Atestado de Bamba

 

 

 

 

            Um dos fundadores da gloriosa Estação Primeira de Mangueira, mestre Cartola teria dedicado o primoroso samba “Fiz por você o que pude” a Nelson Sargento, filho adotivo de Alfredo Português, também fundador da Escola, ambos, pai e filho, parceiros de Cartola.

            Rei incontestável da ala dos compositores da Mangueira, Cartola via em Nelson Sargento, a quem com apenas 12 anos de idade havia ensinado os primeiros acordes de violão, potencial para se tornar seu príncipe herdeiro.

            Mais do que isso, porém, Cartola cantava a extraordinária cadeia de compositores das velhas Escolas que não deixavam o samba morrer: “Surge outro compositor com mesmo sangue na veia”.

            Consta que Nelson Sargento somente soube que a canção era dedicada a ele depois da morte de Cartola, quando Dona Zica lhe contou. Mesmo antes de saber, porém, Nelson já havia de certa forma respondido a Cartola ao dizer em outra antológica composição que “o samba agoniza mas não morre”.

            Quando “Fiz por você o que pude” foi lançada, vários críticos imbecis apontaram com seus dedinhos horrorizados o imperdoável erro de português no verso “Eis que Jesus me premeia”, dizendo que Cartola forçara a barra para rimar com “veia”.

            Cartola, na sua humilde majestade (ele estudou apenas até a quarta ano do primário), ficou chateado e envergonhado, e até mesmo deixou de cantar o samba. Justificou-se depois explicando que no momento da composição ficara em dúvida, mas que havia lido nos sermões de Vieira, que provavelmente seus críticos nem mesmo folhearam: “Assim castiga, ou premeia Deus”.

            O novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (que pelo menos para isso serviu) atestou definitivamente o acerto de Cartola. Embora pouco usada por aqui, a forma “premeia” é comum em outros países da comunidade lusófona. A partir do acordo, portanto, não há dúvida quanto à correção das formas “negocio” ou “negoceio”, “noticio” ou “noticeio”, “calunio” ou “caluneio”, e “premio” ou “premeio”.

            Abaixo, uma gravação do antológico samba em que foram mescladas as interpretações do próprio Cartola e de Paulinho da Viola, que — apesar de portelense — é para mim, com todo o respeito e carinho ao imenso Nelson Sargento, o mais perfeito sucessor de Cartola na história do samba, não apenas pelo estilo refinado das composições, mas sobretudo pelo jeito de ser ao mesmo tempo simples e fidalgo, que só os de sangue bom têm.

            Em seguida, a não menos antológica canção de Nelson Sargento, “Agoniza mas não morre”, cantada por ele e a maravilhosa Teresa Cristina.

 

 

Fiz por você o que pude

(Cartola)

 

Todo o tempo que eu viver

Só me fascina você, Mangueira

Guerreei na juventude

Fiz por você o que pude, Mangueira

Continuam nossas lutas

Podam-se os galhos, colhem-se as frutas

E outra vez se semeia

E no fim desse labor

Surge outro compositor

Com o mesmo sangue na veia.

 

Sonhava desde menino

Tinha o desejo felino

De contar toda a tua história

Este sonho realizei

Um dia a lira empunhei

E cantei todas tuas glórias

Perdoa-me a comparação

Mas fiz uma transfusão

Eis que Jesus me ‘premeia’

Surge outro compositor

Jovem de grande valor

Com o mesmo sangue na veia.

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=vQQ2eebwhGI]

 

 

 

Agoniza mas não morre

(Nelson Sargento)

 

Samba, agoniza mas não morre,

Alguém sempre te socorre,

Antes do suspiro derradeiro.

 

Samba, negro, forte, destemido,

Foi duramente perseguido,

Na esquina, no botequim, no terreiro.

 

Samba, inocente, pé-no-chão,

A fidalguia do salão,

Te abraçou, te envolveu,

 

Mudaram toda a sua estrutura,

Te impuseram outra cultura,

E você nem percebeu.

 

[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=KC4XGs9To5M]

 

 

 

 

4 comentários

  1. 19/03/12 at 17:26

    Mas Paulinho da Viola é mangueirense… Como se explica ele compor (com Hermínio Bello) tamanha lindeza:

    “Em Mangueira a poesia feito um mar se alastrou
    E a beleza do lugar, pra se entender,
    Tem que se achar
    Que a vida não é só isso que se vê
    É um pouco mais
    Que os olhos não conseguem perceber
    E as mãos não ousam tocar
    E os pés recusam pisar…”

    É muito mais do que o rio que passou na vida dele… rsrsrs…

    Já lhe contei que meu segundo bloco preferido chama-se “Agoniza mas não morre”? Pois. Só tem bamba, Antonico!

    Adorei a abordagem ortográfica, a seleção das músicas, e não titubeio nem negoceio: premeio este blog com um Estandarte de Ouro verde e rosa.

    Beijocas!

  2. André
    20/03/12 at 22:03

    Oi Gama! Muito boa lembrança dos mestres Cartola e Nélson Sargento.
    Ainda sobre essa música, Agoniza Mas Não Morre tbém foi gravada pela grande diva do samba Beth Carvalho no seu antológico LP De Pé no Chão, em 1978.
    Aliás, pra mim, as duas maiores cantoras de samba do Brasil são Beth Carvalho e Clara Nunes, fora a Cristina Buarque, irmã do gênio Chico, não sei se vc já ouviu falar, seu maior sucesso, Quantas Lágrimas, ficou definitiva com ela!
    “Ah, quantas lágrimas eu tenho derramado… mas hoje em dia eu não tenho mais a alegria dos tempos atrás”
    Abraço.

    • Antonio Carlos A. Gama
      21/03/12 at 0:07

      Caro André, supondo que você seja o meu ex-aluno, cujo e-mail aqui deixado é “naotenho@naotenho.com.br”, é um grande prazer tê-lo aqui, e que você tenha finalmente rompido o silêncio.
      Volte sempre.
      Se não for o referido André, continue a participar mesmo assim.
      Um abraço.

      • André
        21/03/12 at 21:49

        Oi Gama, sou eu mesmo, o André, seu ex-aluno!
        Só coloquei esse e-mail (naotenho@naotenho.com.br) por questões de privacidade.
        Vou voltar sim!
        Um abraço.

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