Posts from setembro, 2013

Uma mulher em todas as outras

 

              Annibal Augusto Gama

Annibal

 

 

 

 

 

 

 

            Hesitei em ir-lhe dizer que tudo estava acabado entre nós, mas afinal fui. E ela me respondeu:

            — Nada acaba, tudo continua e se transforma.

            Ignoro se ela sabia disso através de Lavoisier.

            — Se tudo continua e se transforma, eu me transformei e, por isso…

            Ela me interrompeu:

            — Eu vou continuar, ainda que transformada, em você.

            Era justamente isso que me aborrecia, ou perturbava, nela: essa competição filosófica que nos acompanhava até na cama.

            — Margarida, por que você não é simplesmente Margarida? — perguntei-lhe.

            — Eu sou Margarida e todas as mulheres — ela rebateu.

            E tinha razão. Cinquenta anos depois, ela permanece, transformada ou não, em mim.

            Que raio de mulher persistente, que é a mesma e todas as outras!

 

margaridas

 

 

 

Pequeno concerto que virou canção

 

 

 “Pequeno concerto que virou canção” (Geraldo Vandré), com ele

[youtube]https://www.youtube.com/watch?v=xX5t96597QA[/youtube]

 

Não

Não há por que mentir ou esconder

A dor que foi maior do que é capaz meu coração

Não

Nem há por que seguir

Cantando só para explicar

Não vai nunca entender de amor

Quem nunca soube amar.

Ah…

Eu vou voltar pra mim

Seguir sozinho assim

Até me consumir

Ou consumir

Toda essa dor

Até sentir de novo

O coração

Capaz de amor.

 

 

A dedicatória de Neruda

 

 

Neruda 2

 

“Eram poucos livros, estendidos sobre o jornal, na calçada e subindo pela parede úmida, um sobre o outro. Livros de um sonhador, talvez um ativista. Livros de esquerda. O de capa cinza mole, pequeno e gordo, era o Canto General, de Pablo Neruda. Ali expostos, solitários, naquela noite úmida, pareciam fruto de um botim, despojos de um derrotado. Eram como as botas que o soldado arranca das pernas inúteis do que já tombou. Havia um drama por trás daquela oferta mirrada, naquele vão escuro da Avenida São João. Uma história triste que os livros pareciam querer contar. Estamos aqui, mas quem nos lia está preso. Ou então, estamos aqui, mas quem nos lia conseguiu escapar. Quem sabe naquela mesma hora o dono desses poucos livros era interrogado num pau de arara, tomando choques elétricos no pênis? Ou talvez já estivesse morto? Ainda que tenha escapado, é certo que sua pequena estante foi desfeita pela violência. O vendedor não teme exibir esses livros. Não o assusta o golpe militar ainda em curso; os rumores de prisões. Não sabe que são livros de esquerda. Não sendo o dono dos livros, quem é ele? Seria o seu algoz? Um cúmplice da repressão? O encarregado da pilhagem? Ou um oportunista qualquer? Comprei o livro de Neruda sem olhar para a sua cara. Canto General é um longo poema épico de exaltação ao continente americano, suas florestas, seus pássaros, seus répteis suas, frutas, rios e montanhas. Também descreve os tipos desse continente mil vezes saqueado, os grã senhores, os golpistas, os señoritos a serviço dos estrangeiros. O Neruda dos dez poemas de amor y una canción desesperada era um dos nossos heróis. Anos depois, partimos para um exílio voluntário em Londres. Levei, entre poucos livros, o Canto General. No Brasil seguiram-se as prisões, fugas, desaparecimentos. No Chile, venceu a Frente Popular. Dezenas de brasileiros refugiaram-se no Chile, alguns participando do governo Allende. Quem sabe o dono daqueles livros na calçada era um deles? Neruda torna-se embaixador do Chile na França Uma noite, dá um recital no Queen Elizabeth Hall, de Londres. Após os aplausos, vou vê-lo no camarim; nas mãos, o pequeno e envelhecido Canto General. Não lhe digo nada, apenas lhe estendo o livrinho e uma caneta. Neruda fita-me com aqueles olhos de peixe grande. Não estranha uma edição tão antiga e já tão gasta de seu Canto General. Não pergunta meu nome. Escreve na contra – capa, num só lance: “A usted, Pablo Neruda.” A síntese do poeta. Depois, aconteceu o que aconteceu. Pinochet assassinou todos os esquerdistas que conseguiu pegar, mais de dez mil, estima-se. Nunca se saberá ao certo. Também nunca saberei se entre eles estava o dono daquele Canto General. “A usted”, lhe digo mentalmente, sempre que releio seu livro, sem saber até hoje quem era ele, se escapou, ou desapareceu, numa das fossas coletivas do massacre chileno.”

(Bernardo Kucinski / publicado na revista Cult).

