Os amigos adoravam provocá-lo. Ele, que não tinha nada de bobo, bem sabia disso, mas não fugia do confronto e até sentia prazer no enfrentamento.
Nas ocasiões em que a conversa arrefecia, porque já tinham falado de quase tudo, política, mulheres, futebol, velhas histórias sempre repetidas, mas nunca iguais, e até das últimas fofocas, alguém lançava o desafio:
― Qual foi o maior invento de todos os tempos?
E cada um por vez ia dando sua opinião, que variava ao sabor da imaginação do momento.
― O balão, que levou ao avião!
― A eletricidade!
― Fico entre a roda e a alavanca, sem as quais ainda estaríamos vivendo nas cavernas.
― A televisão!
― A fotografia!
― A mulher!
Deixavam ele sempre por último, porque já sabiam o que diria:
— O maior invento de todos os tempos foi a prensa de imprimir de Gutenberg, no século XV, que revolucionou o mundo e universalizou o conhecimento, com impressão em escala de livros e jornais, antes restrita à produção dos monges copistas e só acessível por alguns poucos padres e fidalgos. Embora o primeiro livro imprimido por Gutenberg tenha sido a Bíblia, a nova arte provocou temores de toda ordem, pois, para muitos, o livro saído de um prelo, e não da tinta de um monge escriba, iria se tornar uma força subversiva, capaz de abalar a fé e de reduzir a autoridade da Igreja.
E acrescentava:
― Mas depois da prensa, a maior invenção, sem dúvida, foi a máquina de escrever, que por sua vez democratizou o tipógrafo de Gutenberg, permitindo que empresas e indivíduos imprimissem seus escritos diretamente e a baixo custo. Além disso, contribuiu para a emancipação feminina, proporcionando às mulheres um mercado de trabalho que não tinham antes, ao demonstrarem que, para elas, datilografar era tão fácil quanto costurar. E o que dizer da relação entre os escritores e suas máquinas, que se tornaram companheiros e cúmplices?
E daí não parava mais de discorrer sobre as maravilhas das máquinas de escrever, de que era profundo conhecedor e verdadeiro mestre em conservá-las e consertá-las.
Embora seja difícil precisar quando a máquina de escrever teria sido inventada e começou a ser fabricada, sabia grandes histórias a respeito. Duas delas o fascinavam especialmente, e não se cansava de contá-las. A do nobre italiano Pellegrino Turri, que por volta de 1808 fabricou um artefato para que uma amiga, cega, pudesse se corresponder com ele. A máquina já não existe, mas algumas das cartas, sim. E a máquina brasileira inventada pelo padre Francisco Azevedo, apresentada na feira Internacional de Recife em 1861, gerando grande interesse, mas que nunca chegou a ser fabricada em série e cujo protótipo foi destruído.
― Aliás ― dizia ele ― é muito estranho que os americanos tenham abandonado de uma hora para outra os modelos em que vinham trabalhando há tanto tempo, justamente na época em que retornavam à América os emigrados de Recife. E as novas máquinas que passaram a desenvolver tinham grande semelhança com o projeto do padre Azevedo, até mesmo nos seus defeitos.
Cinco séculos depois do invento da prensa por Gutenberg, Marshall McLuhan, tido com o arauto dos novos tempos, decretou o fim do que denominou de Galáxia de Gutemberg, sustentando que o Cosmo da Impressão teria pouquíssima chance de sobreviver numa aldeia global que então se constituía, movida toda ela pela força das imagens. Uma nova galáxia, a audiovisual, então em fase de assombrosa expansão, em breve iria superá-la. Com o advento da internet e dos e-books novas previsões pululam a cada minuto acerca do fim do livro impresso, mas ele tem resistido bravamente.
Seu interesse e conhecimento remontavam à meninice, desde o seu primeiro emprego como ajudante de tipógrafo, quando se apaixonara irremediavelmente pela arte da impressão, os modelos e detalhes dos caracteres, a composição, o acabamento.
Já adulto, resolveu se estabelecer por conta própria, e à falta de capital para uma tipografia, montou uma modesta loja para vender máquinas de escrever e consertá-las. A sua expertise e dedicação levaram-no a progredir junto com a cidade e chegou a enricar, tornando-se proprietário da maior casa comercial do ramo na região.
Após o surgimento das máquinas elétricas ainda prosseguiu firme no negócio, embora contrariado, pois se matinha fiel os velhos modelos mecânicos, para cuja utilização bastava uma superfície plana, sem tomada por perto, nem risco de interrupção pela queda da energia elétrica. Além disso, com um pouco de manutenção, limpeza e lubrificação, duravam a vida toda.
Mas com a era da informática e dos microcomputadores deflagrada nos anos 1980, foi perdendo espaço até que decidiu fechar a loja. Os filhos e amigos insistiram com ele para se adaptar ao mercado, passar a vender computadores e a parafernália que os acompanha, mas ele se recusou terminantemente.
