O homem que dirigia balão

                        

 

                        Chamava-se Alberto.

                        O nome lhe fora dado pelo pai em homenagem a Alberto Santos Dumont, por ele considerado o maior brasileiro de todos os tempos, desde que em 1901 contornara a Torre Eiffel com o Dirigível nº 6, vencendo o prêmio Deutsch, no valor de 100.000 francos.

                        Além disso, havia nascido em outubro de 1929, exatamente no mês e ano em que um dos Zeppelins dera a volta ao mundo. A explosão do Hindenburg, em 1937, quando ele tinha apenas oito anos, foi tratada em sua casa como uma tragédia familiar ou nacional, deixando o pai acabrunhado por muito tempo.

                        Sob a influência paterna, à medida que crescia, crescia também sua paixão por balões e dirigíveis.

                        Com os livros herdados do pai e alguns outros que comprou em sebos nas raras viagens à capital, sabia quase tudo a respeito, desde a descoberta dos balões a ar quente dos irmãos Montgolfier, seguida do balão a gás de Jacques Charles, no ano de 1872.

                        Outro brasileiro, o deputado Augusto Severo de Albuquerque Maranhão, projetou em 1902 o balão dirigível Pax, que representava uma nova concepção, em que a barca e o invólucro constituíam um mesmo corpo. Dessa maneira, a oscilação era reduzida, diminuindo as perdas de velocidade e melhorando a capacidade de manobra, de modo a superar uma das causas de frequentes acidentes. Contudo, o grande inventor faleceu quando o balão explodiu numa demonstração, em Paris

                        Muito antes disso, porém, em agosto de 1709, o padre Bartolomeu de Gusmão, nascido em Santos, fizera voar um pequeno balão de ar quente, pela primeira vez no mundo, na Sala das Embaixadas da Corte de Lisboa, perante a família real, diversos nobres e vários embaixadores estrangeiros. Após três tentativas o balão teria conseguido subir quatro metros, quando foi destruído por dois guardas, receosos de que o Padre Voador provocasse outro incêndio no Palácio, como das outras vezes. Tachado de feiticeiro, de ter um pacto com o diabo e com inimigos poderosos, o pobre sacerdote foi perseguido e sua experiência ignorada, apesar de o monarca ter assinado uma petição de privilégio pela descoberta de “um instrumento para andar pelo ar da mesma sorte que pela Terra e pelo Mar, com muito mais brevidade”. Depois de perder o apoio de D. João V, abandonado e esquecido, Bartolomeu de Gusmão viveu os seus últimos anos de vida com um irmão, na Espanha, onde morreu na mais absoluta miséria.

                        Alberto se identificava com Bartolomeu de Gusmão, pois nunca tivera apoio nem reconhecimento na pequena cidade em que nascera e vivia, ganhando a vida como barbeiro. Ao contrário, desde menino era alvo de chacotas e de piadas. Por isso, e pela falta de pecúnia, jamais conseguira construir o grande balão que havia projetado.

                        Na velhice, seus únicos e fiéis amigos, e também fregueses, eram o homem que tinha sido caixeiro-viajante (e não mais viajava), o homem que consertava máquinas de escrever (substituídas pelos computadores), o homem que ensinava latim (língua dada como morta), o homem que tirava fotografias com a máquina lambe-lambe (que já não funcionava), o homem que fora motorneiro em São Paulo (quando bondes havia em São Paulo), o homem que tocava tuba na banda (que fora extinta), o homem que andava de pernas de pau (que estavam quebradas e abandonadas num canto), o homem do realejo (cujo periquito morrera),  o homem que badalava os sinos da igreja (que o novo padre substituíra por uma gravação) e o homem que fazia sonetos parnasianos (sempre em busca de um fecho de ouro).

                        Passavam várias horas conversando sobre suas especialidades e lembranças na barbearia ou, nos momentos de folga, num banco da praça, defronte da fonte luminosa, que há muito estava seca e não funcionava.

                        Um dia, no final de julho, souberam que no próximo mês de agosto a pequena cidade, conhecida por ventar muito, seria sede de uma das etapas do campeonato nacional de balonismo.

                        Alberto ficou em polvorosa, e o seu entusiasmo contagiou os amigos. Será que ele conseguiria finalmente dirigir um balão? Algum dos competidores lhe permitiria realizar esse sonho?

                        Agosto, mês do desgosto.

                        Durante vários dias o céu da pacata cidade se multicoloriu com os balões, mas o máximo que Alberto logrou foi a promessa de que, no último dia do evento, um domingo, em que não haveria competição, mas apenas uma exibição para o público, um dos balonistas o levaria a voar com ele. Mas isso não lhe interessava. Queria ele próprio dirigir o balão e demonstrar sua maestria e todo o seu conhecimento.

                        Na madrugada de sábado para domingo, sorrateiramente, os velhos amigos penetraram no aeroclube local, onde os balões estavam armazenados, escolheram o maior deles (que não era usado na competição, mas sim para publicidade e levar os árbitros), e sob o comando firme de Alberto alçaram voo.

                        Quando o vigia se deu conta, já estavam a uns vinte metros de altura.

                        O alarme foi dado e logo a cidade toda acorreu ao local.

                        O dia amanhecia e os primeiros raios de sol cintilavam no balão colorido, que subia, subia, subia, até desaparecer do alcance da vista, levando o homem que o dirigia, o homem que tinha sido caixeiro-viajante, o homem que consertava máquinas de escrever, o homem que ensinava latim, o homem que tirava fotografias com a máquina lambe-lambe, o homem que fora motorneiro, o homem que tocava tuba na banda, o homem que andava de pernas de pau, o homem do realejo, o homem que badalava os sinos da igreja e o homem que fazia sonetos parnasianos (que finalmente encontrou o fecho de ouro para o seu último poema).

 

 

 

 

 

2 comentários

  1. Lilian
    05/12/09 at 21:05

    Que turma, hem?
    Não sabia que Bartolomeu de Gusmão era padre e muito menos que gostava de voar. Agora, até faz sentido a estória (recente) daquele padre que morreu “voando” com balões… Pra mim, Bartolomeu de Gusmão era apenas uma rua da Vila Tibério, aonde morava uma pobre (mas rica de espírito) amiga minha, Dona Fiúca (conhecida pela adoção de umas vinte??? crianças).
    A citação de tanta gente na crônica me fez lembrar do livro “Incidente em Antares”… Já leu? – Divertido, interessantíssimo.

  2. bellgama
    07/12/09 at 12:36

    Papilly, recebi seu e-mail, mas só tive acesso ao computador agora. Li. Interessantíssimo. Bem feito. Uma delícia. Tem tudo, absolutamente tudo para virar um livro. Quero saber mais sobre os outros personagens. Adorei, de verdade. É muito bonito. beijos

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