Posts by Antonio Carlos A. Gama

De como participei da fundação da Academia Brasileira de Letras

 

 

“É certo; então reprimamos

esta fera condição,

esta fúria, esta ambição,

pois pode ser que sonhemos;

e o faremos, pois estamos

em mundo tão singular

que o viver é só sonhar

e a vida ao fim nos imponha

que o homem que vive, sonha

o que é, até despertar.”

 

(“A vida é sonho” (excerto), Calderón de la Barca)

 

 

 

Saídos da Livraria Laemmert, os circunspectos cavalheiros encasacados entraram por volta das 17 horas na confeitaria, tiraram as cartolas e os chapéus ao se sentarem numa ampla mesa reservada, ao fundo.

Logo foram atendidos por dois garçons, igualmente impecáveis nos seus trajes. A maioria preferiu chás variados, torradas, bolachinhas e outras guloseimas servidos àquela hora e que eram a especialidade da Casa. Alguns poucos arriscaram um xerez ou um vinho do Porto. Eu fui um deles.

O grupo observava uma tácita hierarquia. Os mais jovens eram todo ouvidos e pouco falavam. E o centro da reunião era o senhor de barba e cabelos encanecidos, amulatado, de pince nez, que falava pausadamente de modo a disfarçar uma leve gaguez. Tratava-se de Joaquim Maria Machado de Assis, intelectual consagrado, cronista, contista, dramaturgo, jornalista, poeta, novelista, romancista, crítico e ensaísta.

— Como sabem os senhores, apóio a ideia dos confrades Medeiros de Albuquerque e Lúcio de Mendonça de criarmos uma Academia Brasileira de Letras, nos moldes da Academia Francesa, e creio mesmo que tal providência, por necessária,  já se faça tarda, não para colhermos a efêmera glória mundana, mas como um marco da instituição de uma literatura nacional.

Ouvia-o atentamente, enlevado com a lucidez e elegância que expunha seu pensamento, a velada ironia de suas observações, tal como em seus romances, contos, poemas e crônicas.

Que honra e privilégio estar na companhia de tantas figuras admiráveis, especialmente dele, e a participar de momentos que haveriam de se tornar históricos!

Mas o que fazia eu ali?

Era um dos mais moços e sentia a vaga sensação de ser um estranho, embora nenhum dos convivas denotasse isso, tratando-me com lhaneza e afabilidade natural dos amigos.

O próprio Machado de Assis algumas vezes pareceu dirigir-se a mim, com o esboço de um sorriso, aparentando certa afeição, como se eu fosse um pupilo dileto ou até mesmo um filho, que ele nunca teve (ou teve, segundo as más línguas).

Apesar de me sentir muito bem e interessado na conversação e nas opiniões que se alternavam, pressentia que a qualquer momento haveria de deixá-los.

Como se sabe, depois de várias reuniões preparatórias, a Academia Brasileira de Letras foi fundada em dezembro de 1896, e oficialmente instalada em 28 de janeiro de 1897, com Machado de Assis sendo eleito o primeiro presidente da instituição, cargo que ocupou até sua morte, ocorrida no Rio de Janeiro em 29 de setembro de 1908.

Eis que desperto no meu quarto, nesta São Sebastião do Ribeirão Preto, na manhã de um sábado do ano da graça de 2013, com as imagens vívidas do que relatei acima e uma sensação de rara euforia.

Acorro à cozinha, onde minha mulher prepara o café, e lhe conto em atropelo o sonho tão estranho quanto fascinante.

Ela, que sempre foi extraordinariamente intuitiva e com frequência faz predições que se confirmam, escuta-me com um sorriso maroto e os olhos verdejantes, e ao final diz que talvez eu possa mesmo ter estado lá. Quem sabe?

— O que mais importa é que o sonho lhe fez bem e você acordou numa manhã feliz.

De que matéria serão feitos os sonhos e as manhãs felizes?

 

 

MATÉRIA PRIMA

 

De que são feitos os sonhos?

 

Nostálgicos amores

revoltos mares

remotos temores

fragmentos de luzes

no umbroso porão

da memória ancestral

do primeiro Adão

e seu perdido Jardim

de flores, frutos, olores,

arrebatado de mim

pelo tempo e pela treva.

