Agora tinha virado moda, um meio de atrair turistas, e muitas outras cidades copiavam, mas a encenação da Paixão de Cristo era uma tradição imemorial naquela longínqua cidadezinha do interior.
Ele sempre fora fascinado pela representação, e desde criança se preparara para um dia participar dela.
Começou como mero ajudante, carregando apetrechos e prestando auxílio aos atores. Sempre solícito e interessado, acompanhava tudo de perto, as primeiras reuniões, os ensaios iniciais, enfronhando-se cada vez mais na montagem do grande espetáculo. Depois, passou a figurante, até que um dia, finalmente, assumiu um dos papéis principais.
Seu sonho secreto sempre fora encarnar Jesus Cristo, mas sabe-se lá por que razão acabou ficando com o papel de Judas Iscariotes.
Fazia já quarenta anos!
A cada ano mais se aprimorava e entranhava no personagem, especializando-se sobre ele, com pesquisas e leitura de tudo o que lhe vinha às mãos.
Depois de tanto tempo, desenvolvera sincera afeição por Judas Iscariotes, e até mesmo certa identificação. Comiserava-se com o seu destino trágico que lhe fora traçado à revelia. Se ele não o tivesse cumprido, Cristo tampouco cumpriria o seu, e não haveria a Sexta-Feira da Paixão.
Tornara-se o mais velho ator da companhia, que já substituíra algumas vezes o ator que fazia Jesus, sem nunca cogitar, porém, de passar a outro o papel de Judas, que ele representava cada vez melhor, segundo a opinião geral.
Respeitado e admirado por todos, a sua última cena de arrependimento e morte na forca era um dos pontos altos da apresentação, sempre aplaudida com entusiasmo pelo público.
Mesmo assim, resolvera que este seria o seu último ano como Judas. Estava envelhecido, e apesar das roupas e da tintura na barba e nos cabelos longos (jamais admitira usar peruca ou barba postiça), sentia que seu aspecto físico começava a destoar do restante do elenco, bem mais jovem do que ele.
Era difícil e sofrido, mas havia tomado a decisão em caráter irrevogável, resistindo bravamente aos apelos para que continuasse. Esse era o seu gesto derradeiro a confirmar como era grande a sua paixão pelo espetáculo.
Esmerou-se como nunca para o seu canto do cisne, prometendo a si mesmo que ninguém jamais esqueceria a sua atuação.
E assim foi. Depois de sua fala final, passou a corda em volta do pescoço e se lançou ao espaço, como fizera tantas vezes antes, encenando o enforcamento de Judas Iscariotes.
Os aplausos e gritos de “bravo” explodiram em cena aberta, enquanto ele pendia na forca e as luzes pouco a pouco se apagavam para que o drama prosseguisse em outro cenário.
Só depois do encerramento, enquanto todos se confraternizavam, é que deram pela sua falta, mas pensaram que ele tivesse preferido sair de mansinho, esquivando-se das despedidas.
Já era muito tarde quando afinal o encontraram dependurado na forca, absolutamente imóvel, com os olhos cerrados e um leve esgar no rosto.
O caso será investigado pela Polícia Civil da cidade.
O Sábado de Aleluia amanheceu límpido, com um sol esplendoroso, e logo as ruas da cidade estavam tomadas pelo povo para a não menos tradicional Malhação do Judas.
É preciso morrer um Judas de vez em quando.
Meu caro e brilhante escritor, tenho acompanhado essa história até porque a cidade em que ocorreu o fato é de onde minha “norinha” veio e eu já havia feito troças com ela dizendo que só mesmo lá pra acontecer coisas assim.
Itararé é uma cidadezinha mínima quase caindo do mapa lá na divisa. Penalizou-me a situação do jovem ator e espero realmente que ele se recupere. Perdoem-me todos, mas v. contando a história como o fez acima, não pude conter o riso. Foi uma representação muito real, coitadinho. E acabou malhado antes da Aleluia.
No próximo ano, contando com a recuperação do rapaz que já está sendo prevista, espero que lhe reservem um papel mais condizente com seu sacrifício para então ele encerrar sua carreira na representação da Paixão.