Levou consigo para casa diversas máquinas de escrever que colecionava e tinha na conta de verdadeiros ícones, construiu um barracão no amplo quintal para acomodá-las e lhe servir como oficina e lazer. Muito raramente era chamado, e acorria com grande deleite, a consertar ou fazer a manutenção de algumas máquinas de escrever que sobreviviam nas mãos de outros poucos apaixonados como ele.
A exemplo das ruas da Recife antiga do menino Bandeira, como eram lindos os nomes das velhas máquinas de escrever: Remington, Underwood, Olivetti, Facit, Olympia, Royal, Everest, Alpina, Erika! Os microcomputadores de hoje nem nome têm, mas siglas: IBM, HP, Mac, Dell…
Secretamente, alimentava grandes esperanças no anunciado bug do milênio, na transição de 1999 para 2000, o que haveria de confirmar a vantagem das velhas máquinas de escrever.
Mas o tal bug foi como a passagem do Cometa Halley em 1986, que ele também esperou com grande ansiedade: ninguém sabe, ninguém viu.
Mesmo assim, a vida lhe reservava um momento de glória inexcedível.
Já em pleno século XXI, as diabruras climáticas, fruto das ações diabólicas do homem contra a natureza, provocaram trombas-d’água com vendavais devastadores durante uma semana sem parar, que deixaram a cidade, situada num vale ao sopé de uma cadeia de morros, totalmente ilhada e sem energia elétrica, em decorrência da queda de linhas de transmissão. A periferia e a zona rural foram as mais afetadas pela enchente, que levou de roldão as pontes dos ribeirões do Taboão e do Piripau, que davam acesso ao município pelos dois lados principais, dificultando enormemente os reparos para restabelecimento da energia.
Durante o dia, apesar da falta de eletricidade e da chuva fina que persistia, o cotidiano ainda se mantinha razoavelmente, mas à noite os lampiões a gás, velas e lanternas voltaram a reinar. E ele gostava disso, lembrando-se da cidade penumbrosa da sua infância.
Depois de uma semana às escuras, e sem perspectiva de quando os problemas seriam sanados, foi chamado para uma reunião no fórum, com o juiz de direito, a promotora de justiça, o prefeito, o delegado, o tenente que comandava o destacamento da Polícia Militar, o padre, o provedor da Santa Casa e outras pessoas gradas da comunidade.
Estranhou haver sido convocado. Mas logo foi posto a par e se encheu de orgulho e satisfação: pediram-lhe que cedesse as suas velhas máquinas de escrever, conservadas impecáveis, para que fossem utilizadas pelas repartições públicas para manutenção dos serviços básicos e de urgência.
Claro que concordou, e já na manhã seguinte distribuiu as máquinas, instruiu como utilizá-las e passou a percorrer diariamente os locais para verificar se tudo estava em ordem. Como lhe soavam bem os estalidos dos teclados e a sineta que assinalava o final do curso do carro, e ao mesmo tempo se divertia com as agruras dos atuais digitadores para se transmudarem em verdadeiros datilógrafos, valendo-se da força necessária para premer as teclas!
Transcorreu mais de um mês até que tudo se normalizasse. Pouco depois ele foi homenageado pelo prefeito e pela Câmara de vereadores, que lhe outorgou o título de cidadão emérito. O juiz fez questão de fazer uso da palavra para também agradecê-lo e cumprimentá-lo em nome dos comarcãos e do Poder Judiciário. O prefeito, no seu discurso, prometeu que encaminharia um projeto à Câmara para criar na cidade um museu das suas máquinas de escrever, do qual ele seria o responsável (o que acabou não fazendo).
Durante a cerimônia, sua família e seus amigos diletos assentaram-se na primeira fila e o aplaudiram entusiasticamente.
Mas o melhor de tudo veio depois, quando retomaram as conversas desocupadas na barbearia. Foi ele então quem provocou a questão recorrente:
― Qual foi o maior invento de todos os tempos?
— A prensa de Gutenberg, responderam-lhe os outros, quase em uníssono.