 

Tortuosa travessia

entre o crepúsculo e a aurora,

a vertigem do abismo me leva

a galgar trôpego e sôfrego

o promontório do dia.

 

 

Sem

 

 

Brenno Augusto Spinelli Martins

    (seu violão e o pôr do sol) 

Brenno e o violão

 

 

 

 

 

 

 

                                   Quando a jornada é louca

                                   Fica no fundo da boca

                                   Um gosto de gosto oco

                                   Porque a vida escapa um pouco

                                   Fica o relógio sem corda

                                   A cerveja fica tórrida

                                   Amendoim sem caroço

                                   A girafa sem pescoço

                                   O elefante sem tromba

                                   Ou o oásis sem sombra.

 

                                   Quando o azul fica cinzento

                                   Fica sem pinto o jumento

                                   Fica sem pinto a galinha

                                   Fica sem asa a andorinha

                                   Beija-flor fica sem flor

                                   Carmelita sem pudor

                                   Romance sem namorada

                                   E a fogueira apagada

                                   Fica o cachorro sem osso

                                   Bóia-fria sem almoço.

 

                                   Quando o caminho é incerto

                                   Fica longe o que era perto

                                   O café sem cafeína

                                   Cigarro sem nicotina

                                   Fica o doce sem açúcar

                                   A filharada sem Lucas

                                   Parece um vinho sem álcool

                                   Ou um artista sem palco

                                   Ou torcedor que não xinga

                                   Ou então um beijo sem língua.

 

                                   Quando o chão é movediço

                                   Fica o final sem início

                                   É como abelha sem mel

                                   Ou o samba sem Noel

                                   A centopéia sem pé

                                   A seleção sem Pelé

                                   João Bosco sem violão

                                   E a transa sem tesão

                                   Tim Maia sem um quilo do bom

                                   E a poesia sem Drummond.

 

                                   Quando o horizonte se esconde

                                   E o mundo fica sem onde

                                   Acaba a cor da paixão

                                   E a corda do coração

                                   Fica a bússola sem norte

                                   E o jogo de azar sem sorte

                                   Fica o crime sem  bandido

                                   E a vida sem sentido

                                   Como a morte sem nascer

                                   Ou como eu sem você.

 

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Sentimento Bissexto

 

 

Mais um sucesso do trio

e eu fico bissexto tio

babuzando a Luiza

que meu sonho cristaliza

de uma crooner assim maneira

me embalando a vida inteira

que no rock eu me vou.

 

 

 

 

Sentimento Bissexto 

(Composição de Brenno e Claudia, interpretação Luiza)

 

Tudo bem eu reconheço
Esse meu sentimento bissexto
Tá em mim e quando ele vem
Fico assim
São como tiros soltos a la Tarantino
A bala perdida mudando o destino
Parece que o cara morre mais
Parece que eu amo mais
Eu te bebo on the rocks
Eu te quero on the road
Eu te como in the box
Eu te escuto rock’n’roll
Eu te cheiro in the fields
Eu te fumo on the hill
Eu te amo I love you
Eu te danço rock’n’roll

 

 

Demorô, vó!

 

      Selma Barcellos

Selma 2

 

 

 

 

 

 

 

Você passa a vida acarinhando seus livros prediletos, sentindo até o cheirinho da época em que foram lidos, tirando-lhes o pó, protegendo-os das traças para entregá-los em ato solene aos netinhos e o que acontece? Uma engenhoca sedutora, mimo digital com milhares de livros eletrônicos, pouco mais de 200g e espessura milimétrica, chega para desbundar sua biblioteca hereditária. É duro.

Serão e-readers os netos… Que argumentos usarei para que se encantem e viajem nos meus barquinhos de papel? Como convencê-los de que aqueles tesouros arqueológicos na estante da vovó têm valor inestimável?

Missão impossível concorrer com o barato de virar páginas a um simples toque; de ver uma orelha virtual registrar onde se interrompeu a leitura (psiu, não espalhem, eu marcava livro com pétala de flor…); de usar óculos e poder perdê-los entre almofadas – o corpo da letra amplia; de esbarrar em palavra desconhecida e ter o significado ali, ao pé da página (repouse em paz, Aurelião); de cansar de ler silenciosamente e uma voz seguir adiante. Com música ao fundo. Covardia.

