Ontem à noite fui assistir, finalmente, ao filme “O Artista”.
Saí do cinema literalmente sem palavras, com vontade apenas de sorrir um largo e contagiante sorriso, de dançar, sapatear, ter um cãozinho fiel e companheiro, um mordomo querido (que nem se importa em receber o salário), render-me, por fim, à sedução de uma pintinha no canto da boca (por incrível que possa parecer — e que deliciosa coincidência — uma das primeiras canções, se não a primeira, que Brenno e eu fizemos juntos chama-se “Cantiga para ninar menina com pintinha no canto da boca”, e nasceu logo após termos conhecido a encantadora dona dessa pintinha).
O filme nos transporta para a época de ouro do cinema, e de um tempo da delicadeza que tanto falta faz, dos prazeres mais simples e essenciais.
Como eram lindas as roupas das mulheres — e insinuantemente sensuais, com decotes fundos, franjas e aberturas, os vestidos já acima dos joelhos —, os chapéus! Com que elegância e charme se trajavam os homens!
O roteiro reúne todos os clichês do cinema mudo — e tinha de ser assim —, mas sem cair jamais na caricatura ou no pastiche. Muito pelo contrário, além da fotografia (foi rodado em cores e convertido para preto e branco), da iluminação e dos enquadramentos primorosos, há diversas tomadas antológicas, como o pesadelo sonoro do astro George Valentin (que além da referência óbvia a Rodolfo Valentino, tem muito de Charles Chaplin e Errol Flynn, que igualmente penaram na transição do cinema mudo para o sonoro), o encontro dele, já no início da derrocada, com a nova estrela em ascensão Peppy Miller numa escadaria vazada, como um cenário de teatro, enquanto várias pessoas descem e sobem; ele em plena decadência, quase um vagabundo, visualizando-se vestido com o fraque da vitrine e a aproximação do guarda implicante (puro Chaplin); o final maravilhoso, com as câmeras abrindo para o estúdio, a revelar a realidade mágica do cinema (lembrou-me Fellini em “E la nave va”, e Truffaut, em “La Nuit Américaine”).
Ah, a arrebatadora química de Jean Dujardin (George Valentin) e Bérénice Bejo (Peppy Miller)!
Quando as luzes se apagavam para o início da sessão, contei exatamente doze expectadores, incluindo-me, na sala.
Depois de alguns trailers barulhentíssimos — meu bom Deus, como as atuais salas tecnológicas têm o som ensurdecedor! —, foi reconfortante mergulhar no mundo onírico do cinema mudo, em que a música (na época executada por orquestras ao vivo) conduz a trama e o sonho.
No final, tive a pachorra de voltar a contar: havia, comigo, vinte e oito gatos pingados. Parecia o filme fracassado de George Valentin, “Tears of Love”.
Quem haverá de se interessar por delicadezas nestes tempos de grosserias e espertezas? (Aliás, um sujeito sentado próximo a mim passou o tempo todo teclando e afagando o precioso smartphone, o que me fez mudar para outro assento da sala vazia).
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Nossa! Tô indo pro cinema daqui a pouco. Enquanto isso vou cantarolando a “Canção Suave para Ninar a Menina com Pintinha no Canto da Boca”:
“(Sabe o que eu não consigo esquecer naquela menina?
é a pintinha que ela tem… no canto da boca.)
Pra fazer uma canção, assim, tão de você
É preciso ter inspiração sem fim.
É preciso me desligar completamente
E só ter na minha mente
A imagem de você…
Precisa ser tão suave
Como o encontro dos meus lábios ccom os seus…
Como seu corpo, que meu abraço envolveu.”
Não era “Cantiga”?
“Suave” você tem razão,escapou-me.
Vivam os BAIBA (Benditos Arquivos Implacáveis do Brenno Augusto)
Abração.
Antonio, por tudo que você tão sensivelmente observou, também saí da sala extasiada. Belíssima homenagem ao cinema, valorizada pela interpretação antológica de Dujardin.
Concorda que Woody Allen gostaria de tê-lo assinado? Em alguns momentos vi a genialidade dele…
E palmas para os compositores de “Canção Suave”. Inspiradíssimos.
Beijocas!
Tem algo mesmo de “Meia-Noite em Paris”.
A mesma atmosfera deliciosamente nostálgica.
Woody Allen não só assinaria, como deve estar batendo na cabeça por não ter pensado nisso antes.
Selma, com sua delicadeza, deixou de mencionar alguns insights brilhantes dela sobre o filme, que havia comentado comigo por e-mail. Disse-lhe que tais sacadas complementavam e abrilhantavam o post e lhe pedi para expressá-las aqui, mas ela se reservou.
Abusando da amizade que nos une, tomo a liberdade de acrescentá-las agora:
“Um achado o nome Peppy (means serelepe) Miller – suponho uma referência ao inconsciente coletivo americano, pelo som: Pepsi and Miller.
Reparou que a música parou quando eles finalmente se beijam? Tudo para mesmo.
Reparou que a cena final não deixou de ser “muda”, como ele ainda sonhava?
Linda a cena do cabide nas mãos da Peppy, além daquela do reflexo na vitrine.”
Beijocas agradecidas, Selma.