 

 

P. S.

Dia 11/9/1973: golpe militar no Chile.

Dia 12/9/1935: nascimento de Geraldo Vandré (AQUI).

 

 

Sementeira

 

 

 

semente

 

 

                                       SEMENTEIRA

 

 

                                        O verso é semente

                                        que floresce

                                        ou fenece.

 

                                        Aguarda paciente

                                        ser apalavrado

                                        ou negado.

 

                                        O fruto bendito

                                        é fel e mel

                                        agridoce sumo.

 

                                        Palavra dada

                                        não volta atrás

                                        fica o dito por não dito.

 

 

                                        

Receba as flores que lhe dou

 

            Selma Barcellos

Selma no Jardim de Luxemburgo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sergio Porto (caricatura de Lan)

 

Tunica, eu tô apagando” foram as últimas palavras de Sérgio Porto, nosso Stanislaw Ponte Preta, em setembro de 68, vítima de infarto e possivelmente excesso de trabalho, uma vez que a amigos próximos andara se queixando de “levantar o olho da máquina de escrever só pra botar colírio”.

Forte, bonito, elegante, simpático, inteligente, Porto era um privilegiado sem exibicionismos, a quem “só faltava dinheiro, como de resto ao grupo todo,” ─ escreveu Paulo Mendes Campos, amigo de décadas ─ “que mesmo mal pagos, tínhamos de aceitar as ofertas que a imprensa nos fazia como um favor, bicando aqui e ali, sofrendo na carne os atrasos do caixa, brigando pelo dinheirinho de cada dia. Mas o clima não era de miséria nem de tristeza: bebíamos crepuscularmente nosso uísque escocês no Pardellas da Rua México, dançávamos no Vogue, andávamos de táxi. Já que o dinheiro era pouco, o jeito era gastá-lo no essencial: o apartamento próprio que esperasse.”

 Dono de tentações irresistíveis ─ “passear na chuva, rir em horas impróprias, dizer ao ouvido de mulher besta que ela não é tão boa quanto pensa” ─ e medos absurdos ─ “qualquer inseto taludinho (de barata pra cima)”, Porto se aborrecia quando o julgavam um cínico; era apenas um sentimentalão que não “aguentava uma gata pelo rabo” . Em poucas palavras traçou o retrato de uma época dourada, mas repressiva em matéria de sexo, em que as praças e cantinhos escuros eram o desafogo: “Se peito de moça fosse buzina, ninguém dormia nos arredores daquela praça.”

 Numa chegada a Buenos Aires, ainda segundo Paulinho Mendes, “avião estacionado, entrou nele um médico da saúde pública, um homem ruivo e bastante calvo. Pedindo aos passageiros que exibissem o atestado de vacina, o médico estendeu a mão para Sérgio, ao mesmo tempo que dizia em tom cavo e impessoal: “Vacunación, señor.” Como se estivesse recebendo um cumprimento de boas-vindas, Stanislaw (aí era ele), muito grave, apertou a mão do médico, falando claro e efusivo: “Vacunación para usted también?” O médico, rubro de indignação, expulsou-nos do avião, sem mais exigir o documento sanitário e, enquanto eu explodia de rir, ele sussurrava-me entre os dentes: “Aguenta a mão, se não a gente acaba em cana.”

Lembro-me da comoção que a notícia da morte prematura (45!) de Stanislaw e, com ele, de Tia Zulmira, Primo Altamirando e Rosamundo, causaram em mim e no pai. Líamos e ríamos juntos daquelas tantas delícias.

Lan dedicou ao amigo a genial caricatura que ilustra o post. Admiravam-se em suas artes. Ainda que Stanislaw o entregasse em alguma coluna:

 lanestrela

 

Como tem bamba lá em cima. Já pensaram Stanislaw, Millôr, Braga e Drummond no uisquinho crepuscular? Se tiver primavera então…

 

 

Rush

 

           Adalberto de Oliveira Souza

Adalberto 2 (2)

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                           HEURE DE POINTE

 

                                                           Le soir fébrile,

                                                           tempes ardentes,

                                                           sueurs,

                                                           joies innocentes,

                                                           ordres sûrs.

 

                                                           Le sifflet.

 

                                                           Et le trafic

                                                           jette sur la poitrine

                                                           l’épée

                                                           blessant le journal

                                                           le lendemain

                                                           et la nuit

                                                           continue calme.

 

 

Acerto de Contas 

 

                                   RUSH

 

                                   Febril a tarde,

                                   arde nas têmporas,

                                   suores,

                                   alegrias leigas,

                                   ordens seguras.

 

                                   Silva o apito.

 

                                   E o trânsito despeja

                                   no peito a espada

                                   ferindo o jornal

                                   no dia seguinte

                                   seguindo a noite

                                   calma.