Mas tem lá seus pontos fracos o brinquedinho… Nele tudo aparece em preto, branco ou cinza e a cartela da vida é outra. A voz que lê usa a mesma entonação para uma ata de condomínio e um poema de Bandeira. Sem contar que não permite aquele diálogo incessante a que se referia Maurois – “o livro fala e a alma responde”. Não tem perfume. Jamais será arte. E tenho dito.

Porém, como ele representa menos árvores derrubadas, soluciona problemas de ordem prática e – maravilha! – pode ser cura para azia e preguiça de ler de crianças, jovens, uns e outros… prometo tentar.

Se cansar de ficar “muderninha”, tem erro não. Os netos saberão onde me encontrar. Periga só de cair pirlimpimpim da estante e, enfeitiçados, rolarmos juntos no tapete, mais os tuaregues, o saci, o Quixote…

 

LIVROS-E-KINDLE

 

 

Um caminho para o céu (antes do avião)

 

 

              Nicolas Sauvage

Nicolas e família

 

 

 

 

 

 

 

Este poema e o anterior “Esperança” (aqui) de Nicolas Sauvage foi escrito para uma exposição “L`art au défi de l`esperance”, que foi realizada em janeiro de 2013 na Prefeitura do VI Distrito de Paris com a colaboração do artista plástico Eric Michel, com a intenção de fazer um livro objeto. Como veem, há um teor místico.

 

 

un chemin vers le ciel (avant l’avion)

 

quand j’étais enfant sur les petites routes de campagne

à vélo je me souviens de rouler sous le plafond nuageux

les rayons du soleil traversaient de biais une grande trouée

la lumière se posait en oblique comme la main de Dieu

que l’on voit dans les tableaux sombres à l’interieur des églises

 

rouler

ne pas penser à toi

penser en toi

 

rouler

me coucher avec toi m’allonger en toi

dormir avec toi dormir en toi

 

rouler

me réveiller contre toi

en toi éveillé

 

penser en toi sur cette route de campagne et garder l’équilibre

à vélo sous le plafond nuageux et

la lumière du soleil fait une échelle posée là pour aller au ciel

est-ce une main trop large à serrer trop claire à regarder

 

Nicolas Sauvage

 

bicicleta 4 (3)

 

um caminho para o céu (antes do avião)

 

quando criança nas pequenas estradas do campo

de bicicleta me lembro andar sob o céu escuro

os raios de sol atravessavam em viés uma grande brecha

a luz se punha obliquamente como a mão de Deus

que a gente via nos quadros sombrios no interior das igrejas

 

pedalar

não pensar em você

pensar em você

 

pedalar

deitar-me com você me estender com você

dormir com você dormir em você

 

pedalar

despertar contra você

em você desperto

 

pensar em você nessa estrada do campo e manter o equilíbrio

na bicicleta sob o céu escuro

a luz do sol coloca ali uma escada para ir para o céu

é uma mão tão grande para apertar e clara demais para olhar

 

 

Tradução de Adalberto de Oliveira Souza

 

 

 

 

 

Música em estado puro

(para a poesia em estado puro de Nicolas Sauvage) 

 

 

“Bicicleta” (Zé Renato), Boca Livre

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=EvwI02YInGY[/youtube]

 

 

Creio em Deus Pai…

 

          Annibal Augusto Gama

ANNBAL~1

 

 

 

 

 

 

Tendo sido batizado na Igreja de Nossa Senhora Aparecida, aos três anos, sendo meu pais o Doutor Ciríaco André de Matos Pereira e Dona Mariana Correia Matos Pereira, padrinhos o Cavalheiro Fidalgo Tomé de Abreu e Albuquerque e sua mulher Dona Carlota Figueiredo de Albuquerque, oficiante o Padre Domingos da Santa Fé, tornei-me católico, apostólico romano, por força do compromisso que em meu nome fez a Deus o meu padrinho.

Até os quatro anos, não pensei em Deus nem na sua corte de anjos e santos. Até que comecei a ouvir os trovões e o raios, tão abundantes em nossa cidade, que abalavam nossa casa e faziam minha mãe ir acender velas para Santa Bárbara e São Jenônimo, exclamando, aterrada,“Deus nos acuda, é o fim do mundo!”

