Não tenho o radicalismo nem a boca maldita de José Ramos Tinhorão, e até discordo de muita coisa que ele diz e pensa, embora reconheça a seriedade do seu trabalho e sua vasta cultura musical.
Mas também estou longe do bom-mocismo de Nelsinho Motta, que gosta de tudo, acha quase todos geniais e saúda qualquer novidade como uma revelação extraordinária e promissora. Duvido que ele acredite nisso de fato, pois está muito longe de ser imbecil. Peca talvez pelo excesso de simpatia.
Vejamos o caso do RAP (rhythm and poetry), que surgiu na Jamaica na década de 60 e foi introduzido nos EUA pelos jovens jamaicanos que foram para Nova Iorque. Com uma batida rápida e acelerada e a letra em forma de discurso, fala das dificuldades da vida dos habitantes de bairros pobres das grandes cidades, incorporando gírias das gangues, além de danças e malabarismos corporais.
O rap é cantado e tocado por uma dupla composta por um DJ, responsável pelos efeitos sonoros e mixagens, e por MCs que desfiam a letra cantada ou discursada.
Logo o Brasil, apesar de nossa riqueza de ritmos e gêneros musicais, macaqueamos o rap, e inúmeros grupos embarcaram na nova onda, ganhando espaço nas rádios, TVs e nas indústrias fonográficas.
Nada contra. Há gosto para tudo, e para quem gosta é um prato cheio.
O que precisa ser dito, sem medo de nadar contra a corrente, é que o rap, em regra, apresenta uma indigência de melodia e letra que não permite ombreá-lo a produções verdadeiramente artísticas, como se tem pretendido.
É claro que, mesmo não me agradando o estilo, reconheço que há exceções talentosas, mas são raras.
Trata-se de uma manifestação cultural? Sem dúvida!
Merece respeito? Lógico que sim!
É um meio para que o jovem pobre e marginalizado se expresse em vez de partir para ações violentas? Ótimo!
Mas nada disso é suficiente para qualificar todo e qualquer militante do rap como um grande e inspirado artista ou poeta.
Nem tudo que é fruto da cultura, ou de uma cultura, se constitui arte.
Os negros e pobres dos EUA também criaram formas de se expressar, como o blues, o jazz e suas vertentes, esses sim de inegável valor artístico.
Os negros e pobres do Brasil, do mesmo modo, criaram o samba, o chorinho e outros gêneros de extraordinária qualidade e significação. Aliás, os rappers, pelo menos os brasileiros, teriam muito a aprender com as emboladas e os repentistas nordestinos.
Prova disso? A composição Língua, de Caetano Veloso pode ser considerada um rap, ou pelo menos tem muitas características de um rap, a demonstrar que é possível existir vida inteligente e arte em qualquer meio (embora nem sempre haja).
Língua (ouça aqui)
Caetano Veloso
Gosta de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar a criar confusões de prosódia
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?
E deixe os Portugais morrerem à míngua
“Minha pátria é minha língua”
Fala Mangueira! Fala!
Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode esta língua?
Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas
E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas! Cadê? Sejamos imperialistas!
Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmem Miranda
E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate
E – xeque-mate – explique-nos Luanda
Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo
Sejamos o lobo do lobo do homem
Lobo do lobo do lobo do homem
Adoro nomes
Nomes em ã
De coisas como rã e ímã
Ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã
Nomes de nomes
Como Scarlet Moon de Chevalier, Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé
e Maria da Fé
Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode esta língua?
Se você tem uma idéia incrível é melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão
Blitz quer dizer corisco
Hollywood quer dizer Azevedo
E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo meu medo
A língua é minha pátria
E eu não tenho pátria, tenho mátria
E quero frátria
Poesia concreta, prosa caótica
Ótica futura
Samba-rap, chic-left com banana
(– Será que ele está no Pão de Açúcar?
– Tá craude brô
– Você e tu
– Lhe amo
– Qué queu te faço, nego?
– Bote ligeiro!
– Ma’de brinquinho, Ricardo!? Teu tio vai ficar desesperado!
– Ó Tavinho, põe camisola pra dentro, assim mais pareces um espantalho!
– I like to spend some time in Mozambique
– Arigatô, arigatô!)
Nós canto-falamos como quem inveja negros
Que sofrem horrores no Gueto do Harlem
Livros, discos, vídeos à mancheia
E deixa que digam, que pensem, que falem.
Assim não vale… Caetano conseguiria fazer música de um vômito de bebê.
E que isto soe como rap é apenas mais uma de suas muitas aventuras em um mundo que ele conhece bem: poesia e música.
Quanto ao rap “de verdade”, socorro!