Dia dos pais

 

 

“Eu Sou o que Sou” (Êxodo 3:14).

 

 

Durante o jantar, repentinamente, ela lhe disse que talvez fosse o momento de terem um filho.

Falou de modo casual, quase distante, como se comentasse sobre o clima ou um acontecimento do dia. Aliás, no próximo domingo se comemorava o dia dos pais.

E prosseguiu com sua lógica implacável de bióloga doutoranda. Estavam casados há cinco anos, depois de dois anos de noivado. No mês seguinte pagariam a última prestação do confortável apartamento que haviam comprado. Cada um tinha o seu carro novo, ambos já quitados. Não havia motivo, portanto, para maiores preocupações financeiras. Ela já estava com 34 anos e ele faria 40 dentro de três meses. Esperar mais não seria conveniente e até mesmo perigoso para ela e a criança.

Ele a olhou com surpresa, nada disse, levantou-se da mesa e ligou a televisão para assistir ao noticiário noturno.

Por que não o entusiasmava a ideia de ser pai?

Não é aspiração de todo homem perpetuar-se nos filhos e netos?

O casamento transcorria placidamente, sem grandes crises ou arroubos. Ela era inteligente e boa companheira, embora um tanto contida na cama. Não podiam reclamar da vida. Todos os anos viajavam de férias e já tinham ido quatro ou cinco vezes ao exterior, de férias. Ela preferia os EUA, ele, a Europa.

Terminado o jornal, ela passou a assistir a um filme e ele foi para o escritório que dividiam.

Não conhecera o pai. A princípio sua mãe dizia que ele estava morto, mas descobriu depois que haviam sido abandonados quando era ainda bebê, o pai constituíra nova família e morava em outro estado.

Cogitou algumas vezes procurá-lo, mas sempre adiou a decisão, até que desistiu definitivamente de fazer contato. Já adulto, de que adiantaria isso? Que tipo de relação poderiam ter?

Era agnóstico, mas gostava muito de ler a Bíblia com suas histórias fabulosas, em especial o Velho Testamento, talvez o maior romance de todos os tempos.

Consta que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, portanto o sentimento paternal deveria ser um reflexo, ainda que imperfeito, do amor divino.

Mas Deus, pelo menos o iracundo Iavé, é um pai absolutamente terrível! Autoritário, ciumento, exigente, vingativo, que não admite ser contrariado e castiga impiedosamente os filhos.

A começar por Adão e Eva. Puros e inexperientes, bastou o primeiro ato de desobediência influenciados por um espírito maligno e ardiloso (cuja existência ignoravam), para que fossem expulsos do Jardim do Éden, sem  complacência alguma.

— Com dor terás filhos; e o teu desejo será para teu marido, e ele te dominará, impôs a Eva.

— No suor do teu rosto comerás o teu pão, infligiu a Adão.

Apenas para pôr à prova a lealdade e a fé de Abraão, determinou-lhe que sacrificasse o inocente e amado filho Isaac, só o detendo no último instante, de modo quase sádico.

Dos Dez Mandamentos que insculpiu a fogo em duas tábuas de pedra e entregou a Moisés, os quatro primeiros determinam que seja amado e reverenciado sobre todas as coisas. Depois puniu o pobre Moisés, impedindo-o de entrar na Terra Prometida, para onde o encarregara de conduzir os hebreus, simplesmente porque Moisés, ao descer do Monte Sinai perdeu a calma e fez cumprir aqueles mandamentos, destruindo com as próprias tábuas do decálogo o Bezerro de Ouro que o seu povo se pusera a adorar na sua ausência.

Jonas, até então um profeta e servo fiel do Senhor, por haver descumprido a ordem de que viajasse até Nínive, foi lançado ao mar e engolido por um grande peixe, que depois o vomitou na praia para que enfim cumprisse a sua missão.

O que dizer da misteriosa provação imposta a Jó, descrito como um homem sincero, reto e temente a Deus, que se desviava do mal? Mesmo assim, sem nenhuma explicação se vê despojado de tudo e lançado na mais negra desgraça, a tal ponto que sua mulher chegou a lhe dizer:

— Ainda reténs a tua integridade? Amaldiçoa a Deus, e morre.

Os episódios são inúmeros, o Dilúvio, a Torre de Babel, e tantos outros.

A nova aliança com os homens é feita com o martírio e o sangue do Filho, que pregado na cruz lastima:

— Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonastes?

Passou a noite em claro, lendo e pensando em tudo isso. Tomou banho e tratou de ir para o trabalho antes que ela acordasse.

Depois do expediente, passou por um bar, adiando o quanto podia o retorno para casa.

Durante o jantar, encarou gravemente a mulher e lhe disse que queria a separação.

 

saturno devorando seu filho (Goya)

Saturno devorando a un hijo, Goya

 

 

 

2 comentários

  1. paulinho lima
    14/08/13 at 12:51

    Uma cônica. prefira até chamá-lo de conto. Não por desmerecer as crônicas, da quais sou um apaixonado e colecionador. mas pelo desenvolvimento do texto.
    Ser pai não é dar nome ao filho e muito menos batizá-lo. É viver , dar vida com um companheiro de convívio comum. compartilhar crescimento. Ser amigo, o melhor amigo.
    Belíssimo texto. Gostei e vou passar para frente. Compartilhar com filhos e amigos

  2. André
    14/08/13 at 20:37

    Gama, eu também adorei o texto, que é de uma reflexão fecunda. Você escreve muitíssimo bem. Parabéns.
    Abraçaço.

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