Comecei então a saber que Deus, ainda que nos mandasse trovões e raios que te partam, ao mesmo tempo nos socorria e acudia. E que havia também, ao seu lado, os santos e as santas, intermediários das nossas súplicas. Também, aos sete anos, levaram-me a ser catequizado, para mais tarde receber a Primeira Comunhão.

— Crês em Deus? —  perguntava-me a minha catequizadora, uma senhora gorda, de bandós e cabelos brancos, e eu respondia: “Sim, creio”. E ela prosseguia: “Amarás a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo. Honrarás pai e mãe. Não cobiçarás a mulher do próximo.”

Ensinou-me ela, também, o Pai Nosso que estais nos céus, a Ave Maria, o Credo, e outras orações. E eu devia, pela manhã, ao despertar e à noite, ao ir dormir, além de escovar os dentes, ajoelhar-me à beira da cama e rezar algumas orações. Por outro lado, a Santíssima Trindade, Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo, representados por um triângulo equilátero, me perturbava. E ainda mais quando, já na escola, eu via o triângulo equilátero dentro do qual havia um olho aberto e a legenda “Deus me vê”. Deus me via todo o tempo, era um espião.

Terror e amor…

Tomei conhecimento também do Diabo, que era um sujeito muito safado, com chifres, rabo, pés de cabra e fedendo a enxofre.

Não obstante, meu Pai, quando estava encolerizado, costumava dizer: “O Diabo que te carregue!”

Os nomes sujos eram proibidos e, se acaso os pronunciássemos, minha Mãe mandava: “Vá lavar a boca, menino!”, e aplica-me um beliscão. Na casa, o único que não era mandado lavar a boca, nem era beliscado, era o meu Pai.

Na abóboda pintada da Igreja, eu via Deus barbudo, o seu filho Jesus, e o Espírito Santo, que era uma pomba. E nuvens, profetas, santinhos e santarrões, além do altar-mor e dos nichos com as imagens dos e bem-aventurados.

Cantava-se, em coro:

 

                                   “No céu, no céu,

                                   Com minha Mãe estarei…”

 

Ora, minha Mãe estava em casa, ou ali sentada, num banco, coberta por um véu negro.

As procissões da Semana Santa, ou de outros dias santificados, saiam da porta da Igreja e o povo desfilava pelas ruas, atrás dos andores carregados por pessoas vestidas de opa, com a Banda de Música atrás. O turíbulo, o cheiro de incenso, na nave, as beatas ajoelhadas, os sinos batendo. 

De costas, o padre murmurava:

— Introibo ad altarem Dei.

E o coroinha completava 

— Ad Deum qui laetiificat juventutem meam.

Na outra calçada, de outro lado da rua, um pouco acima da nossa casa, uma menina me olhava e eu olhava a menina.

 

 

 

Nota do Editor

A menina na outra calçada era minha mãe, que um dia, disputando uma cadeirinha com o menino, arranhou-lhe fundo o rosto, deixando uma cicatriz.

Passados muitos anos, o menino já moço voltaria à cidade da infância, de onde se mudara. Acabava de ter um trabalho premiado na “Semana Euclidiana”, realizada em São José do Rio Pardo, e aproveitava para passar alguns dias na Guaxupé natalícia e rever amigos e familiares.

Reencontrou-se então com a menina que o havia ferido, também já moça.

Soube, então, que a marca que ela lhe deixara seria para sempre.

(Os nomes no primeiro parágrafo são fictícios)

 

 

O inseto

 

 

inseto 3 (3)

 

 Sobre o mármore

 insípido

 o pequeno inseto

 atônito

 patinha longitudes

 elípticas.

 

 Na vasta superfície

 álgida

 de pedra e água

 afeiçoada

 persiste no tracejo

 resignado

 sem atinar a mão

 iminente

 que sustém a existência

 precária.

 

 Seremos nós esse bicho

 errático

 a vaguear pela solidão

 inóspita

 enquanto outra mão

 onipotente

 concede a graça

 sombria

 de mais um dia

 só mais um dia?