era a de Mauricy Moura, ele próprio gravou “Bom dia, tristeza” mais de uma vez e chegou a incluir uma introdução falada bem ao seu estilo (seria uma réplica bem-humorada a Vinicius?): “A tristeza é um bichinho que para roer está sozinho. E como rói, a bandida. Parece rato em queijo parmesão”.
Além dos vários clássicos, “Trem das Onze”, “Saudosa Maloca”, “Samba do Arnesto”, quem mais teria a ousadia de fazer um impagável “Samba Italiano”?
Falado:
“Gioconda, pitina mia,
Vai brincar alí no mareí no fundo,
Mas atencione co os tubarone, ouvisto?
Capito meu san benedito”.
Piove, piove,
Fa tempo que piove qua, Gigi,
E io, sempre io,
Sotto la tua finestra
E vuoi senza me sentire
Ridere, ridere, ridere
Di questo infelice qui
Ti ricordi, Gioconda,
Di quella sera in Guarujá
Quando il mare ti portava via
E me chiamaste
Aiuto, Marcello!
La tua gioconda ha paura di quest’onda
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Juntamente com Paulo Vanzolini ─ que em maio deste ano foi se encontrar com Adoniran (AQUI) ─ e Germano Mathias ─ outro sambista excepcional, quase esquecido (AQUI) ─ retratam o universo da verdadeira boemia paulistana, com seus malandros e mulheres, desvalidos e trabalhadores, sonhadores e desesperançados.