Talvez não seja o maior, mas é o que me dá mais “segurança”: o telefone celular. Para me sentir mais “segura” ainda, tenho dois, de operadoras diferentes. Se a coisa apertar, periga eu ter um de cada (todas) operadora… rsrs Estranhos tempos esses em que um telefone celular pode transmitir idéia de segurança…
Embora me assuste um pouco, ou muito, ver as torres de transmissão por todo lado, faz parte da “matrix”. Temos que nos sentir conectados o tempo todo, através da internet, celular, tv (e sei lá mais o que) para nos integrarmos à “comunidade universal”. Isto é que é solidão…
Meu caro Antônio-Carlos:
Durante metade da minha vida, a máquina de escrever foi o meu instrumento de trabalho. A última que adquiri, em Pedregulho, foi uma “Alpina”, alemã, que ainda conservo comigo, na sua caixa. Em Guaxupé, e depois em Franca, na casa de meus pais, havia duas máquinas de escrever, uma Undervood, e a outra Remington. Depois vieram as máquinas de escrever de tipos móveis ou removíveis que podiam ser substituídos, e as elétricas. Estrelejavam as teclas das máquinas, e soava a campainha, quando o carro chegava ao seu limite. Sempre usei apenas quatro ou cinco dedos, para datilografar, mas era suficientemente rápido. As correções faziam-se com uma borracha dura, e veio mais tarde um líquido esbranquicento, para cobrir as letras erradas, sobre as quais imprimiam-se outras. As fitas podiam ser inteiramente de tinta preta, ou preta e vermelha. O difícil era conseguir uma linha reta, na margem direita do papel. Mais tarde, quase recentemente, vieram os microcomputadores, e o primeiro que tive foi um DK30. Para imprimir o texto, o meu estava ligado a uma máquina de escrever elétrica. Chesterton diz que as mulheres clamaram pela liberação feminina e, no dia seguinte em que a conseguiram, eram todas datilógrafas, escravizadas sob as ordens do empregador. Cartas iam, cartas vinham, datilografadas, e perdeu-se o gosto das cartas manuscritas, só conservado ainda por alguns renitentes. No entanto, a carta manuscrita é mais elegante, mais íntima, e documento precioso para se estudar a grafia de quem a escreveu. Aliás, a caligrafia era ensinada nas escolas, em cadernos pautados, com modelos de letras. Olavo Bilac tinha uma bela letra, uma letra solar, e os seus manuscritos bem como os de Coelho Neto, de letra belíssima, são estudados com prazer. Você mesmo tem, encaixilhado, um manuscrito de Manuel Bandeira. Que dizer dos manuscritos de Machão de Assis, na sua letra perfeitamente legível, e com a qual escreveu obras-primas, como “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Dom Casmurro”? Mário de Andrade escreve para Manuel Bandeira, ou para Carlos Drummond de Andrade, contando-lhes a sua alegria por ter comprado e estar usando uma nova máquina de escrever. As milhares de cartas de Drummond, boa maioria manuscritas, ainda estão inéditas, mas muitas já foram publicadas. Você mesmo sempre foi um bom datilógrafo e, no seu primeiro emprego, trabalhando num Cartório, tinha de datilografar as audiências para o juiz nosso amigo, o bom do Andreotti. Nosso amigo Gilberto de Mello Kujawski recusava o microcomputador, embora eu insistisse com ele para comprar um e deixar a máquina de escrever. Só anos depois é que aderiu, e comprou um. Luís Americano Leite, nosso amigo, quando lhe exibi um micro, respondeu-me que aquilo não passava de uma máquina de escrever de luxo. Já pensou em quantos outros livros escreveria Balzac, se usasse uma máquina de escrever, ou um micro? Mas são principalmente os lorpas que se utilizam dos micros. Eles propiciaram a inundação de tolices que abarrotam o mercado livreiro.
Sim, a máquina de escrever foi muito importante. Mas acho também que a melhor das invenções, e que pouco ou nada mudou, foi o guarda-chuva. Ele ainda mantém a sua austeridade de um céu preto, com que nos abriga da chuva. Debaixo dele, na rua, abraçamos a mulher amada, os dois aconchegados. Ou ela abre a sombrinha, para resguardar-se do sol. O guarda-chuva serve também de bengala, que foi abolida. E, em casa, aberto para secar, ou fechado, deixa escorrer a sua lágrima. A lágrima pelos tempos que foram e já não são mais.
Dr.Gama, que incrível! Se o senhor trabalhou com o Dr.Andreotti, estivemos “prestes” a nos encontrarmos anteriormente, porque eu também trabalhei por ali (Fórum de Ribeirão Preto, na Duque de Caxias??? Nossa, nem sei os nomes das ruas de Ribeirão…) Trabalhei no Cartório Distribuidor e, antes de começar a fazer partilhas, levava os livros comerciais para os juízes vistarem. O Dr.Andreotti era sempre muito gentil e conversava comigo. O Dr.Oscar era o mais sisudo…
Quanto às máquinas de escrever, como estariam as minhas mãos hoje, sem a leveza dos teclados do computador? Acho que foi uma boa troca.
Outro dia, no escritório de um advogado, Dr.Marcelo Rossi, vi duas máquinas de escrever antigas. Uma bem antiga mesmo, preta (nunca me atentei para os nomes) e outra mais “recente” (mas também antiga), lado a lado. Devem ser lembranças do pai dele, que também trabalhou no Fórum. No meu concurso para ingresso na Câmara, fui “presenteada” com uma máquina mais antiga, embora houvessem máquinas mais novas, com as quais outros candidatos foram agraciados. Vendo as máquinas na sala do Dr.Marcelo, juro que não senti a mínima saudade… Eu jamais guardaria qualquer coisa assim comigo. Gosto muito de novidades.